domingo, 18 de setembro de 2016

Ver043



“A sequencia de reações comum à todas as pessoas que viam o livro era sempre a mesma: primeiro estranhar aquela publicação antiga e, em seguida, passar suas páginas com cuidado.
 
Hugo não fez isso. Como se já soubesse o que procurava, ele abriu uma página aleatória, examinou rapidamente seu conteúdo e nos disse:
 
- Este é o Livro dos Ofícios dos Espíritos. Tenho certeza. - sua resposta era para a pergunta de Debóhra, mas os olhos ainda estavam em mim.
- E como você sabe disso? - perguntei.
- Sabe, garoto, você não devia mentir para nós. - Máira agora estava atrás dele, olhando a mesma página e mesmo assim não entendendo o que Hugo poderia ter visto ali.
- Ele não está mentindo. - respondi examinando-o com mais cuidado. Hugo parecia ser uma das raras pessoas que é criada à parte desse mundo de mentiras e desonestidades. O tipo de pessoa que nunca mente, e que, quando mente, faz isso tão mal que é quase uma piada. É claro, eu poderia estar redondamente equivocada, mas leio bem as pessoas, e quase nunca me engano. Hugo era um menino bom, e ver uma pessoa boa naquele estado só me deixava mais angustiada.
 
- Não, não é mentira. Veja - ele apontou para um símbolo aleatório em meio a outros na página – é a triqueta. 
- Acho que te tirei do treinamento cedo demais, Hugo. - Debóhra parecia um pouco frustrada ao corrigir seu escravo - A triqueta era muito comum em documentos sacros dessa época. Isso não é evidência de nada.
- Triqueta? - direcionei a pergunta para Máira, especificamente, mas Hugo se apressou em responde-la.
- Sim, sim. - baixou as mãos que ainda estavam apoiadas nas minhas de forma que eu pudesse ter uma visão melhor do livro enquanto ele sinalizava novamente onde eu devia olhar. Hugo virou a página, e lá estava mesmo desenho na folha seguinte. E na outra também. Era um símbolo incomum, mas que ao ser visto, me causou uma estranha familiaridade. Sua forma era bem básica: um triângulo que tinha os vértices abaulados no formato de folhas que eram interligadas uma com a outra, uma na vertical e outras duas abertas nas laterais baixas, como as pernas de uma estrela. Além disso, um círculo cortava as três formas.
 
- Antigamente este símbolo era muito usado pelos sacerdotes para indicar a trindade deles. - Máira falou.
- O pai, o filho e o Espírito Santo. - endossou Hugo dando calafrios em todas nós.
- Mas não faz diferença - logo interveio nossa anfitriã - Se você me trouxer livros, cartas, pergaminhos antigos…quaisquer documentos em geral que passassem pela mão dos religiosos, é bem provável que eles viessem com essa marca.
- Você está equivocada. - Hugo falou surpreendentemente.
 
Debóhra, foi atingida por aquilo como por um tapa. De onde estava, olhava incrédula para o que deveria ser a primeira discordância de Hugo a qualquer comentário dela. Ele pareceu perceber a gravidade do que tinha dito, mas não se desculpou, apenas olhou para baixo. Eu deixei apenas uma das mãos apoiando o livro junto das dele e com a outra levantei seu queixo:
 
- Por que ela está enganada? Me conta. - encorajei-o com um sorriso.
- Não enganada, - ele me disse retribuindo o sorriso e pude ver tártaro nos seus dentes - só equivocada. O que você disse é verdade, senhora, muitos dos documentos com os quais eu comecei a ser introduzido à Ordem tinham a triqueta impressa neles. Mas não como essas que podemos encontrar aqui. – ele apontou novamente para o livro. - Você consegue ver algo de diferente nelas?
- Parecem mais escuras do que o resto das coisas escritas no livro. Mais vívidas. - pontuei.
 
Debóhra se aproximou para ver mais de perto e Máira saiu detrás do garoto para se pôr ao meu lado também.
 
- Exatamente. - ele disse animado - Um dos meus professores nos contou uma vez que este era um problema para a Igreja desde tempos antigos, validar documentos como oficiais ou não. Eles passaram então a usar este símbolo para essa função. Se a carta tivesse a triqueta, seria considerada oficial e canônica, caso contrário era desprovida de qualquer valor. Acontece que este símbolo, segundo diz a tradição, não foi criado por nenhum mortal. Ele foi reproduzida por nós, sim, muitas vezes através dos séculos. Mas o que realmente representa é a assinatura de Nosso Senhor. E a primeira vez em que ele foi apresentado à humanidade, disse meu professor, foi exatamente no Livro dos Ofícios dos Espíritos, que nos foi entregue por um anjo para que pudéssemos aprender mais sobre os demônios. E claro, as cópias que foram feitas com o tempo também têm a triqueta em todas as páginas, mas a história diz que somente na publicação original, escrita pelo próprio Deus, nós a encontraríamos assim - ele passou o polegar pelo símbolo e o virou para nós - sempre como se estivesse recém escrita.
 
