quarta-feira, 29 de março de 2017
Ver048
“Como seria com qualquer idioma novo, meu primeiro contato com a língua dos anjos causou estranheza. Os símbolos, que muitas vezes me pareciam uma variação pomposa de letras gregas, não significavam exatamente letras, mas conceitos. Algumas horas depois, entretanto, eu já conseguia assimilar o conceito geral de frases inteiras e até mesmo a pronunciar algumas palavras.
Quando o sol covarde começava a se esconder, eu e Máira já tínhamos lido toda a sessão que tratava sobre Lúcifer e ponderávamos sobre o tínhamos descoberto ali.
- Então, o grande plano dele é engravidar alguém? Esperava mais do grandão. - disse ela desapontada.
- Não foi isso que eu entendi. Olha aqui. - corrigi apontando o parágrafo que embaçava meu argumento - Me parece que Lúcifer, sendo um arcanjo, não pode interferir aqui neste plano de forma física, salvo em duas ocasiões. A primeira é sob as ordens daquele que o livro chama de 'O Criador’…
- Coisa que não vai acontecer tão cedo. - Maíra complementou.
- Também acho isso difícil. - concordei - Nos resta a segunda, então. Se algum mortal de muita fé concentrar toda a sua força de vontade e desejar uma ação específica, os arcanjos poderiam agir e até mesmo realizar este desejo. “O Fiel”, é como o livro chama este mortal. Seria ele quem poderia fazer essa ponte. Certo? - esta última palavra eu disse por educação, pois não tinha dúvida alguma de que eu estava correta.
- Essa parte faz sentido. Mas e o filho então? - Máira apontava para uma figura um tanto perturbadora de uma mulher grávida com expressão de horror. Era possível ver o interior de sua barriga, e lá havia um pequeno diabrete se alimentando de suas entranhas.
- Eu também não achei que o livro foi claro quanto a isso. - respondi - E nem acho que seja importante agora. Estou mais intrigada em descobrir qual é a ligação entre Lucas e Lúcifer.
- Olha só quem acredita nos boatos agora…- Máira provocou.
- Não é exatamente isso. É que eu lembrei de uma coisa…- como sempre, era difícil para mim revirar os armários antigos das minhas memórias. Mas eu confiava em Máira e me abri - Em Paris, logo depois que fui transformada, e eu estava debruçada sobre o corpo de Carlos. Acho que foi quase por instinto, sabe? A sede faz você deixar de pensar direito. Bom - segui, um tanto constrangida - a verdade é que eu não ia parar enquanto não secasse ele, mas Lucas interveio e me levou para casa quando achou que eu já estava “controlável”. As lembranças desta noite são um pouco nubladas, mas ainda me lembro bem de alguns pontos específicos.
Senti em minha língua outra vez o gosto dele. Do sangue dele. Uma das piores coisas da imortalidade é ter que conviver com suas lembranças ruins eternamente. Você pode esconde-las, pode ignora-las, pode até mesmo nega-las. Mas elas vão estar ali, com você. Para sempre.
Respirei, e continuei.
- Lucas me levou ao apartamento que ele tinha no Centro de Paris. Eu lembro que tremia, de medo e de choque. Pela primeira vez, sentia odores que não conhecia, ouvia sons que nunca haviam tocado meus ouvidos e via cores que não tem nome. Suja e molhada. Ele me sentou no sofá, e me perguntou:
- Você é a garota LeBion, estou certo?
Lembro que não lhe respondi. Apesar de falar de modo paciente e compreensivo, Lucas era sedutor demais. Eu nunca tinha visto nada como ele antes. Seu rosto, sua voz, sua pele tão pálida quanto a minha. Eu, que sempre tive uma personalidade dominadora, me vi submissa a ele. Era como se ele fosse o dono meus olhos e minha atenção mas, com esforço, ainda mantive minha voz para mim.
Ele continuou a falar.
- Filha de Jean-Luc LeBion e Dona Isabella de Albuquerque, se fiz minha pesquisa corretamente. Tenho observado a sua família há alguns anos. Desde antes de você nascer, Carolina. Seus pais tem o odioso hábito de frequentar a igreja e acreditar em qualquer coisa que lhes disserem. Serei sincero com você, eu sempre odiei esta alienação passiva. No entanto, preciso congratular seus pais pelo trabalho que fizeram com você. - Lucas me fitava satisfeito.
Ao ouvir a menção do nome de meus pais, a quem eu não via havia alguns anos, inevitavelmente as lágrimas brotaram em meus olhos. Minha respiração parou quando o vi caminhando lentamente em minha direção. Olhei para baixo, tímida, e ele levantou meu queixo suavemente. Me dominando com os olhos de gelo.
- Não tenha medo, minha criança. Eu tenho intenção alguma de lhe causar mal. Você agora é minha, e eu prezo pelo que é meu. Meu nome é Lucas Malta, e eu acabo de te dar um presente. - como quem confessa um pecado, ele me disse - A dádiva da noite.
Senti sua língua passando confortavelmente pelas feridas, ainda abertas, que ele havia causado em meu pescoço. Tive calafrios de prazer incabíveis na ocasião. Entretanto, reais.
Lucas me despiu.
Em meu êxtase, eu ainda era castigada pela sede. Mas haviam tantas outras sensações novas pungindo em mim que eu não conseguia me sentir afligida exatamente por ela. Ele estava sobre mim no sofá de veludo, nossas silhuetas dançando à luz da lareira acompanhavam nossos movimentos de um jeito fantasmagórico e belo.
Saciado, Lucas pôs o polegar em minha boca, e disse relevando sem pudor os dentes que, agora, eu também tinha:
- Carolina, minha pequena corruptora de homens bons. Seria você a fiel que eu tanto procurei?
E se levantou subitamente. Meus olhos, ainda se acostumando à minha nova condição, não conseguiram entender bem como ele apareceu vestido e alinhado tão rápido. Passado o momento, a sobriedade novamente tomou conta de mim. Não compreendia bem meus sentimentos para com aquele homem, que acabara de sair pela porta.
Pouco a pouco, aquele apartamento passou a falar comigo. A me contar coisas que eu não queria ouvir, eu juro que podia ver as paredes me oprimindo e me senti culpada e imunda pelo que havia feito. Olhei para mim mesma e me vi nua e suja de sangue. Sangue do homem que achava que ia me fazer feliz.
Eu chorei novamente, dessa vez não lutei contra as lágrimas. Fui até o banheiro, precisava me ver, precisava lembrar quem eu realmente era, pois sentia como se não me conhecesse mais. Havia um espelho, mas ao me por de frente à ele, não havia nada o que refletir.
Eu não era nada. Não era ninguém. Gritei em desespero por não saber mais o que eu era e odiando meu destino. Mas mais do que tudo odiando, eu nunca odiei alguém como odiei Lucas naquele dia. E por isso as últimas palavras que ele disse antes de sua saída nunca me saíram da cabeça. O que era esta “fiel” a quem ele procurava? Porque foi exatamente esta a palavra que ele usou. Fiel.
Houve um silêncio incômodo quando parei de falar. Acredito que Máira estava esperando que eu continuasse, e quando percebeu que eu não o faria, disse:
- Lucas gosta das mulheres do seu clã fiéis a ele, isso é muito estranho?
