“O corredor que encontrei ao sair do elevador ela longo,
estreito e tinha luzes opacas. Apesar da iluminação ruim não foi complicado
encontrar o apartamento 402, todas as outras portas, talvez por padrão do
prédio, eram brancas. A porta de Máira era negra.
Não precisei tocar a campainha ou bater na porta, ela se
abriu assim que parei de frente a ela. Máira sorria lá dentro, usava a mesma
camisola que eu vi na fotografia impressa no jornal mais cedo. Ela me puxou pra
dentro com entusiasmo, e estranhou quando eu firmei posição na soleira de sua
porta.
- Posso entrar? - eu disse.
- Nossa, vocês são insuportáveis com essa polidez toda. O
que acontece se eu disser que você não pode entrar?
- Vamos ter que conversar com a porta aberta então.
- Eu poderia ser cruel e me divertir com isso, mas você tem
sorte, estou de bom humor hoje. - ela fez uma referência exagerada e afetada -
Você pode entrar sim, alteza, por favor não repare na bagunça.
E sim, havia bagunça.
Talvez por estar vivendo com Lucas há tanto tempo eu tenha
me habituado a ambientes herméticos e organizados, sequer me lembro como será
meu grau de organização antes disso. Mas acredito que, mesmo na durante o tempo
que morei com Marie, que não era exatamente um primor de organização, nosso
apartamento estivesse nem perto daquilo.
Ao entrar, eu não sabia se aquilo era um quarto, uma sala ou
uma cozinha. Provavelmente era um misto dos três cômodos. O ambiente era amplo,
é verdade, mas parecia pequeno com tanto entulho e má distribuição de móveis.
Ela bateu a porta e percebeu meu espanto.
- Eu disse para não reparar, vadia.
- Eu li que nosso garçom de ontem se jogou da varanda. Estou
aqui tentando imaginar como ele passou por aquela mesa de centro pra chegar lá.
- Rá rá rá, muito engraçadinha você. - ela disse se jogando
em um sofá que ficava no meio da passagem de um corredor que levava para o
interior do apartamento. - Mas não foi só para me e dar lições de decoração que
você veio pra cá, ne?
- Não. - caminhei até o sofá e sentei ao seu lado após tirar
algumas revistas que estavam empilhadas nele - Eu pensei na conversa que
tivemos ontem e notei que não sabia nada sobre o passado do Lucas. Quem ele era
antes de se transformar e o que ele fez até se tornar quem é hoje. Resolvi
tentar conseguir algumas informações sobre ele, mas não consegui nada. Aí
resolvi procurar lá em casa, na nossa biblioteca, alguma coisa que me ajudasse,
e encontrei isso.
Mostrei o livro a ela. Máira primeiro não reconheceu, mas
quando viu a cruz invertida na página de rosto, vi suas feições mudando da água
para o vinho. Suas mãos passaram pelas páginas com velocidade e espanto. Até
que ela me perguntou:
- Onde foi que você disse que conseguiu isso mesmo?
- Na biblioteca lá de casa. Pelo estado do livro é bem
antigo. Eu acho que é um livro de estudo, mas não consegui entender nada do que
está escrito. Não sei se isso tem algo a ver com o Lucas exatamente, mas esse
livro me chamou a atenção em meio aos outros e eu resolvi traze-lo para te
mostrar. Você consegue ler alguma coisa?
- Consigo. É enoquiano, a língua dos anjos. - ela ainda
passava as páginas, como se estivesse à procura de algo específico, e era
possível ver figuras das mais diversas intercaladas com grafismos
ininteligíveis impressas nas folhas amareladas.
Até que, subitamente, Máira parou. Ela aparentava
nervosismo.
- Lembra que eu te contei, no dia que nos conhecemos, sobre
a minha mãe?
- Lembro. Vagamente, na verdade. - respondi - Ela lutou e
caiu ao lado de Lúcifer, mas usa o rosto de um anjo que matou durante a guerra,
não é?
