quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Ver045



“É comum nas histórias fictícias e até mesmo nos relatos mais elaborados e precisos sobre nós que evidenciem a necessidade de bebermos sangue, nossa beleza fora de medida que ajuda a seduzir presas humanas ou nossas fraquezas. Mas poucas vezes vi qualquer menção à habilidade que os vampiros têm de enxergar no escuro. A noite nos é clara como o dia e o breu, revelador como um espelho.

Quando as luzes apagaram, as cruzes na mão dos exorcistas emitiam um débil brilho azulado, mas que não os ajudava em nada. Lucas se movia tão rapidamente que nem meus olhos acostumado ao escuro conseguiam captar seus movimentos com clareza. Eu ainda estava muito machucada e o punhal maldito fincava minha panturrilha no chão, mas ao olhar tanto para Máira quanto para Beatriz, vi que elas também não conseguiam entender muito o que acontecia.

Os soldados e soldadas da fé estavam tombando um a um, desnorteados por não saber de onde ou o que os atingia. Lucas poderia ser preciso, mas preferia que eles sofressem. Uma pancada na têmpora ou um pescoço quebrado deixaria a missão mais rápida para ele, entretanto era possível ver que ele se divertia fazendo-os sofrer.

Eu também. 

Ao ver Lucas arrancando os braços de um dos homens que mantinha Bia cativa, lembrei da mulher que quase acabou comigo. Lembrei também que tinha prometido cortar-lhe as mãos. Passei os olhos pelo salão que agora mais parecia um cenário de guerra, as mesas derrubadas para todos os lados, o bar destruído e suas garrafas quebradas no chão derramavam bebidas que se misturavam ao sangue pintava o chão de vermelho. Eu a encontrei de joelhos se protegendo atrás de uma mesa que ela fez de barricada, com uma cruz nas mãos que apontava para cima. Eu podia ouvir a sua reza pedindo proteção, o que só me deu mais vontade de mata-la.

Máira não compartilhava a visão noturna conosco e dado o volume de sangue que havia ali, estava muito afetada. Lucas continuava matando, nossos inimigos continuavam gritando. Beatriz passou para mim correndo e atacou um infeliz que usava a cruz em frente ao rosto, na esperança de que o brilho lhe revelasse algum perigo. Pude ver o horror nos seus olhos quando ela enterrou o crucifixo em sua cabeça sem se importar no dano que causaria à sua mão. Minha irmã estava se vingando, e eu faria o mesmo.

Eu já estava tão machucada que arrancar a adaga de prata que tinha atravessado a minha perna quase não me incomodou. Mancando, eu me aproximei da mulher torcendo para que Lucas não a marcasse como alvo antes que eu chegasse até ela. Ela ainda estava ajoelhada e seus braços ainda erguidos seguravam o crucifixo para o alto. Conforme chegava mais perto sua oração me atacava como um golpe, mas não me fazia parar. Dei a volta pela mesa que a protegia e sem aviso peguei seus dois braços pelos pulsos e com toda força os bati contra o meu joelho. Na altura dos cotovelos dela.

O grito de dor foi delicioso, apesar de não ter tido força suficiente para expor a fratura pude ver em seu rosto a agonia estampada. Ela largou a cruz que segurava que caiu no chão. Mas eu queria que ela visse quem estava lhe atacando, então a peguei de volta e obriguei que a mulher a segurasse com os braços quebrados. Não me importei com seus lamentos enquanto aplicava meu peso sobre as articulações do seu cotovelo que já não funcionavam e obrigava o crucifixo que segurava ficasse entre o rosto dela e o meu. Olhei fundo em seus olhos e disse:

- Eu disse que era melhor ter me matado.

Sem dar tempo para que ela respondesse qualquer coisa, usei a adaga prateada para cortar seus dois pulsos com um só golpe. A cruz caiu outra vez, mas dessa vez deixei que ficasse lá enquanto me servia do sangue que jorrava de seus pulsos no escuro. Pouco a pouco, podia sentir minha força voltando. A dor persistia, mas se abrandava a cada momento. Nunca havia provado sangue estando tão avariada, o sentimento de relaxamento foi semelhante à pequena morte. Me entreguei totalmente e fiquei alheia à tudo que acontecia.

Somente quando as luzes se reacenderam eu tirei meus lábios dos braços que agora não passavam de tocos secos. O salão estava em frangalhos, Beatriz havia desistido da matança e estava cuidando de Máira que desmaiara à esta altura. O único de pé em toda Vogue naquele momento era Lucas. Parado, no centro do salão, abotoou o terno negro que usava e fixou o nó da gravata também negra enquanto checava se havia algum sobrevivente.