- Não. E por cem anos achei que ele quis dizer exatamente isso naquela primeira noite que eu tive como vampira mas, lendo este livro, uma luz se acendeu em mim. Com o tempo eu me conformei, achava que ele tinha me escolhido aleatoriamente, apenas para satisfazer seus desejos. Porque, bom, nós fazemos isso com os mortais. Mas, se ele realmente tiver este plano de forjar uma aliança com Lucifer e precisar de um intermediário aqui, talvez eu não tivesse sido um acaso afinal de contas. Não, Máira…eu estou começando a suspeitar que Lucas me usou como um peão de tabuleiro. - eu mesma me assustei ao notar o tom da minha voz. A ira escorria de minha boca como se fosse sangue.
- Calma, você não acha que ele te transformou pensando que você fosse essa figura do livro que tem o poder de fazer anjos descerem para este plano e etcetera, certo? Esse livro é bem obscuro em alguns pontos, concordo, mas ele foi claro ao dizer que “o fiel” que vai trazer Samael para este plano deve ser uma alma casta que foi deturpada pelas trevas. E, sem ofensas, mas você tem cara de que queimaria ao entrar em uma igreja mesmo quando era mortal.
- Exatamente. Eu sempre odiei este hábito dos meus pais. Cheguei fugir da minha primeira comunhão, em plena cerimônia. Mas talvez Lucas não soubesse disso. Minha família era muito devota, mas eu nunca fui. Se Lucas roubou a minha vida para que eu fosse um joguete nas suas mãos, não importa se ele tiver Lúcifer ao seu lado ou não, eu vou matar aquele infeliz.
Um cuco escondido atrás de uma lamparina antiga nos avisou que já eram sete horas - Acredito que seja a hora de finalmente pormos tudo isso em pratos limpos e resolver este mistério. Você vem comigo?
- Acho que fico mais confortável aqui, fora de qualquer risco a minha existência. Prefiro ficar aqui e esperar as novidades.
- Medrosa. - eu disse me levantando, pegando minha bolsa e indo até a porta - É melhor chamar a polícia. Daqui a pouco seus vizinhos vão começar a feder.
Me despedi do porteiro, que desta vez estava acordado, e avisei que a saída de emergência - que eu mesma tinha aberto - estava destrancada e que seria perigoso se passasse a noite toda assim. Busquei na minha bolsa o papel onde Beatriz havia escrito o endereço novo enquanto caminhava pela orla da cidade. Notei que parecia ter passado muito tempo desde que chegara ali com Máira desacordada nos meus ombros, era difícil pensar que tudo aquilo havia acontecido a menos de vinte e quatro horas.
Por estar queimando em emoções, demorei a encontrar o pedaço de papel. Quando finalmente li o endereço na cuidadosa caligrafia de Beatriz. Sorri, e lembrei de um distinto escritor e diplomata que conheci em um 'rendez-vous' algumas décadas atrás em Paris. O Sr Alves estava um pouco deslocado por ter chegado à cidade havia pouco tempo, mas logo ficou à vontade quando nos conheceu por sermos os únicos que também falávamos português na reunião. Apesar de seu francês ser impecável, ele justificou sua escolha de ficar conosco dizendo que nada era mais confortável do que ouvir a língua materna novamente, só que tanto Lucas quanto eu sabíamos que, na realidade, ele havia se encantado com a minha presença. Lucas se incomoda bastante com a aproximação do Sr. Alves, apesar de eu achar seus esforços para me agradar bastante educados e polidos. Eu tinha certeza de que ele o mataria ao final da noite, e genuinamente não me importaria com isso, não fosse pela cena armada por Manoela, que ainda estava conosco na época. Precisamos sair prematuramente da festa. Nunca mais voltamos a ver o Sr. Alves com vida, ao saber da notícia de seu falecimento, Lucas prometeu que ainda pisaria sobre o seu túmulo.
E agora, de certa forma ele cumpria sua promessa, nossa nova casa se situava na Rua João Luis Alves.
Perdida em meu próprio rancor, eu caminhei do Leme até o bairro da Urca sem muita demora. Era uma típica noite de outono carioca, agradável e amena. Reduzi a velocidade quando cheguei à Urca afim de conhecer a vizinhança, afinal, havia estado pouquíssimas vezes naquela parte da cidade. Pessoas de alta classe se reuniam no que parecia ser um inusitado ponto de encontro do bairro: uma mureta que tinha vista para a bela enseada de Botafogo. Logo encontrei a rua que procurava, e pude ver que Lucas não a escolhera apenas por uma pequena vingança pessoal. Haviam muitas casas luxuosas naquela rua, com o padrão europeu que ele tanto gostava.
Lembrei de seu sorriso triunfante e senti desprezo. Se ele queria tanto o Inferno, eu lhe daria com prazer.
Havia um portão gradeado entre dois muros de hera bem conservada logo na entrada de nossa casa. Passei por ele e caminhei pelo pequeno jardim, que tinha flores desabrochadas apesar de já termos passado, há muito, da primavera. À minha frente se erguia a acinzentada construção clássica que mais parecia uma miniatura dos antigos palacetes vitorianos. Meu novo lar.
Subi os dois pequenos degraus que compunham a soleira da entrada e toquei nas portas de madeira lisa e maciça que se abriram como se me esperassem. Dentro o ambiente era bastante aconchegante, parecia menor que a nossa antiga morada no Catete e mais quente.
O primeiro cômodo era uma espécie de sala de estar decorada com poucos móveis. Basicamente havia uma mesa de centro retangular, ampla e baixa, no meio do aposento. Ao redor da mesa, de modo planejado, foram dispostos sofás que pareciam bastante aconchegantes. Eram sofás básicos, sem qualquer adorno ou enfeite. Dispostos em pares e idênticos em todos os outros aspectos, diferiam apenas em suas cores, sendo pretos os que tocavam a parede aos fundos e vermelhos os que ficavam nas laterais da mesa de centro. Às costas destes últimos se erguiam dois pequenos lances de escada, um de cada extremidade do cômodo, que se encontravam num mezanino moderno.
E lá, debruçado sobre as grades cor de chumbo do mezanino, Lucas me observava. Camisa social dobrada até os cotovelos e aberta nos primeiros botões, preta como seus cabelos. Trazia uma garrafa de cristal cheia até a metade com um líquido escarlate e uma taça do mesmo material e com o mesmo conteúdo na outra:
- E então?
- Estou surpresa, - e realmente estava, mas com a minha reação. Imaginei que toda aquela ira dentro de mim me fizessem pular sobre sem qualquer aviso, mas me mantive calma e resolvi que iria jogar um pequeno jogo com ele. Enquanto subia a escada colada à parede esquerda para me juntar a ele - Conhecendo você esperava uma decoração muito mais, como posso dizer... barroca. Olha, eu sabia que viveria para sempre, mas não achei que fosse ver o dia em que Lucas Malta decoraria uma casa sem um papel de parede ornado em flores-de-lis ou veludo nas mobílias. Você até abriu mão de uma lareira na sala de estar. - deixei que ele me desse um beijo - Parece que os tempos estão mudando, não é mesmo?
E lhe sorri, maliciosa.
