terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Ver046



Meus sentidos estavam mais aguçados do que o normal enquanto corria para trás do prédio procurando alguma entrada nos fundos, a urgência da ocasião me deixava mais alerta. Encontrei uma saída de emergência fechada, a porta de metal verde se destacava do prédio, que tinha tons terrosos. Sempre imaginei que saídas de emergência deveriam ficar desobstruídas, mas havia um cadeado que eu quebrei sem muitos problemas apenas puxando-o para baixo. As dobradiças enferrujadas da porta rangeram quando eu a abri, e por um momento eu poderia jurar que alguém se aproximaria me obrigando a agir, mas o barulho apenas se dissolveu no ar da madrugada.

Máira pesava em meu ombro, e eu senti um pequeno alívio ao deita-la no chão, mas não havia tempo para descansar. Com cuidado, rolei seu corpo para dentro do prédio e vi que pedaços da sua segunda pele ficaram em meus dedos. Limpei na barra do vestido que já estava sujo e chamuscado enquanto seguia para a entrada principal do prédio. Era arriscado, mas eu precisaria usar a porta da frente, precisaria que o porteiro me deixasse entrar. Tudo que eu podia fazer era torcer para que ninguém resolvesse usar a escada de incêndio naquela noite. Jonas, o porteiro, outra vez dormia debruçado na mesa de recepção e, do tapete que dizia “Bem-Vindo” eu bati palmas para que ele acordasse.

Jonas que era careca e aparentava mais idade do que realmente tinha, buscou os óculos para me por em foco e, com o rosto ainda amassado de sono, sorriu para mim dizendo:

- Ah, eu lembro de você! Amiga da Dona Máira. Caramba, - ele checou o relógio bocejando - está bem tarde…
- Eu posso entrar? - disse ignorando suas frivolidades.
- Ué, claro que pode, Dona. Por favor, entre. - Jonas estranhou a pergunta, mas logo eu estava passando pela sua mesa num passo apressado - Ei, a senhora se incomodaria de esperar um pouco? Preciso interfonar lá para cima. 

Voltei até sua mesa sabendo que eu deveria negociar com ele apesar de não ter muito tempo para isso. Passei a mão pelos cabelos, sorri e falei:

- Precisa mesmo? Você viu que ela me deixou subir outro dia. Acho que podemos pular essa parte não é? - terminei piscando para ele.
- Desculpe senhora, - ele respondeu visivelmente incomodado de ter que fazer aquilo - é a política do prédio.

Vi, apreensiva, ele digitando os números no interfone. Podia ouvir meu próprio coração compassando acelerado, sentia minha garganta seca apesar de ter bebido sangue há menos de uma hora. No tempo que o interfone levou tocando lá no quarto andar para ninguém, eu pensei no quanto Lucas ficaria furioso se eu fosse descoberta e tivesse que matar todos naquele prédio. Sem resposta, Jonas retornou o fone ao gancho e me perguntou:

- A senhora tem certeza que ela está em casa? Não vi dona Máira hoje.
- Tenho, - menti usando minha melhor cara de amiga dedicada - na verdade, ela está doente. Me acordou agora no meio da madrugada por estar sentindo dores muito fortes e pediu para que eu viesse o mais rápido possível. Se ela finalmente pegou no sono, o senhor não acha que podemos evitar acorda-la?

Ele ponderou mais tempo do que eu gostaria, era um daqueles poucos incorruptíveis que gente encontra por aí. Rezei para que ele não insistisse, caso contrário eu teria que mata-lo e realmente isso seria uma pena. Ele olhou para mim e julgou que eu não faria nada de mal.

- Você tem a chave?
- Tenho, ela me deu uma cópia.
- Tudo bem, pode subir. Uhh, bom…se puder não falar nada sobre eu estar dormindo…
- Claro que não, fica sendo nosso segredo. - respondi já passando por ele novamente.

O portão de metal da saída de incêndio estava aberto conforme deixei. Peguei Máira e quase a deixei cair, foi quando percebi que minhas mãos suavam. De novo a pus em meus ombros e subi em silêncio pelos oito lances de escada que me levariam ao seu andar. Nenhum vizinho de Máira passou por mim nos degraus, e o seu andar estava vazio. Agradeci por isso, porque meu plano era cuidar dela ali mesmo, no corredor. Pelo menos até que ela tivesse com o mínimo de consciência para autorizar que eu entrasse em seu apartamento. Mas quando já estava em frente à sua porta ouvi o barulho de passos e um molho de chaves balançando no interior do apartamento defronte ao dela. Eram duas pessoas, e eu poderia senti-las se aproximando da porta. Torci para que voltassem, que desistissem de sair, afinal já passava das 4am.