Havia. A comandante, a mulher da cicatriz no rosto que se chamou de Amanda. Lucas a deixou para o final propositalmente. A cabeça de Hugo permanecia exatamente onde caiu após atingir Amanda minutos antes. Ela, valente, apesar de estar no chão levantava o olhar para Lucas desafiadora. Ela não devolvia o desafio, apenas a fitava com um frieza e tranquilidade.

- Acredito que a senhora estava perguntando por mim antes de sermos interrompidos. - disse enquanto caminhava, passo a passo, até ela - Pois bem, aqui estou.
- Espírito baixo, sujo e repugnante! Criatura das profundezas - ela levantou a voz - acha que eu temo você? Acha que qualquer um na ordem teme você? Mesmo os que caíram aqui na sua emboscada covarde não o temiam. Temos Deus e todos os anjos ao nosso lado. - ela trouxe o livro que havia pegado da minha bolsa junto ao peito - Juramos viver pela cruz e por ela morremos sem medo.
- Amanda, certo? Amanda…Britto Pontes, talvez? Sim, sim. Se, eu lembro do seu avô. “O bravo Britto Pontes” era como eles o chamavam. - ele passou a caminhar em círculos envolta dela, um predador que circunda sua presa - Diziam que ele nunca havia deixado de exorcizar um…como vocês chamam mesmo? Ah, isso “infernal” - sorriu - Seu avô tinha uma fama e tanto. Mas temo que bravo não fosse o adjetivo mais adequado para ele. 

Lucas ia ligeiramente fechando o cerco a cada volta que dava. Parou quando tinha a cabeça sem olhos de Hugo aos seus pés. Ele olhou para ela com certo fascínio e a pegou pelos cabelos longos. A mandíbula sem vida se abriu quando a cabeça foi levantada mostrando o pequeno pênis que ainda se projetava lá de dentro como uma língua. Lucas continuou.

- Você o conhecia? - perguntou com naturalidade para Amanda que não o respondeu - Este aqui demorou para falar. Foram duas horas nas quais precisei me dedicar a mutilações e tortura requintada até que ele me dissesse aonde vocês panejaram a emboscada. Ele me lembrou o velho Britto Pontes. Os tolos da sua ordem talvez chamassem o garoto de bravo também. Mas eu vejo as coisas de outro prisma. Não há bravura em sofrer por uma causa perdida. Não há coragem em esperar por uma recompensa que não virá. O garoto rezou a cada osso que eu lhe quebrava, e eu lhe arranquei os olhos. Ele pediu por proteção quando eu arrancava seus dentes, e eu lhe cortei a masculinidade. Seu avô pedia por piedade quando eu lhe cortei a garganta. - lágrimas escorriam dos olhos impiedosos de Amanda - E isso foi há três gerações atrás. É impressionante como vocês ainda não aprenderam. Não há ninguém ouvindo às suas preces. Ele desistiu de vocês, tempos atrás. Essa obtusidade que vocês chamam de coragem ou bravura, é o que garante que nós continuemos vivos enquanto vocês... - Lucas olhou ao seu redor e sorriu - Bom, vocês nem tanto.

Amanda tentou juntar as forças que ainda lhe restavam para levantar e morrer com alguma honra, mas Lucas não permitiu. Pôs a cabeça do adolescente morto em um de seus ombros e a forçou para baixo, deixando Amanda novamente em seus joelhos.

- Não faça tanto esforço, - ele disse de forma doce - nós já vamos acabar. Eu apenas gostaria de esclarecer isso para você antes. “Deus e os Anjos estão do seu lado”, você disse. Não, minha pequena, Deus abandonou vocês. Quanto aos anjos, no entanto, você tem razão. Alguns deles realmente ainda lutam para manter o status quo. Mas permita que eu lhe conte um segredo: - agora ele estava de frente para ela, desceu o rosto até encostar o lábio em seu ouvido direito e sussurrou - existem anjos do nosso lado também.


Lucas mordeu sua jugular e em questão de segundos a mulher forte e autoritária que quase me matou desfalecia e secava sob nossos olhos. Eu já tinha presenciado Lucas se servir de uma presa diversas vezes antes, entretanto, sua precisão e velocidade ainda me impactavam. Bia, com Máira desfalecida nos braços, o via em ação pela primeira vez. Ela parecia ter esquecido toda dor, seu rosto refletia medo e encanto ao mesmo tempo.

Ao terminar, ele se virou para nós. Não havia uma gota de sangue sequer em seu rosto ou terno. Passou a mão pelos cabelos, que não haviam se desarrumado durante toda a luta e nos olhou com seus frios olhos negros. De mim para Beatriz e depois para mim novamente.