- Eu tive ajuda na decoração, devo admitir. - Lucas se voltou para a parte interna da casa, que se revelou um corredor largo e claro, dando as costas para o mezanino e examinou com o olhar de um artista que acabou de concluir um trabalho. - Não é realmente o tom que eu escolheria para a casa se tivesse feito sozinho, entretanto, acredito que tenha sido melhor assim. Estamos quase na virada da década, não seria prudente se continuássemos com aquele antigo mobiliário. - ele deixou seus olhos mais uma vez pousarem pelo corredor vazio antes de beber o último gole de sangue e voltar a olhar para mim - Mas a minha pergunta não se referia à casa. Você passou um dia inteiro fora, se eu não a conhecesse estar preocupado. No entanto, estou somente curioso. Como você conseguiu salvar a Aaba?
Tomei a taça de sua mão e estendi para que ele a enchesse com o resto de sangue que havia na garrafa de cristal percebi, então, os detalhes bem trabalhados em seu material. O velho Lucas estava ali, apesar dos filtros.
- E como você sabe que eu a salvei? Pensei ter ouvido você dizer que ela estava condenada, que era impossível.
- Exato. Mas nós vivemos juntos tempo o bastante para que eu possa notar sua predisposição em cruzar o limiar da possibilidade. - ele pôs a mão no meu queixo e em fitou com uma felicidade perturbadora - Se não quiser falar, eu respeitarei. Não é como se eu me importasse com a sua amiga, exatamente. Ah! E já que estamos falando de aliados, me acompanhe. Quero que você conheça alguém.
Lucas levemente tocou a minha cintura e, relutante, deixei-me conduzir pelo largo corredor que se abria a nossa frente. Primeiro, passamos pela porta fechada do que era o quarto de Beatriz, e ele me disse que ela estava fora caçando. Havia sido uma noite agitada, aparentemente. Em seguida, havia o que que parecia ser uma outra sala de estar, apesar de haver uma cama discreta, mas bem arrumada em seu interior. A porta estava aberta e eu pude ver dois corpos desfalecidos no fino tapete preto que forrava o chão. Um homem e uma mulher. Ela, que morreu de olhos abertos, tinha êxtase e satisfação em seu olhar vítreo. A mulher morta me olhou e eu não pude deixar de me ver em seus olhos. Talvez eu fosse tão descartável quanto ela, talvez meus olhos tivessem se pintado do mesmo vazio antes que ele resolvesse me trazer para si. Meu interior se revolvia em ódio daquele homem e eu sabia que não aguentaria aquele disfarce por muito mais tempo. Não havia sinal de sangue em seus corpos, bem como no tapete, e então, eu soube de onde tinha vindo o sangue que havia enchido a garrafa que provei.
- Perdoe-me pelo desleixo, - disse Lucas fechando a porta - eu tinha acabado entreter nossos visitantes no momento em que você chegou. Ainda não tive tempo de dar fim aos corpos. Este, inclusive, é o nosso quarto de hóspedes, - e me deu um daqueles sorrisos tortos e perturbadores antes de falar em voz baixa - você sabe para que ele serve. Vamos seguir?
Havia uma larga porta dupla bem no meio do corredor, as portas eram brancas e simples. Fora sua altura, que subia até tocar o pé-direito da casa, poderia-se dizer que era simples como um par de portas que acabou de sair de uma marcenaria rudimentar. Mesmo sua maçaneta era de um singelo metal liso e bronzeado.
Caminhamos até lá.
Havia algo emanando por detrás daquelas portas. Algo incômodo, que começou como uma leve impressão mas, a cada segundo, aumentava. Ia se mesclando a todo o asco e repulsa que agora eu tinha por Lucas. Até que tomou conta de mim inteiramente, a cada passo que eu dava, podia perceber meus sentidos se pondo em ataque, eu estava alerta como fico quando passo dias sem beber, o que era estranho, pois eu havia acabado de tomar uma taça de sangue ainda fresco.
E mais, havia algo de familiar naquela sensação. Mas eu não conseguia exatamente lembrar onde havia experienciado aquilo anteriormente, a coisa realmente me desconcentrava.
- E este, doce Carolina, - Lucas parou em frente às portas simples e intrigantes - é o quarto do NOSSO hóspede. Sei que você tem muitas perguntas a serem respondidas, e sei o quanto fui negligente com a sua criação. Você precisou aprender muito sozinha. Mas meu silêncio tem uma justificativa, eu precisava que você não soubesse, pois achei que fosse caber a você a parte mais importante do meu plano - enquanto ele falava, eu revolvia meus arquivos a tentar lembrar, lembrar de onde eu conhecia aquele sentimento tua incômodo. Então veio um nome na minha mente. Só podia ser ela!
- Tive o prazer de ver você se tornar uma de nós e uma das melhores. E hoje, você vai saber que todo o seu sofrimento foi por um bem maior. Para o nosso bem maior.
- Catharina! - eu não consegui evitar dizer.
- Perdão? - Lucas disse sem entender.
- Todas as vezes que eu esbarrei com Catharina através dos anos, foi esse mesmo sentimento. Essa mesma sensação incômoda e inquietante. - meu tom de voz era alto, e eu percebi que já não estava mais sustentando a imagem de doce e tenra parceira. - Eu descobri seu plano, seu merda.
Um arrastar de agulha rápido veio de dentro do cômodo ainda fechado e sem demora uma música começou a tocar. Pesada e dramática demais. “Amadeus,” - pensei - “nunca pensei que conheceria Lúcifer ouvindo a merda de Wolfgang Amadeus Mozart.”
- Eu sei qual é o seu plano. - repeti - Você me usou. Você tirou tudo de mim para que eu fosse “a parte mais importante do seu plano”. Eu teria sido feliz, Lucas. Eu teria tido uma vida! E você me negou isso por puro egoísmo! Máira me contou que o plano inferior já cochicha sobre a sua intenção de se aliar a Lúcifer e tomar o Inferno. Eu sei que tem um anjo atrás dessas portas, e não qualquer um. O príncipe do Inferno está aqui e….
As portas se abriram com um clique de fechadura bastante audível. E de lá ouvi pela primeira vez sua voz aguda como a de um tenor.
- Acredito que esteja me confundindo com o meu irmão, senhorita LeBion. - ele tomou minha mão nas sua e se inclinou beijando-a - Eu sou Rafael, encantado."
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017
Ver047
“Esperei que ele se repetisse. Demorou até eu quase
desistir, mas lá estava novamente o barulho. Como se alguém buscasse ar no
espaço, um esgarçar de cordas vocais grave que, desta vez, culminou um acesso
de tosse. Ainda molhada corri até a sala tentando, nos poucos metros que tinha,
conter minha esperança.
Máira, agora já totalmente em sua forma original, se
debruçava sobre os joelhos quando eu adentrei na sala. As asas dracônicas
riscavam a parede a cada tosse que dada. Ela expeliu algo, mas dessa vez não
era o mesmo líquido verde a pastoso de antes, mas um fluido translúcido e com
algumas bolhas. Deu pela minha presença ao levantar a cabeça para inspirar. Os
olhos, agora inundados de um verde brilhante focaram em mim e eu juro que eles
me sorriram antes dela dizer com a voz fraca:
- Eu agradeço tudo que você fez por mim, de verdade.
Mas estou fraca demais pra retribuir desse jeito, você pode botar umas roupas,
por favor.