Seu polegar estava sujo com tinta preta.
 
Eu tive a iniciativa de fazer o mesmo, mas Hugo, com alguma urgência, segurou a minha mão com força.
 
- Não faça isso! Acho que essa tinta machucaria você. Todas vocês, na verdade. - ele disse, dando a entender que tinha ciência do tipo de criaturas que éramos.
 
Eu agradeci, e voltei a pensar no que deveria fazer com o livro agora. Será que Lucas sabia que isso estava lá em casa todo esse tempo? Se sabia, por que não fez nada a respeito? Ao meu lado, minhas companheiras tinham reações diferentes ao fato. Debóhra parecia ter recuperado a alegria e olhava para a suposta assinatura de Deus com os pequenos olhos cintilando, enquanto Máira fitava desconfiada nosso cativo.
 
- E como vamos saber que você não inventou tudo isso agora?
- Irmã, por favor, você sabe que eles são incapazes de mentir para nós. - disse Debóhra dando dois tapinhas no rosto de Hugo, que alheio à discussão das duas, ainda olhava para mim. Percebendo que o garoto ainda me admirava, ela mostrou incômodo e mandou que ele voltasse para a jaula.
 
Hugo, no entanto, não se moveu.
 
- Eu disse para entrar na jaula, querido. - sua voz era doce, mas sua respiração era fatal - Agora.
- Qual é o seu nome? - Hugo olhava para o chão quando me fez essa pergunta, mostrando a típica timidez e falta de jeito de um adolescente.
 
Antes que eu respondesse, a Debóhra pôs uma das mãos dobre a boca de Hugo e o obrigou a virar o seu rosto para ela com desnecessária violência. O menino, que estava magro e frágil, quase caiu com o tranco.
 
- O nome dela não te interessa. Tudo que te interessa é o que eu digo, entendido? Agora entra aí, - disse ela jogando Hugo de volta à sua prisão e trancando a porta - e quando eu terminar de resolver esse assunto nós vamos conversar. Seriamente.
 
Ela fechou o portão e passou a chave que trazia no bolso. Achei que Hugo fosse se mostrar abatido e passivo como antes, mas dessa vez percebi algo diferente. Percebi que ele a desafiava. Não verbalmente, mas sua cabeça e seus olhos se mantinham erguidos enquanto ele apertava com força as barras imundas que lhe continham. Talvez nada daquilo fosse da minha conta, mas imposições nunca me agradaram a cada atitude de Debóhra fazia meus sangue ferver mais um pouco. Eu estava a ponto de segui-la e provavelmente arrumar outra discussão quando Máira me disse.
 
- Melhor irmos embora daqui o quanto antes.
- Do que você está falando?
- Confia em mim, não gosto da minha irmã mais do que você. Mas eu a conheço, e é melhor sairmos daqui agora.
 
Máira estava agindo de forma estranha desde que descemos ali, mas preferi não questiona-la no momento. O ambiente ali estava me sufocando, era melhor ir embora mesmo. Caminhei até a escada com ela e me virei para dar uma ultima olhada para o menino nu que estava atrás das grades. Ele sorriu para mim com seus dentes podres.
 
- Carolina. Meu nome é Carolina. - disse sorrindo de volta enquanto subia de volta.
 
Ao sair da escada, Debóhra e Máira conversavam no corredor que seguia até a sala principal. Elas pararam assim que eu subi os degraus mais ainda pude ouvir um pouco do que conversavam. Era sobre Hugo. Minha curiosidade pedia por mais detalhes mas dissimulei bem e fingi que nada tinha ouvido.
 
O silêncio pontuou a tensão que parecia se apertar para caber no estreito corredor. Eu já não gostava da Debóhra, depois de ter visto todo aquele andar subterrâneo, eu precisava de toda a minha força de vontade para não causar uma confusão ali mesmo. Máira, talvez percebendo isso ou talvez por sorte, disse:
 
- Ok, nós temos uma mina de ouro nas mãos. Melhor discutirmos bem o que vai ser feito com esse livro, para quem vamos entrega-lo e o que vamos querer em troca. Precisamos trabalhar juntas nisso e, o mais importante de tudo, guardar isso em segredo.
- Eu não me importo com o que vocês queiram, ou mesmo para quem vocês vão entregar o livro. Tudo que eu quero é que seja alguém capaz de devolver a forma que eu tinha antes. Acho que vocês podem resolver o resto sozinhas.
 