- Vamos precisar conversar sobre isso - e indicou o livro que acabara de tomar de Amanda - Mas depois. Se não for de encontro ao plano de vocês duas para expor e acabar com o nosso clã, gostaria de pedir a ajuda das duas para que possamos camuflar toda essa bagunça. Discretamente.
- Existem dez cadáveres aqui, Lucas. - eu disse - Não tem como nos livrarmos destes corpos todos discretamente. Não no nosso estado.
- Máira veio de carro - Beatriz notou - Talvez você possa parar o carro nos fundos da boate e nós vamos botando os corpos no porta-malas e depois dirigimos até um lugar seguro para nos desfazermos deles.
  
Lucas a olhava incrédulo.

- E onde você sugere que nós nos desfaçamos de dez corpos, exatamente? Todos religiosos, diga-se de passagem. Todos brutalmente assassinados. Consegue imaginar a repercussão que isso pode ter? Eu agradeço a ajuda, Beatriz, mas nesse tipo de ocasião na qual é preciso tomar uma decisão inteligente. 

Lucas caminhou até o que restava do bar da boate e ali encontrou uma garrafa que milagrosamente tinha escapado ilesa de toda a luta. Um whisky de aparência cara. Ele pensou um pouco e tirou o lenço vermelho que ornava o bolso do paletó, o pôs no gargalo ate que tocasse o líquido dourado. Eu já estava mais revigorada e podia sentir meus ferimentos cicatrizando, caminhei até ele quando entendi sua intenção com a garrafa.

- Você não pode estar pensando em fazer isso! - protestei.
- Fazer o que? – Beatriz perguntou.
- Alguma ideia melhor? - eu não tinha - Imaginei. Pense nisso como um sinal de respeito, Carolina. Não faz parte da fé deles dizer que o fogo purifica? Pois bem, vamos purificar seus corpos agora.

Lucas abriu um pequeno frasco que tinha em seu bolso interno e umedeceu o lenço vermelho com ele, do mesmo bolso tirou um fósforo que riscou na mesa do bar e o fez entrar em combustão. A ponta do lenço embebida em álcool também se incendiou ao tocar o fósforo, tornando completo o coquetel molotov improvisado.

- Espera, você vai tacar fogo no lugar? - só então Bia percebia o plano - Não é você que odeia chamar atenção? Um incêndio no meio de Copacabana não é exatamente algo discreto, Lucas. Tenho certeza de que…
- Silêncio! - ele a interrompeu levantando a voz - Ouça, ouça lá fora.
- São sirenes? - agora eu também podia ouvir.
- São. Estão a algumas ruas ainda, é verdade. Mas estão à caminho. Por isso, sim, vamos incendiar o lugar. - ele pegou garrafas que ainda poderiam ser usadas no chão e rasgou tiras da roupa de um cadáver próximo e molhou-as com o álcool. Acendeu as duas garrafas as deixou no bar, com um sinal para que pegássemos. Beatriz deixou Máira com cuidado ao chão e eu pude ver que seu estado era pior do que eu pensava, sua segunda pele estava descolando do corpo em várias partes, seus lábios tinham uma aspecto doentio e manchas roxo-esverdeadas apareciam em seu corpo.

- Ela não parece bem... - Beatriz comentou o óbvio.
- Só vamos acabar logo com isso e sair daqui. - eu respondi preocupada com minha amiga e com as sirenes que agora estavam mais perto.
- As cortinas - disse Lucas - mirem nas cortinas e nos tapetes. Ao meu comando. Preparem-se. Agora!

Lançamos os coquetéis que se verteram em impiedosas labaredas nas luxuosas cortinas de seda e no tapete de pele que se estendia pelo salão de entrada. Lucas preparou mais alguns e lançamos outra vez. Em menos de um minuto a Vogue estava inundada por uma densa fumaça e um fogo feroz brilhava em suas entranhas. Tivemos o cuidado de deixar o caminho para a porta dos fundos livre de qualquer ataque, pois seria por ali que partiríamos. O calor fez evaporar qualquer vestígio da água-benta que fora jogada em mim e eu já não sentia dor alguma agora. Bia não conseguia esconder seu nervosismo no meio de todo aquele foto (eu havia lhe contado que o fogo era uma das poucas coisas que podia nos machucar) e também não conseguiu esconder o alívio quando Lucas mandou que ela fosse atrás do carro de Máira e o deixasse preparado para nossa fuga. De forma desengonçada, ela pôs a Aaba nos ombros e seguiu como um anão que carregava um gigante.

Lucas tinha mais uma última ideia para amenizar os vestígios da nossa aventura naquela noite antes de irmos. Ele pediu que eu empilhasse os dez corpos num só monte enquanto ele puxou, com extrema agilidade, uma das cortinas flamejantes de sua base. Ele estendeu a cortina de fogo como um tapete no chão e nós pusemos os dez corpos lá dentro. O som das sirenes de polícia e bombeiros já era audível por ouvidos humanos quando ele uniu as duas pontas das cortina cobrindo os cadáveres numa espécie de forno e os deixamos lá carbonizando. 