Eles não recuaram, eu tinha somente duas opções àquela altura, atacar o casal ou entrar no apartamento de Máira sem autorização e lidar com o que acontecesse. Nunca tinha cruzado essa linha e nem soube o que efetivamente poderia acontecer comigo se o fizesse. Somente imaginava que seria ruim.

A chave foi posta na fechadura do outro lado do corredor, me vi obrigada a agir naquele exato momento.

A porta se abriu. Escondida na esquina do corredor eu podia ouvi-los, notei que eram um casal que se despedia. Aos meus pés, Máira fez um ruído asmático que denunciou nossa presença. Prendi a respiração esperando que aquilo passasse despercebido, agora já quase não havia segunda pele cobrindo seu corpo e pude ver expurgos de um malcheiroso líquido esverdeado saindo de sua boca. Não havia muito tempo.

Máira arfou buscando ar outra vez.

- Que barulho foi esse? - indagou a voz feminina.
- Deve ser o cachorro do 408. Além de feder, aquele pulguento fica latindo de madrugada.
- Aquilo não foi um latido.
- Você se preocupa demais, amor. Não tem perigo. O Jonas é o sujeito mais caxias que tem, nunca deixaria alguém entrar sem ser avisado. E o prédio todo tem sistema de alarme. Perigoso mesmo é você ir embora daqui a esta hora. - a voz masculina se modulou numa insuportável imitação infantil - Tem certeza que não quer ficar, docinho?

Barulhos de beijos. A casa era dele, ótimo, isso facilitaria muito as coisas para mim.

- Pára, Paulo. Você sabe que eu realmente preciso ir. Amanha, na mamãe. Meio-dia, hein? Não se atr...
- Vocês podem me ajudar? - cortei a conversa dos dois saindo da quina que me escondia. Apesar de estar com o coração martelando as minhas costelas a mil por hora, caminhei até eles lentamente, mancando em decorrência de uma dor que não existia. Pus uma uma das minhas mãos na barriga, como quem tenta estancar algum ferimento aberto, e com a outra apoiei na parede.
- Quem é você? - perguntou novamente a mulher.
- Eu estava com uma amiga na praia, fomos assaltadas, levaram a minha bolsa e... - deixei que a frase morresse numa voz embargada enquanto sentia lágrimas descendo com calma pelas minhas bochechas. Lembrei de Wolfgang, um diretor de teatro alemão que conheci quando a minha companhia de ballet foi de Paris à Berlim para uma apresentação.

"O teatro perdeu uma grande atriz.", era o que Wolf costumava dizer a cada vez que eu negava seu convite para ficar na Alemanha em seu grupo. E parecia que ele estava certo, porque enquanto a mulher insistia em perguntar quem eu era, aquele que parecia ser Paulo veio até mim prontamente.

- Meu Deus! Você veio da praia até aqui? Esses vagabundos não tem jeito mesmo, vem comigo. - ele pôs o braço que me segurava na parede em seus ombros e caminhou comigo em direção ao seu apartamento. - Vamos ligar para polícia e eu te faço um copo de agua com açúcar ou um drink se você preferir.
- Você vai levar essa mulher para a sua casa? - protestava a outra - Nos mal a conhecemos! Ela pode ser uma assaltante, li no jornal que tem muitas mulheres entrando para o crime hoje em dia.
- Se ela quisesse nos assaltar, já o teria feito. Fui educado para nunca deixar uma dama em dificuldades, você sabe disso. - ele parou a poucos passos da porta e, com cuidado se virou junto comigo em direção àquela que reclamava - Você vem ou fica, Eliane?
- Eu vou para casa! - ela respondia visivelmente contrariada - E saiba que teremos uma conversa séria amanha, Paulo Ricardo!
- Obrigada - eu sussurrei em seu ouvido enquanto ouvia os saltos de Eliane se encaminhando para o corredor, em breve ela iria ver Máira no chão. Eu precisava faze-lo dizer.