Após dizer isso, ela saiu com seu andar cômico de volta para a sala. Lá, Máira tentou ensaiar uma conversa amigável, entretanto o clima estava pesado demais para isso. Debóhra parecia não suportar mais a nossa presença em sua casa e eu tinha certeza de que aquela visita já tinha se tornado longa demais. Nos despedimos friamente e seguimos para o carro. Assim que demos a partida e eu comecei a dirigir quis saciar minha curiosidade:
 
- Tudo bem, agora só estamos nós duas aqui. Por que você está agindo estranha desde que chegamos na casa da sua irmã? É por causa do livro? Eu também estou com um tanto insegura com o que fazer com ele, mas acho que vai dar tudo certo. - eu disse, ao volante.
 
Máira me direcionou o olhar que é dado àqueles que não entendem algo óbvio:
 
- Não, essa é a parte que menos me preocupa de tudo que aconteceu hoje à noite. Você realmente não percebeu o que fez ali?
- Eu e você descobrimos um tesouro milenar e sagrado que acreditava-se estar perdido há séculos, basicamente.
- Além disso, eu e você acabamos de condenar Debóhra ao Inferno. Outra vez. Você mais do que eu, na verdade. Não que eu esteja preocupada com ela, mas é melhor você pisar fundo. Debóhra é poderosa. E vingativa. Acho que ela ainda não percebeu o que aconteceu mas, por via das dúvidas, acelera aí.
- Eu? O que foi que eu fiz? - perguntei em minha defesa - Eu a poupei, isso sim. Tive que me segurar para não tirar aqueles olhos falsos da cara dela com as minhas unhas.
 
Agora que já alcançávamos o início da descida da Serra, minha amiga ia relaxando. Ela se permitiu sorrir e me explicou:
 
- Você libertou o garoto. Eu não suporto quando vocês fazem isso, mas admito que ela mereceu. Nem ele sabe disso ainda, mas o efeito de Debóhra sobre ele está evaporando. Ele ainda não tem muita experiência, mas ainda assim, quando voltar a si totalmente vai acabar com ela. Debóhra é tão pedante que nem vai saber de onde veio o golpe.
- Então você acha que eu libertei o garoto lá das garras da sua irmã? Olha, bem que eu queria, aquela ali merece morrer de fome.
- Eu não acho, tenho certeza. Caralho, o que foi que o Malta te ensinou além de chupar o sangue alheio, hein? Você nem sabe a extensão dos seus poderes! Lembra que, quando nos conhecemos naquele bordel, eu fui um pouco grossa com você?
- Grossa? Você está sendo gentil. - brinquei.
- Certo, eu fui uma vadia. Mas eu tinha um motivo. Você deve ter percebido que nós duas somos criaturas de hábitos diferentes. O sangue, por exemplo, você precisa dele enquanto eu tenho aversão. Mas tem um ponto no qual nossas espécies agem de modo bem parecido: quando precisamos caçar uma vítima. Eu e você usamos a luxúria dos mortais como vantagem para nos saciarmos deles. A diferença é que, para nós, o desejo sexual dos homens é um alimento e, para vocês é só uma arma, uma ferramenta para chegar até o pescoço deles. Vampiros e Aabas caçam a mesma presa e do mesmo modo, só que vocês levam vantagem sobre nós, são os únicos infernais capazes de quebrar nosso encanto sobre os mortais. Não é incomum acontecer brigas entre alguma das minhas irmãs e uma vampira porque um escravo resolve querer mudar de dona.
- Vou confessar que o modo com a qual ela estava tratando aquele menino me incomodou bastante. Mas eu estava com mais vontade de matar a sua irmã do que de seduzi-lo. Tudo que eu fiz foi perguntar sobre o livro como você e ela também fizeram.
- Mas foi o bastante. Debóhra é orgulhosa demais para notar isso, quando ela ainda era a mais bonita entre nós gostava de se vangloriar dizendo que nunca tinha perdido um escravo sequer. Ela não sabe como é, mas eu já vi acontecer muitas vezes. No fim da conversa o moleque só respondia à você e sequer olhava para ela. Se fosse um mortal qualquer ela não teria muitos problemas, provavelmente mataria ele e procuraria outro. Mas ela está com um sacerdo preso em casa, vai ser pega de surpresa e, no fim, exorcizada. Por isso eu estava com tanta pressa para sair de lá, não sei o que aconteceria primeiro, ela perceber o que aconteceu ou o padrezinho começar as orações. Só não queria estar lá quando acontecesse.
- Oops…- eu disse sorrindo - Mas já que estamos no assunto, eu fiquei com uma dúvida quanto à isso. Claro, você disse que ela era muito atraente algum tempo atrás, então faz sentido ela ter vários seguidores aos pés dela naquela época. No entanto, agora ela é basicamente o extremo oposto de qualquer coisa atraente. Mas o garoto lá estava preso naquelas condições e parecia satisfeito com aquilo tudo. Como é que ela fez a cabeça dele sendo horrenda daquele jeito?
- Nossa abordagem com os mortais é diferente da de vocês também. Claro que se o objetivo for nos alimentar só por uma noite tudo bem, podemos fazer como os vampiros, levar a vítima para casa e depois dar um fim nela. Mas se quisermos garantir uma fonte de alimento perpétua e tornar a vítima nosso escravo, precisamos cultivar a admiração dele por algum tempo, as vezes meses, até que ele esteja totalmente na nossa mão a ponto de esquecer das próprias necessidades. Torturamos tanto o indivíduo que ele quebra e passa a responder somente à nós. A não ser quando aparece uma sanguessuga biscate tipo você pra estragar tudo. Ela com certeza já estava brincando com aquele garoto desde antes dele começar o seminário e você acabou com tudo em minutos. - Máira parou e notou o sorriso no meu rosto - Você está adorando isso, né?
- Talvez.
- Vadia.
 