Foi quando eu percebi que ainda estava nua e, sem me
importar minimamente com isso, fui até ela e a abracei à despeito dos seus
lamentos de dor. Contei a ela tudo que tinha acontecido desde a nossa batalha
na Vogue e respondi porque não estávamos no seu apartamento. Ela fez menção de
levantar e atravessar o corredor, mas sentiu vertigens antes mesmo de chegar à
porta, por isso a ajudei a retornar ao sofá antes de ir até o quarto pegar
roupas limpas para nós duas. Eliane tinha deixado alguns vestidos lá no armário
e tínhamos as medidas parecidas, apesar do gosto diametralmente oposto. Por
falta de opções, saí do quarto com um vestido verde escuro com uma estampa de
pequenos círculos multicoloridos. Para Máira que era maior que eu, uma camisa
do dono da casa serviu.
- Meu vizinho tinha cara de quem tomava cappuccino? -
perguntou-me enquanto se vestia, sua segunda pele gradualmente ia cobrindo o
corpo infernal - Eu realmente poderia tomar uma xícara ou duas de algo quente
agora.
- Bom, - eu disse procurando nos armários da cozinha -
ele tinha um pó de café barato aqui, acho que é o máximo que posso fazer por
você agora.
- Se eu não morri com todo aquele sangue, não vai ser
um café seu que vai me derrubar.
Primeiro, a alegria de vê-la viva e, na medida do
possível, bem, me embriagou. Mas a cada frase dita, a cada gesto dado eu via
algo de diferente em Máira. Ela ainda falava do mesmo jeito desbocado e
espirituoso, mas era como se estivesse ponderando alguma coisa lá no fundo. Talvez
alguém mais distraído não percebesse, porque ela realmente estava tentando
parecer à vontade, mas, como eu disse, eu sempre fui boa em ler os
outros.
Saí da cozinha com duas xícaras de café preto. Duas
por força do hábito, mas dessa vez não toquei na minha. Máira tomou a dela com
bastante açúcar e depois tomou a segunda, pura. Já estava com aspecto humano a
essa altura, tinha escolhido cabelo castanho escuro e levemente ondulado até
altura dos ombros dessa vez. E olhos azuis-piscina, que me observavam por cima
da xícara.
- O que foi? - ela disse quando terminou.
- Sou eu que pergunto. Está tudo bem? Quer dizer, você
parece estar bem, apesar de tudo. Mas eu acho que você ainda está segurando
alguma coisa aí dentro. Você se recuperou mesmo? Se estiver precisando de
alguma coisa, por favor, avise.
Máira desistiu de sua máscara-está-tudo-bem-agora
e penetrou em mim com seus novos olhos por alguns segundos prendendo a
respiração, então disse preocupada:
- Não o tipo de assunto para se conversar na casa de
estranhos. - e se levantou com cuidado - Vamos, acho que já consigo ir até o
meu apartamento.
Fiz menção de ajuda-la a chegar em casa, mas ela não
precisou. Já caminhava bem e quase não havia mais sinais de qualquer fraqueza
nela. Não, não era algo sobre sequelas da batalha que ela estava escondendo.
Peguei as xícaras e a cafeteira e levei para o apartamento de Máira, afim de
cobrir rastros quando viessem investigar a morte do proprietário e sua
namorada. Antes mesmo que eu perguntasse, ela disse:
- Sim, você pode entrar. Deixa as xícaras lá na pia,
são um pouco cafonas, mas eu perdi a minha em algum lugar por aqui. - e apontou
pra bagunça que ainda se fazia em seu apartamento, mas que dessa vez não me
saltou tanto aos olhos. Talvez eu já tivesse acostumando e me sentindo
confortável naquele lar.
Quando voltei, sentei sobre uma pilha de livros de
frente para a mesa onde ela estava sentada em uma cadeira.
- E então? – perguntei.
- O assunto é um pouco longo.
- Tudo bem, eu não vou a lugar nenhum pelas próximas
treze ou doze horas mesmo. - e apontei para a varanda que deixava entrar a luz
do sol num ângulo ainda não muito perigoso - Inclusive, você pode fechar aquilo
pra mim?
Ela fechou as persianas que cobriam a porta da sua
varanda, e ligou um interruptor que se escondia atrás de uma mesinha de canto
que abrigava algumas garrafas vazias. Quando voltou, sentou sobre uma outra
pilha de livros ao lado da minha. Me fitou do mesmo modo apreensivo que o tinha
feito na casa de Debóhra e finalmente disse:
- Olha, nada disso é certo, tá bom? Eu não tenho
nenhuma comprovação disso que vou dizer, mas dado o histórico do seu amigo, - e
a palavra amigo veio envolta em muito sarcasmo - acho que você deveria saber.
Pode ser o começo de alguma coisa realmente grande.
Me mantive calada enquanto ela estudava por onde
começar.
- Eu quase morri dessa vez.
- Eu notei - respondi.
- Exceto que nós, demônios, não morremos. Toda vez que
nossa forma neste plano deixa de funcionar por algum motivo, somos novamente
levados ao Inferno. Uma projeção nossa é obrigada a caminhar em direção ao
portal mais próximo, e de lá somos levados até o plano inferior.
- Nós ainda temos alma? - era uma oportunidade
perfeita para tirar a dúvida que me intrigava há décadas.
- Porra, claro que sim! Na verdade, é sobre
nossas almas que tudo isso se trata. Desde A Queda, eles lutam pelas nossas
almas. As nossas e as dos mortais. Estrela da Manhã e o que eles chamam de Deus
estão basicamente jogando um jogo de damas eterno pra ver quem come mais almas
pro seu lado.
- Eu nunca gostei desse pensamento. - me peguei
dizendo - Acho simplório demais, dicotômico demais e não me parece certo. Minha
família era extremamente religiosa e dizia que eu precisava concordar com o que
eles diziam para, entre aspas, ser salva. Nunca acreditei que seguir um monte
de regras e dogmas me salvariam ou condenariam de nada, e muito menos que outra
pessoa possa dizer para onde minha alma iria depois que eu morresse. Na minha
visão somos nós mesmos que nos salvamos, sempre que somos verdadeiros e fiéis
àquilo que acreditamos.
- Nossa, as reuniões de família deviam ser realmente
animadas na sua casa. Eu concordo com você. - depois da brincadeira, ela voltou
a ter o tom preocupado na fala - Então, essa coisa…nossa alma, ela é guiada
pelo portal até chegar aos portais do Inferno. “Vós que aqui adentrais perdei
toda a esperança”, aquilo mesmo que você ouviu falar. Uma vez cruzados os
portões, não tem volta. Precisamos procurar outro portal para subir e, como eu te
falei, eles estão cada vez mais escassos. Mas, nossa forma física fica aqui
neste plano. É só quando realmente entramos no Inferno que nosso corpo aqui
começa a desaparecer. Imagino que eu deva ter dado sinais de algo parecido, não
foi?
- Sua segunda pele começou a descolar de você e muitas
veias apareceram no seu corpo original. - respondi.
- Exatamente, isso era porque eu estava bem perto.
Quase na borda do meu portal, na verdade. - seus olhos estavam focados na
parede atrás de mim, mas refletiam a aversão que ela tinha àquele lugar - Eu já
podia ver os grandes portões, podia ouvir o Aqueronte correndo logo atrás
deles. Seu barqueiro asqueroso deveria estar babando para ter novas almas para
atravessar. Eu sabia que minha mãe, ou pior, alguma das minhas irmãs enviadas
por ela estariam me esperando com o par de moedas necessário para a travessia e
que, depois, minha vida seria outro sem-número de anos vagando por cada um dos
nove círculos, ouvindo lamentos e gritos de agonia, até conseguir achar alguma
saída de volta para cá.