A um passo de passarmos da soleira de sua porta, eu endureci. Paulo não esperava aquilo, julgava estar sendo meu apoio e quase caiu quando tentou me guiar por mais um passo.
- Eu posso entrar? - perguntei ainda sussurrando.
- Mas é claro que pode, não se preocupe com Eli, ela está naqueles dias sabe?
- Me desculpe – foi o que eu disse antes de ataca-lo

Em seguida veio o estridente grito de Eliane. Se mais alguem acordasse naquele andar minha situação estaria mais complicada ainda, então quebrei o pescoço de Paulo rapidamente, mas com o cuidado de não causar nenhum sangramento. Ele caiu com um som abafado no tapete de sua soleira.

Em segundos, eu já estava com uma das mãos tapando a boca de Eliane e abafando sua histeria. Ouvia movimentações sendo feitas em dois apartamentos vizinhos, por isso, apesar de querer trata-la com um pouco mais de crueldade, apenas bati sua cabeça contra a parede. Com uma em cada mão, levei Máira e o corpo de Eliane para dentro do apartamento de Paulo. O corpo do proprietário já estava metade lá, e um leve chute bastou para que entrasse todo. Tranquei a porta e, sem respirar aliviada busquei o Livro dos Ofícios na minha bolsa.

Levei Máira até o sofá que havia na sala, seus chifres e rabo já estavam materializados e não havia quase mais nada humano nela. Veias arroxeadas começavam a se desenhar em sua pele alaranjada, imergindo de seu pescoço e irradiando até o peito em todas as direções. Apesar de inconsciente, havia uma expressão de profundo sofrimento estampada em seu rosto. Sentei ao lado dela e comecei a folhear o livro que tinha causado aquela confusão toda, ele pesava sobre as minhas pernas e, em meu nervosismo, minhas mãos pareciam atrapalhadas para virar as páginas com clareza.

Percebi que o céu ia perdendo o tom azul escuro infinito da madrugada pelo vidro da varanda com a visão periférica e corri para fechar aquela cortina, bem como todas as outras que pudessem cobrir a luz da manhã que viria. Ao voltar para o sofá, olhei para minha amiga e imaginei que talvez já fosse tarde para ela, que eu tivesse falhado. Tinha havido sangue demais, e, ao pensar nisso, eu tive uma ideia. Talvez, se eu a mordesse, pudesse sugar todo sangue que a envenenara. Pressionei meus caninos na base de seu pescoço, em uma das muitas veias que agora já eram tão escuras como uma tatuagem, mas à primeira menção de tocar o líquido que veio, minha língua o rejeitou. Viscoso e ácido o fluido verde que ela expelia pela boca era o mesmo que agora estava na minha e, por algum motivo, era intolerável para o meu corpo.

Tomada pela impotência, eu recorri ao livro novamente, achando agora a página que abria o capítulo que tratava de sua casta infernal. Eram cinco páginas, da descrição até o modo de se exorciza-la, todas com colunas de texto mal diagramado e ilustrações sem perspectiva. Como disse, eu ainda não era versada em enoquiano, portanto, à primeira vista, mesmo o livro seria inútil. Minhas lágrimas molhavam o papel amarelecido. Eram lágrimas de ira, de inconformidade por estar de mãos atadas para ajudar alguém importante para mim. Com raiva, passei a mão pelo papel molhado para que as gotas não danificassem a página e minha mão parou bem sobre um desenho que chamou a minha atenção. Parecia um esquema, um passo a passo ensinando algo. No primeiro quadro, mostrava uma versão rudimentar do corpo de uma Aaba, com a boca e olhos abertos, como se estivesse gritando em espanto; e, nos outros, pares de mãos despejavam um líquido escuro em sua boca aberta, seus ouvidos, seu nariz e mesmo em seus olhos. Nesta exata ordem.

O Livro dos Ofícios nunca me ensinaria a salvar Máira, aquilo foi uma esperança desesperada. A publicação foda dada aos mortais para nos condenar, afinal de contas. Então, inferi que aquele esquema ilustrasse o processo mais rápido de matar uma Aaba. Aquele líquido - concluí - era sangue, e estava sendo posto em todos os seus orifícios. Vendo aquele desenho, uma epifania nasceu em mim. Ela não havia ingerido sangue na batalha, mas com certeza havia tido um contato com o odor e mesmo a visão dele e isso já bastou para que ela ficasse naquele estado. O organismo das Aaba parecia ser bastante sensível à absorção de substâncias. Então pensei, que se eu pudesse fazer com que ela absorvesse algo que fizesse o sangue dentro dela sumir, talvez houvesse alguma chance.