Como eu estava dirigindo, primeiro fomos à minha casa e de lá Máira levaria o carro de volta para o seu apartamento. Quando chegamos, perguntei se ela não queria terminar a noite em algum lugar para discutirmos o que fazer com o livro. Eu gostaria de contar tudo o que descobrimos para Beatriz, e conversar com Lucas. Máira achou melhor que não falássemos com Lucas sobre isso ainda, mas concordou que poderíamos dividir isso com a Bia, afinal ela morava comigo. Só que, antes de subrimos, Máira ela deu falta de sua bolsa. Parece que na pressa de ir embora tinha deixado-a na casa da irmã e queria voltar lá o quanto antes, pelos motivos que já tinha dito.
 
- Eu posso ir com você, mas dessa vez você dirige. - me propus.
- Não, vamos evitar mais problemas, certo? Melhor você ficar aqui, fora que já são quase quatro da manhã, não poderíamos curtir muito a noite com seu horário de Cinderela. 
- É, você tem razão. Vamos fazer assim, eu deixo Bia a par de tudo que descobrimos hoje e amanha à noite saímos nós três para conversar melhor sobre isso, que tal?
- Por mim está ótimo. Vogue?
- Vogue. - respondi,
 
Ela deu ré com o carro e seguiu a rua enquanto eu subia as escadas da minha casa. Bia estava com um homem sem camisa e de físico muito bonito carregando as últimas caixas da mudança de dentro da casa para a nossa sala. Ela nos apresentou e quando ele terminou o serviço nos divertimos com ele. Não restava mais nenhuma mobília nos nossos quartos, exceto nos caixões, sentamos obre o meu e lá contei a ela tudo que tinha descoberto naquela noite. Bia arregalou seus olhos orientais o máximo que pôde enquanto ouvia a história e no fim concordou que não devíamos contar nada para Lucas por enquanto.
 
- Onde ele está, inclusive? - perguntei.
- Não sei ao certo, depois que você saiu eu percebi que ia ter muito trabalho para arrumar as coisas da mudança. Então resolvi caminhar pelo Aterro e encontrar alguém para ajudar. Quando trouxe ele para casa - indicou o corpo do homem forte com a cabeça - Lucas já tinha chegado. Ele estava acompanhado de um homem muito estranho.
- Como assim “estranho”?
- Difícil dizer. Ele não parecia agressivo, mas sua presença era muito incisiva. Me fazia sentir mal perto dele. Apesar de ter sido muito polido e cortês, sequer olhava para mim enquanto falava comigo e percebi que reprovou em silêncio o que sabia que eu pretendia fazer com o homem que tinha trazido para casa. Ele parecia ter uma aura de superioridade que me incomodava.
- Estranho, – pontuei - um vampiro não deveria se importar com nossos hábitos.
- Mas ele não era um de nós. Não parecia humano também. Era uma figura peculiar, mas que parecia ser muito íntima de Lucas. Eles saíram outra vez alguns minutos depois que eu cheguei. Foram, como Lucas disse, “tratar de negócios”. Fiquei um pouco intrigada com isso porque ele nunca trouxe para casa alguém que não fosse uma vítima. Pelo menos não desde que eu estou morando com vocês. Mas no fim fiquei aliviada de ver aquele homem indo embora.
- Estranho, eu também nunca o vi fazendo isso, será que era algum outro demônio? Você lembra o nome ele?
- Rafael. Diz alguma coisa para você?
- Não, não diz. - respondi."