Máira se calou por um tempo depois disso, o que me fez
pensar em quantas vezes ela já havia passado por aquilo. Depois me surpreendeu
com um sorriso, um sorriso amplo e aliviado. Seu sorriso era mais para ela
mesma do que para mim.
- Mas aí você me salvou bem a tempo. - o peso que ela
trazia na voz parecia ter dado lugar à uma animação contagiante, apesar da
curiosidade permanecer em mim, eu gostava mais dessa Máira despreocupada. Peso
nunca combinou com ela - Eu lembro de estar andando em passos lentos pra em
direção ao portão enquanto outros passavam por mim, os que já tinham quem os
recebesse para fazer a travessia. Vi o barqueiro fazer três viagens enquanto os
outros que chegaram comigo já tinham ido quase todos. O único som eram os
latidos que o Cão que guarda os portões dava esporadicamente, eles têm o
barulho de trovões. Cheguei a nutrir uma leve esperança de que teriam me
esquecido, que nem mamãe nem nenhuma das minhas irmãs viesse. Eu sempre acabo
nutrindo essa esperança. Mas logo vi alguém vindo. – ela fez um suspense
proposital antes de continuar - Você quer dar um palpite de quem minha amada
mãe mandou para me buscar?
- Não, ela não fez isso! - e percebi que também estava
me divertindo com aquela conversa.
- Sim, ela fez. Triskele tem um jeito muito peculiar
de educar suas filhas, sabe? A demora estava explicada quando eu vi aqueles
passos desengonçados vindo em minha direção. Imaginava que Debóhra estivesse
furiosa comigo e já começando a me preparar para um embate quando ela me pegou
pelo braço e começou a arrastar para longe dos portões, a direção oposta de
onde deveríamos ir. O barqueiro protestou, mas ela fez um gesto obsceno e
mandou que ele fosse dar mais uma volta no rio.
- O que ela queria?
- Saber de você. É, eu fiquei com essa mesma cara. Ela
pareceu ter esquecido todo o acontecido em sua casa anteontem e Debóhra
realmente é do tipo que guarda mágoa dos outros, então julguei que tinha
acontecido algo importante. Cheguei a pensar que você também tinha sido
exorcizada lá na boate, mas não dei a ela o gosto de ver a minha preocupação.
Ao invés disso, perguntei o que é que a “sanguessuga ruiva” tinha de tão
importante. E minha irmã me respondeu que não era você, mas sim seu
companheiro.
- Lucas? - por essa eu não esperava - O que Lucas tem
a ver com tudo o que aconteceu com Debóhra? Ele nem foi conosco à casa dela.
- Eu te contei que Lucas era famoso e infame ao mesmo
tempo lá no nosso mundinho inferior. Apesar de não saber se ele já esteve lá
alguma vez, meu palpite é que não, sua reputação o precede. Poderoso e
ambicioso ele é muito respeitado no Inferno, mas também tem muitos inimigos
velados que não esperariam para lhe passar a perna. Debóhra, que chegou lá
antes de mim, revelou-me que correm boatos lá de que Lucas está tramando alguma
coisa grande. E perigosa. Você está sabendo de alguma coisa?
Pensei um pouco antes de responder:
- Ele tem insistido que tem algo para contar para mim
e para Beatriz já faz algum tempo. Mas não acho que seja algo dessa
magnitude, quer dizer, ele sempre gosta de atenção quando vai fazer alguma
coisa para o nosso clã. “Vamos nos mudar”, Lucas quer um grande anúncio. “É
preciso passar o inverno em Amsterdã”, reserva uma mesa no melhor restaurante
de Paris só para contar isso. Ele tem essa mania de grandeza mesmo, por isso
não acho que seu plano seja tomar o Inferno de Lúcifer ou algo assim.
- Mas é. Ou pelo menos é isso que alguns dizem.
Debóhra não conseguiu me dizer exatamente tudo que ela ouviu, não deu tempo. No
meio da nossa conversa o portal me sugou de volta para cá. Você precisava ver a
cara dela. Mas ela teve tempo de me contar que dizem por lá versões diferentes
sobre o mesmo fato: Lucas Malta tem um plano. “Malta está formando um exército
para invadir o Inferno”, alguns dizem. “Malta descobriu a cura para voltar a
ser mortal.”, é o palpite de outros. Ou ainda, “Malta teria o Livro dos
Espíritos em sua posse, e o usaria para saber o ponto fraco de todo e qualquer
possível oponente.”. Mas a teoria mais aceita, segundo minha irmã, que seu
namoradinho estaria fazendo negócios com um Arcanjo.
- Ele nunca foi meu namorado. – disse prontamente -
Acho que as coisas estão desanimadas lá pelo Inferno, não é? Para ficaram
conjecturando coisas assim. Estão faltando almas perdidas para torturar? - essa
história toda realmente não fazia sentido para mim - Ou será que a sua adorável
irmã não resolveu nos pregar uma peça?
- Eu pensei sobre isso, definitivamente era algo que
ela faria, mas alguma coisa não encaixa. Tudo bem, talvez ele não esteja planejando
algo tão grande. Mas ele tem o livro. Eu vi, você viu. E, Carolina, esse livro
estava perdido há milênios! Só alguém com que pudesse acessar a triqueta
saberia onde ele encontra-lo, e somente uma casta de anjos tem esse poder. Os
primogênitos.
- E quem são esses?
- Você deveria ter ouvido a sua mamãe e prestado
atenção nos estudos de religião, menina rebelde. Esse é um outro nome para os
Arcanjos. Supostamente os mais poderosos do lado de lá. Foram os primeiros que
o “Todo Poderoso” - ela fez aspas imaginárias com os dedos ao mencionar o
título - criou. O que corrobora com o boato que Debóhra me contou: se ele tem o
livro que somente um arcanjo encontraria...
- É bastante improvável que Lucas se envolva com
anjos. De qualquer casta. Você viu como eu e a Catharina temos conflitos, mas
poderíamos ser consideradas grandes amigas se você visse o modo com o qual ele
fala deles. Definitivamente, você está dando atenção demais ao que sua irmã
falou.
Máira refletiu por um momento, suspirou fundo e
pareceu concordar comigo. Até que algum pensamento fez a dúvida retornar.
- Você provavelmente está certa. Mas tem uma coisa que
ainda me faz pensar, Debóhra não disse “potestade, “serafim”, ou algo genérico
como “anjos”. Ela foi específica, dizem que ele está tendo encontros com um
arcanjo. E eles não são muitos. Na verdade, o que me incomoda é que, se você
pensar um pouco, as possibilidades se reduzem a um suspeito só. Isso já
aconteceu uma vez, um arcanjo se rebelando, digo. E as coisas não ficaram nada
pacíficas. Durante A Queda, Samael tinha um terço dos anjos do céu lutando
ao seu lado, mas ele não começou com tantos aliados assim.
- Lúcifer era um dos arcanjos? - interrompi sua cadeia
de pensamentos.