Quando perdi a minha virgindade eu tinha dezessete anos, a mesma idade do filho do cocheiro de meu pai. Eles moravam numa casa não muito longe da nossa, na mesma propriedade, e isso facilitava muito nosso contato. Quando os primeiros sinais de puberdade despontaram em nós, papai resolveu dar um baile por algum motivo que já não recordo e, como de costume, convidava a alta sociedade da cidade e seus empregados sem qualquer diferenciação entre eles. Dançamos uma valsa juntos e eu o levei para o meu quarto, onde tivemos juntos nossa primeira experiência. Nervoso, mas satisfeito, ele saiu antes que o baile acabasse e voltou à sua casa. Eu fiquei na cama o resto da noite.

Acordei na manha seguinte sob os olhares da minha mãe preocupada e histérica. Havia uma mancha de sangue em meus lençóis. “Pecado!” e “Desonra!” dizia a minha mãe desesperada, afirmando que aquilo não poderia ser visto fora de meus aposentos. Expliquei o que havia ocorrido e ela prontamente mandou um criado demitir a família do cocheiro e tira-los da propriedade imediatamente. Meus protestos foram em vão, ela me trancou no quarto e disse para que eu dissesse a qualquer um que tocasse à porta que estava doente enquanto ela resolveria tudo. Algumas horas depois, ela voltou com minha ama. Eu perguntei do rapaz, para onde ela o tinha mandado e minha mãe apenas me disse que ele nunca mais me veria de novo. Em seguida, mandou que a ama começasse. Ela trazia um balde em uma das mãos e um esfregão na outra, com a habilidade que apenas a experiência pode dar, ela tirou meus lençóis manchados da cama e molhou o esfregão na solução espumante que trazia. Luvas protegiam suas mãos.

Após alguns minutos de dedicação sobre o apreensivo olhar de mamãe que ainda me ignorava, a mancha cedeu. O salgue se dissolvia a cada esfregada, restando no fim somente uma marca d’agua que logo secaria ao sol. Lembro de ter ouvido a minha mãe perguntar aliviada para minha ama:

- Como você sabia desta solução milagrosa?
- A pequena Carolina não foi a primeira garota que eu criei, senhora. - ela respondeu resoluta e polida - Já precisei restituir a virtude de ao menos outras cinco moças, e a lixívia ajuda muito nisso.

Seu marido havia estudado botânica e tinha bons conhecimentos químicos, de modo que não era difícil para ela ter acesso a um composto assim. Com os anos, a lixívia perdurou na sociedade, apesar de ter mudado de nome. Hoje em dia é de fácil obtenção, quase todo mundo tem em casa ao menos um frasco. Mesmo sendo conhecido por um nome menos técnico agora.

Água sanitária.

Sem demora, fui ao banheiro de Paulo e lá encontrei um pequeno frasco pela metade da solução diluída. Não era muito, mas teria que bastar. Ela apagou dissolveu meu primeiro sangue, talvez pudesse salvar Máira. Para humanos, ingerir água sanitária, ou bota-la contra os olhos causa morte e danos irreversíveis. Mas era o sangue que dava vida aos mortais e era fatal para ela, talvez o inverso acontecesse com a ingestão de lixívia.

Ou talvez só acelerasse sua morte, mas eu arrisquei, era a única ideia que eu tinha. Fiz com que ela bebesse, despejei sobre suas narinas e ouvidos, e passei sobre os olhos também. Exatamente como estava ilustrado no livro, só que com um líquido transparente, não escuro. Segui o manual e esperei.

Os gemidos asmáticos pararam e as veias iam, pouco a pouco, recuando. Mas nada além disso acontecia. A ansiedade já não cabia em mim, chequei seu pulso e não havia nenhum. Abri um de seus olhos, mas transformada não havia íris para reagir à luz, apenas um mar verde opaco. Minhas esperanças diminuíam conforme o tempo passava. Já era possível ver luz bordando as cortinas da varanda quando finalmente me permiti checar sua respiração.

Máira não respirava.

O sol já nascia, eu não voltaria para casa até a noite. Desolada, caminhei até o banheiro novamente, dessa vez para tomar um banho, já que estava presa naquele apartamento e exausta do dia passado. Minhas lágrimas se perdiam na cachoeira que descia do chuveiro. Não sei quanto tempo passei me convencendo de que aquilo realmente tinha acontecido. Máira estava morta.

Perdida em pensamentos e culpa eu me secava quando fui surpreendida por aquele barulho. Um barulho asmático."