Noticia-se o incidente daquela noite de agosto de 1955 até hoje como um dos maiores incêndios da história do Rio de Janeiro. Dizem que os danos foram fatais e o prédio teve que ser demolido, pois suas estruturas estavam comprometidas, mas não ficamos para ver o resultado de nossa obra. Corremos para a saída e encontramos Bia impaciente com Máira desacordada ao seu lado, entramos no carro e ela deu a partida. 

O vento da madrugada acariciava gentilmente nossa pele que aos poucos ia voltando à hipotermia normal. Lucas ia no banco traseiro comigo e nos guiava para nosso novo endereço, no bairro da Urca. Ele disse que já havia preparado toda mudança e que não precisaríamos mais voltar ao Catete. Máira precisava de cuidados, entretanto. Enquanto nós parecíamos nos recuperar a cada segundo que passava,  sua aparência continuava preocupante. Me pus entre as orientações de Lucas e pedi para Beatriz mudar o caminho. Para o Leme, onde Máira morava.

- É mais perto daqui, e ela claramente está mal. Precisamos fazer alguma coisa. Retorne, Bia.

Ela se preparou para dar a ré.

- Não retorne, Beatriz. - Lucas disse sem qualquer emoção - Mantenha a nossa rota pois temos um compromisso para o qual já estamos atrasados. Esta noite sequer deveria ter acontecido, tem alguém nos esperando em casa.
- Quem? - Beatriz perguntou, ao volante, confusa.
- Não importa quem esteja nos esperando, vai continuar assim. Não podemos deixa-la sozinha nesse estado.
- Não podemos? - Lucas agora parecia interessado na questão - Receio que possamos sim, Carolina. E, falando nisso, desde quando você vem se preocupa com uma Aaba? Até onde eu sei não somos bem vistos na comunidade deles.

Máira, neste momento começou a ter um ataque de tosse crônica e dos seus lábios já acinzentados saía um líquido verde viscoso.

- Beatriz, faz a merda do retorno agora! Preciso ajuda-la e talvez não haja tempo para irmos até a nossa casa. Você lembra o endereço, corre.

Bia engatou a ré e fez um retorno numa manobra rápida. Lucas não mandou que ela mudasse de direção, ao invés disso indagou:

- Gostaria de saber como você vai prover esses cuidados à sua amiga. Carolina, sejamos realistas, você não tem a mínima condição de ajudar essa infeliz. Ela vai acabar morrendo de qualquer jeito.
- Nós já perdemos muita coisa, Lucas. - vi-me dizendo - Perdemos nossa família, perdemos pessoas importantes que tínhamos na nossa vida. Perdemos até a porra da luz do Sol nessa vida que levamos. Mas eu realmente sinto pena de você, se você já perdeu a esperança. É tudo que podemos ter agora.
- Se você quer mais uma responsabilidade para você, ótimo. - Lucas deu de ombros - Mas eu tenho coisas mais importantes a fazer. Vai ser uma pena que você perca a nossa reunião.
- Sobre o que é essa reunião, afinal? - Beatriz indagou.
- Sobre o livro, sobre nós, sobre eles…sobre o mundo inteiro na verdade, e todos os seus planos espirituais. É bom que você vá, Beatriz, assim pode botar Carolina a par dos fatos.

Bia parecia desconfortável, claramente ela planejava cuidar de Máira também. Além do fato de ainda não se sentir totalmente à vontade sozinha com Lucas. Mas e eu a tranquilizei:

- Ele tem razão, você vai à reunião e me conta o que houve. Se é algo realmente tão importante, vai ser interessante ouvir da boca de alguém que não tem o pensamento mais pessimista do mundo.

Lucas silenciou e eu acreditei que tínhamos um acordo.

Chegado ao prédio de Máira, abri a porta e saí do carro dando a volta para pega-la no banco do carona. A acomodei gentilmente sobre os ombros e bati a porta com meu quadril. Antes de sair eu me despedi especificamente de Beatriz.

Enquanto pensava em um jeito de subir ao quarto andar com Máira naquela situação sem ser vista, ouvi o carro dar uma recuada e seguir seu caminho até sumir na rua. Tentava disfarçar a preocupação que me acometia sorrindo internamente da mania que Lucas tinha de sempre supervalorizar seus atos. Qual seria o assunto tão importante daquela reuniãozinha, afinal? Não preferi ajudar Máira, não por alguma sensação de dívida pelo que ela fez na noite que nos conhecemos, mas por realmente valorizar a única amizade que tinha conseguido cultivar em cem anos. 

E, pela segunda vez, deixei de conhecer Rafael."