- O mais bonito deles, segundo a minha mãe. Eu nunca
vi nenhum dos outros, mas lembro de tê-lo visto três vezes. Não costumo descer
ao Nono Círculo, mas minha mãe já me mandou dar recados lá, e posso corroborar,
o filho da puta é bonito. Em algum momento, talvez durante A Queda, ele tingiu
as asas de preto, do mesmo tom que os cabelos encaracolados que emolduram
seu rosto. O nariz e sua boca parecem ter sido esculpidos em pedra, dando
a ele um ar muito erudito e ao mesmo tempo, para sempre jovial, entende? Mas
são os olhos que te atraem. Aqueles olhos acinzentados parecem te atravessar e
ver todos os pecados que você já cometeu na vida. E te condenam. Mesmo que você
seja um demônio, se sente arrependido dos seus pecados quando ele olha pra
você. - Máira suspirava num misto de desejo e receio enquanto lembrava dele.
Confesso que eu também fiquei tocada só de imaginar tal figura. Ela continuou,
agora voltando ao seu argumento”
- Minha irmã confidenciou que mamãe está
bastante sentida com ele, por ainda não ter sido informada de nada. Ela acha
que Samael está planejando uma nova investida contra o Paraíso e está, como da
primeira vez, escolhendo os aliados mais poderosos primeiro. E Lucas Malta é -
ela pensou um pouco revirando os olhos para cima - provavelmente o infernal
mais poderoso neste plano atualmente.
Eu estava boquiaberta. Nunca tinha realmente comprado
essa ideia de que Lucas fosse tão poderoso ou influente assim, mas depois desse
argumento também fiquei um pouco curiosa. Parte de mim queria levar tudo aquilo
às claras, mal podia chegar em casa para contar tudo aquilo pra Lucas. No
entanto, outra parte se sentia insegura, se tudo aquilo fosse verdade, se
realmente Lucas tivesse sido convocado para uma segunda guerra entre planos,
levaria seu clã junto. E eu me sentia muito pequena perto à um confronto dessa
magnitude.
No meio da indecisão, uma ideia. Lembrei que ainda
estava com o livro, na minha bolsa.
- Você me disse que o Livro dos Espíritos mostra o
modus operandi e como combater qualquer demônio já catalogado, certo?
- Sim, toda e qualquer casta está lá. - Máira foi
assertiva.
- Então, deve haver algo sobre Lúcifer lá…- disse
ainda lembrando daqueles olhos cinza-chumbo que pareciam me observar desde que
os concebi em minha mente.
O rosto de Máira se iluminou com aquela perspectiva.
Sem o mínimo sinal de que ela estava entre a vida e a morte pouco mais de uma
hora atrás, foi até a minha bolsa ela mesma. Voltou a sentar ao meu lado e
passou as páginas. Ver aqueles caracteres indecifráveis para mim cada vez me
incomodava mais, eu odiava que conhecimento me fosse negado. Na verdade, odiava
que qualquer coisa me fosse negada.
Então, ela parou. Uma figura desenhada na parte
superior da página, em destaque, mostrava uma versão rudimentar da figura
descrita à mim antes. E lá estavam eles. Os olhos. Tornando inúteis todas
aquelas palavras que eu não sabia ler e denunciando que sim, Lúcifer, A Estrela
da Manhã, estava no livro.
- Temos mais de doze horas até amanhecer. Que tal você
aproveitar e saciar nossa curiosidade enquanto me ensina a ler enoquiano?
Máira se levantou sem responder. Foi até a sua cozinha
e voltou com uma palmatória de madeira antiga, bem rudimentar.
- Roubei de um dos virgenzinhos alguns séculos atrás.
Era assim que os professores ensinavam os aprendizes deles na época. Sempre
quis bancar a professora mesmo, - e me olhou com malícia - e sempre quis usar
isso em alguém também. Vamos ver de quantos erros você precisa para ficar
vermelha.
Eu definitivamente adorava estar na companhia dela.
Aceitei a brincadeira.
- Então vamos lá: lição número 01…
Passamos o resto do dia e boa parte da noite lendo
sobre a volta de Lúcifer para este plano, e cada linha lida, os boatos ganhavam
mais veracidade. A cada página passada, eu esperava mais ter um ser celestial
de primeira grandeza me esperando em casa quando voltasse.
E quanto a isso eu estava certa"
terça-feira, 27 de dezembro de 2016
Ver046
“Meus
sentidos estavam mais aguçados do que o normal enquanto corria para
trás do prédio procurando alguma entrada nos fundos, a urgência da
ocasião me deixava mais alerta. Encontrei uma saída de emergência
fechada, a porta de metal verde se destacava do prédio, que tinha
tons terrosos. Sempre imaginei que saídas de emergência deveriam
ficar desobstruídas, mas havia um cadeado que eu quebrei sem muitos
problemas apenas puxando-o para baixo. As dobradiças enferrujadas da
porta rangeram quando eu a abri, e por um momento eu poderia jurar
que alguém se aproximaria me obrigando a agir, mas o barulho apenas
se dissolveu no ar da madrugada.
Máira
pesava em meu ombro, e eu senti um pequeno alívio ao deita-la no
chão, mas não havia tempo para descansar. Com cuidado, rolei seu
corpo para dentro do prédio e vi que pedaços da sua segunda pele
ficaram em meus dedos. Limpei na barra do vestido que já estava sujo
e chamuscado enquanto seguia para a entrada principal do prédio. Era
arriscado, mas eu precisaria usar a porta da frente, precisaria que o
porteiro me deixasse entrar. Tudo que eu podia fazer era torcer para
que ninguém resolvesse usar a escada de incêndio naquela noite.
Jonas, o porteiro, outra vez dormia debruçado na mesa de recepção
e, do tapete que dizia “Bem-Vindo” eu bati palmas para que ele
acordasse.
Jonas
que era careca e aparentava mais idade do que realmente tinha, buscou
os óculos para me por em foco e, com o rosto ainda amassado de sono,
sorriu para mim dizendo:
-
Ah, eu lembro de você! Amiga da Dona Máira. Caramba, - ele checou o
relógio bocejando - está bem tarde…
-
Eu posso entrar? - disse ignorando suas frivolidades.
-
Ué, claro que pode, Dona. Por favor, entre. - Jonas estranhou a
pergunta, mas logo eu estava passando pela sua mesa num passo
apressado - Ei, a senhora se incomodaria de esperar um pouco? Preciso
interfonar lá para cima.
Voltei
até sua mesa sabendo que eu deveria negociar com ele apesar de não
ter muito tempo para isso. Passei a mão pelos cabelos, sorri e
falei:
-
Precisa mesmo? Você viu que ela me deixou subir outro dia. Acho que
podemos pular essa parte não é? - terminei piscando para ele.
-
Desculpe senhora, - ele respondeu visivelmente incomodado de ter que
fazer aquilo - é a política do prédio.
Vi,
apreensiva, ele digitando os números no interfone. Podia ouvir meu
próprio coração compassando acelerado, sentia minha garganta seca
apesar de ter bebido sangue há menos de uma hora. No tempo que o
interfone levou tocando lá no quarto andar para ninguém, eu pensei
no quanto Lucas ficaria furioso se eu fosse descoberta e tivesse que
matar todos naquele prédio. Sem resposta, Jonas retornou o fone ao
gancho e me perguntou:
-
A senhora tem certeza que ela está em casa? Não vi dona Máira
hoje.
-
Tenho, - menti usando minha melhor cara de amiga dedicada - na
verdade, ela está doente. Me acordou agora no meio da madrugada por
estar sentindo dores muito fortes e pediu para que eu viesse o mais
rápido possível. Se ela finalmente pegou no sono, o senhor não
acha que podemos evitar acorda-la?
Ele
ponderou mais tempo do que eu gostaria, era um daqueles poucos
incorruptíveis que gente encontra por aí. Rezei para que ele não
insistisse, caso contrário eu teria que mata-lo e realmente isso
seria uma pena. Ele olhou para mim e julgou que eu não faria nada de
mal.
-
Você tem a chave?
-
Tenho, ela me deu uma cópia.
-
Tudo bem, pode subir. Uhh, bom…se puder não falar nada sobre eu
estar dormindo…
-
Claro que não, fica sendo nosso segredo. - respondi já passando por
ele novamente.
O
portão de metal da saída de incêndio estava aberto conforme
deixei. Peguei Máira e quase a deixei cair, foi quando percebi que
minhas mãos suavam. De novo a pus em meus ombros e subi em silêncio
pelos oito lances de escada que me levariam ao seu andar. Nenhum
vizinho de Máira passou por mim nos degraus, e o seu andar estava
vazio. Agradeci por isso, porque meu plano era cuidar dela ali mesmo,
no corredor. Pelo menos até que ela tivesse com o mínimo de
consciência para autorizar que eu entrasse em seu apartamento. Mas
quando já estava em frente à sua porta ouvi o barulho de passos e
um molho de chaves balançando no interior do apartamento defronte ao
dela. Eram duas pessoas, e eu poderia senti-las se aproximando da
porta. Torci para que voltassem, que desistissem de sair, afinal já
passava das 4am.
Eles
não recuaram, eu tinha somente duas opções àquela altura, atacar
o casal ou entrar no apartamento de Máira sem autorização e lidar
com o que acontecesse. Nunca tinha cruzado essa linha e nem soube o
que efetivamente poderia acontecer comigo se o fizesse. Somente
imaginava que seria ruim.
A
chave foi posta na fechadura do outro lado do corredor, me vi
obrigada a agir naquele exato momento.
A
porta se abriu. Escondida na esquina do corredor eu podia ouvi-los,
notei que eram um casal que se despedia. Aos meus pés, Máira fez um
ruído asmático que denunciou nossa presença. Prendi a respiração
esperando que aquilo passasse despercebido, agora já quase não
havia segunda pele cobrindo seu corpo e pude ver expurgos de um
malcheiroso líquido esverdeado saindo de sua boca. Não havia muito
tempo.
Máira
arfou buscando ar outra vez.
-
Que barulho foi esse? - indagou a voz feminina.
-
Deve ser o cachorro do 408. Além de feder, aquele pulguento fica
latindo de madrugada.
-
Aquilo não foi um latido.
-
Você se preocupa demais, amor. Não tem perigo. O Jonas é o sujeito
mais caxias que tem, nunca deixaria alguém entrar sem ser avisado. E
o prédio todo tem sistema de alarme. Perigoso mesmo é você ir
embora daqui a esta hora. - a voz masculina se modulou numa
insuportável imitação infantil - Tem certeza que não quer ficar,
docinho?
Barulhos
de beijos. A casa era dele, ótimo, isso facilitaria muito as coisas
para mim.
-
Pára, Paulo. Você sabe que eu realmente preciso ir. Amanha, na
mamãe. Meio-dia, hein? Não se atr...
-
Vocês podem me ajudar? - cortei a conversa dos dois saindo da quina
que me escondia. Apesar de estar com o coração martelando as minhas
costelas a mil por hora, caminhei até eles lentamente, mancando em
decorrência de uma dor que não existia. Pus uma uma das minhas mãos
na barriga, como quem tenta estancar algum ferimento aberto, e com a
outra apoiei na parede.
-
Quem é você? - perguntou novamente a mulher.
-
Eu estava com uma amiga na praia, fomos assaltadas, levaram a minha
bolsa e... - deixei que a frase morresse numa voz embargada enquanto
sentia lágrimas descendo com calma pelas minhas bochechas. Lembrei
de Wolfgang, um diretor de teatro alemão que conheci quando a minha
companhia de ballet foi de Paris à Berlim para uma apresentação.
"O
teatro perdeu uma grande atriz.", era o que Wolf costumava dizer
a cada vez que eu negava seu convite para ficar na Alemanha em seu
grupo. E parecia que ele estava certo, porque enquanto a mulher
insistia em perguntar quem eu era, aquele que parecia ser Paulo veio
até mim prontamente.
-
Meu Deus! Você veio da praia até aqui? Esses vagabundos não tem
jeito mesmo, vem comigo. - ele pôs o braço que me segurava na
parede em seus ombros e caminhou comigo em direção ao seu
apartamento. - Vamos ligar para polícia e eu te faço um copo de
agua com açúcar ou um drink se você preferir.
-
Você vai levar essa mulher para a sua casa? - protestava a outra -
Nos mal a conhecemos! Ela pode ser uma assaltante, li no jornal que
tem muitas mulheres entrando para o crime hoje em dia.
-
Se ela quisesse nos assaltar, já o teria feito. Fui educado para
nunca deixar uma dama em dificuldades, você sabe disso. - ele parou
a poucos passos da porta e, com cuidado se virou junto comigo em
direção àquela que reclamava - Você vem ou fica, Eliane?
-
Eu vou para casa! - ela respondia visivelmente contrariada - E saiba
que teremos uma conversa séria amanha, Paulo Ricardo!
-
Obrigada - eu sussurrei em seu ouvido enquanto ouvia os saltos de
Eliane se encaminhando para o corredor, em breve ela iria ver Máira
no chão. Eu precisava faze-lo dizer.
A
um passo de passarmos da soleira de sua porta, eu endureci. Paulo não
esperava aquilo, julgava estar sendo meu apoio e quase caiu quando
tentou me guiar por mais um passo.
-
Eu posso entrar? - perguntei ainda sussurrando.
-
Mas é claro que pode, não se preocupe com Eli, ela está naqueles
dias sabe?
-
Me desculpe – foi o que eu disse antes de ataca-lo
Em
seguida veio o estridente grito de Eliane. Se mais alguem acordasse
naquele andar minha situação estaria mais complicada ainda, então
quebrei o pescoço de Paulo rapidamente, mas com o cuidado de não
causar nenhum sangramento. Ele caiu com um som abafado no tapete de
sua soleira.
Em
segundos, eu já estava com uma das mãos tapando a boca de Eliane e
abafando sua histeria. Ouvia movimentações sendo feitas em dois
apartamentos vizinhos, por isso, apesar de querer trata-la com um
pouco mais de crueldade, apenas bati sua cabeça contra a parede. Com
uma em cada mão, levei Máira e o corpo de Eliane para dentro do
apartamento de Paulo. O corpo do proprietário já estava metade lá,
e um leve chute bastou para que entrasse todo. Tranquei a porta e,
sem respirar aliviada busquei o Livro dos Ofícios na minha bolsa.
Levei
Máira até o sofá que havia na sala, seus chifres e rabo já
estavam materializados e não havia quase mais nada humano nela.
Veias arroxeadas começavam a se desenhar em sua pele alaranjada,
imergindo de seu pescoço e irradiando até o peito em todas as
direções. Apesar de inconsciente, havia uma expressão de profundo
sofrimento estampada em seu rosto. Sentei ao lado dela e comecei a
folhear o livro que tinha causado aquela confusão toda, ele pesava
sobre as minhas pernas e, em meu nervosismo, minhas mãos pareciam
atrapalhadas para virar as páginas com clareza.
Percebi
que o céu ia perdendo o tom azul escuro infinito da madrugada pelo
vidro da varanda com a visão periférica e corri para fechar aquela
cortina, bem como todas as outras que pudessem cobrir a luz da manhã
que viria. Ao voltar para o sofá, olhei para minha amiga e imaginei
que talvez já fosse tarde para ela, que eu tivesse falhado. Tinha
havido sangue demais, e, ao pensar nisso, eu tive uma ideia. Talvez,
se eu a mordesse, pudesse sugar todo sangue que a envenenara.
Pressionei meus caninos na base de seu pescoço, em uma das muitas
veias que agora já eram tão escuras como uma tatuagem, mas à
primeira menção de tocar o líquido que veio, minha língua o
rejeitou. Viscoso e ácido o fluido verde que ela expelia pela boca
era o mesmo que agora estava na minha e, por algum motivo, era
intolerável para o meu corpo.
Tomada
pela impotência, eu recorri ao livro novamente, achando agora a
página que abria o capítulo que tratava de sua casta infernal. Eram
cinco páginas, da descrição até o modo de se exorciza-la, todas
com colunas de texto mal diagramado e ilustrações sem perspectiva.
Como disse, eu ainda não era versada em enoquiano, portanto, à
primeira vista, mesmo o livro seria inútil. Minhas lágrimas
molhavam o papel amarelecido. Eram lágrimas de ira, de
inconformidade por estar de mãos atadas para ajudar alguém
importante para mim. Com raiva, passei a mão pelo papel molhado para
que as gotas não danificassem a página e minha mão parou bem sobre
um desenho que chamou a minha atenção. Parecia um esquema, um passo
a passo ensinando algo. No primeiro quadro, mostrava uma versão
rudimentar do corpo de uma Aaba, com a boca e olhos abertos, como se
estivesse gritando em espanto; e, nos outros, pares de mãos
despejavam um líquido escuro em sua boca aberta, seus ouvidos, seu
nariz e mesmo em seus olhos. Nesta exata ordem.
O
Livro dos Ofícios nunca me ensinaria a salvar Máira, aquilo foi uma
esperança desesperada. A publicação foda dada aos mortais para nos
condenar, afinal de contas. Então, inferi que aquele esquema
ilustrasse o processo mais rápido de matar uma Aaba. Aquele líquido
- concluí - era sangue, e estava sendo posto em todos os seus
orifícios. Vendo aquele desenho, uma epifania nasceu em mim. Ela não
havia ingerido sangue na batalha, mas com certeza havia tido um
contato com o odor e mesmo a visão dele e isso já bastou para que
ela ficasse naquele estado. O organismo das Aaba parecia ser bastante
sensível à absorção de substâncias. Então pensei, que se eu
pudesse fazer com que ela absorvesse algo que fizesse o sangue dentro
dela sumir, talvez houvesse alguma chance.
Quando
perdi a minha virgindade eu tinha dezessete anos, a mesma idade do
filho do cocheiro de meu pai. Eles moravam numa casa não muito longe
da nossa, na mesma propriedade, e isso facilitava muito nosso
contato. Quando os primeiros sinais de puberdade despontaram em nós,
papai resolveu dar um baile por algum motivo que já não recordo e,
como de costume, convidava a alta sociedade da cidade e seus
empregados sem qualquer diferenciação entre eles. Dançamos uma
valsa juntos e eu o levei para o meu quarto, onde tivemos juntos
nossa primeira experiência. Nervoso, mas satisfeito, ele saiu antes
que o baile acabasse e voltou à sua casa. Eu fiquei na cama o resto
da noite.
Acordei
na manha seguinte sob os olhares da minha mãe preocupada e
histérica. Havia uma mancha de sangue em meus lençóis. “Pecado!”
e “Desonra!” dizia a minha mãe desesperada, afirmando que aquilo
não poderia ser visto fora de meus aposentos. Expliquei o que havia
ocorrido e ela prontamente mandou um criado demitir a família do
cocheiro e tira-los da propriedade imediatamente. Meus protestos
foram em vão, ela me trancou no quarto e disse para que eu dissesse
a qualquer um que tocasse à porta que estava doente enquanto ela
resolveria tudo. Algumas horas depois, ela voltou com minha ama. Eu
perguntei do rapaz, para onde ela o tinha mandado e minha mãe apenas
me disse que ele nunca mais me veria de novo. Em seguida, mandou que
a ama começasse. Ela trazia um balde em uma das mãos e um esfregão
na outra, com a habilidade que apenas a experiência pode dar, ela
tirou meus lençóis manchados da cama e molhou o esfregão na
solução espumante que trazia. Luvas protegiam suas mãos.
Após
alguns minutos de dedicação sobre o apreensivo olhar de mamãe que
ainda me ignorava, a mancha cedeu. O salgue se dissolvia a cada
esfregada, restando no fim somente uma marca d’agua que logo
secaria ao sol. Lembro de ter ouvido a minha mãe perguntar aliviada
para minha ama:
-
Como você sabia desta solução milagrosa?
-
A pequena Carolina não foi a primeira garota que eu criei, senhora.
- ela respondeu resoluta e polida - Já precisei restituir a virtude
de ao menos outras cinco moças, e a lixívia ajuda muito nisso.
Seu
marido havia estudado botânica e tinha bons conhecimentos químicos,
de modo que não era difícil para ela ter acesso a um composto
assim. Com os anos, a lixívia perdurou na sociedade, apesar de ter
mudado de nome. Hoje em dia é de fácil obtenção, quase todo mundo
tem em casa ao menos um frasco. Mesmo sendo conhecido por um
nome menos técnico agora.
Água
sanitária.
Sem
demora, fui ao banheiro de Paulo e lá encontrei um pequeno frasco
pela metade da solução diluída. Não era muito, mas teria que
bastar. Ela apagou dissolveu meu primeiro sangue, talvez pudesse
salvar Máira. Para humanos, ingerir água sanitária, ou bota-la
contra os olhos causa morte e danos irreversíveis. Mas era o sangue
que dava vida aos mortais e era fatal para ela, talvez o inverso
acontecesse com a ingestão de lixívia.
Ou
talvez só acelerasse sua morte, mas eu arrisquei, era a única ideia
que eu tinha. Fiz com que ela bebesse, despejei sobre suas narinas e
ouvidos, e passei sobre os olhos também. Exatamente como estava
ilustrado no livro, só que com um líquido transparente, não
escuro. Segui o manual e esperei.
Os
gemidos asmáticos pararam e as veias iam, pouco a pouco, recuando.
Mas nada além disso acontecia. A ansiedade já não cabia em mim,
chequei seu pulso e não havia nenhum. Abri um de seus olhos, mas
transformada não havia íris para reagir à luz, apenas um mar verde
opaco. Minhas esperanças diminuíam conforme o tempo passava. Já
era possível ver luz bordando as cortinas da varanda quando
finalmente me permiti checar sua respiração.
Máira
não respirava.
O
sol já nascia, eu não voltaria para casa até a noite. Desolada,
caminhei até o banheiro novamente, dessa vez para tomar um banho, já
que estava presa naquele apartamento e exausta do dia passado. Minhas
lágrimas se perdiam na cachoeira que descia do chuveiro. Não sei
quanto tempo passei me convencendo de que aquilo realmente tinha
acontecido. Máira estava morta.
Perdida
em pensamentos e culpa eu me secava quando fui surpreendida por
aquele barulho. Um barulho asmático."
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