- Isso. Um esqueleto em forma de serpente que, na cabeça usa
o rosto de um anjo como máscara. - ela levantou o livro e o pôs a alguns
centímetros do meu rosto. - Parece familiar para você?
Na página que ela me mostrava havia a ilustração de uma
pilha de corpos humanos, homens e mulheres com expressão de horror, rodeada por
uma coluna vertebral de onde saíam incontáveis costelas afiadas como espadas e
que tinha em seu fim um rosto de olhos frios. Lívido e belo, emoldurado por cabelos
encaracolados.
- Essa é a minha mãe. E este - Máira fechou o livro e o
jogou no meu colo - é o Livro dos Ofícios. E o pior, estou quase certa de que
essa é a versão original.
- Ok. E eu deveria saber o que isso quer dizer?
- O Livro dos Ofícios foi uma das primeiras armas que eles
receberam para usar contra nós. Os sacerdos, quero dizer. Ele já passou por
várias mãos ao longo do tempo, e é tão valioso que eles até fizeram algumas
poucas cópias para distribuir entre as sedes da Ordem, mas nunca conseguiram
reproduzir integralmente a versão original. E eu acho que é essa ai.
- Esse livro não tem nada a ver com o Lucas então, né?
- Não, tem a ver com todos nós. Isso estava na sua casa todo
esse tempo?
- Acho que sim. Eu não tinha reparado nele antes, mas agora,
dedicada a pesquisar, ele chamou minha atenção. Mas eu não sei se entendi muito
bem. Sobre o que trata esse livro, exatamente?
- Quando te falei da criação da Ordem dos Sacerdos, eu
expliquei que, no início, achávamos que eles não causariam mais problemas
porque eram destreinados e não muito equipados, lembra? Acontece que um deles,
não sei dizer o nome do infeliz, foi visitado por um anjo certo dia. E esse
anjo lhe deu esse mesmo livro. O Livro dos Ofícios, é uma enciclopédia onde
está listado todo e qualquer tipo de infernal, e também todos os rituais e
formas de destruição para cada um. Quem tiver esse livro, especialmente sua
versão completa, pode ter o conhecimento necessário para exterminar qualquer
demônio.
O livro pareceu pesar sobre as minhas coxas.
- E por que você suspeita que esse seja o livro original?
- Não são muitos mortais que conseguem reproduzir enoquiano,
mas eu conheci um ou dois que sabiam sim, então logo que vi o idioma já
levantei alguma suspeita. Mas tem a minha mãe nesse livro, como eu te mostrei.
Desde que caiu, ela nunca mais saiu do Inferno. Lúcifer gosta muito daquela
filha da puta e não permite que ela venha para este plano por ter um cargo alto
lá. Então, nenhum mortal poderia documentar com tantos detalhes assim a parte
dela. Vampiros, Incubus, Bernes…isso se vê por aí, mas esse livro tem coisas
como Bael e Vassago. Carolina, eu mesma nunca vi a porra da cara do Vassago. Só
um anjo pode ter escrito isso.
- Entendi, então isso é importante. Muito importante. - eu
disse - Não pode cair na mão dos padres senão acabou para nós. Por que não o
queimamos aqui mesmo, então?
Sorrindo, Máira pegou o livro novamente e, com a mão que o
sustentava, formou chamas que o engoliram. Pude sentir a luz e o calor da
labareda, era tão intensa que mal era possível ver o livro dentro dela. Depois
de alguns segundos, Máira recolheu o fogo e eu me espantei em ver a publicação,
ainda intacta, entre os seus dedos.
- É impossível dar fim a essas merdas. Eles usam algum tipo
de reza que impede que possamos danificar seus equipamentos místicos. – quanto
mais ela pensava naquele livro, mais eu podia sentir seu desconforto crescendo
- Eu preciso de um drink.
Ela me entregou o livro, levantou e foi em direção à sua
cozinha apertada, que tinha sua entrada bloqueada por uma pilha de roupas
usadas. E, sentido o calor da edição intacta agora nas minhas mãos, eu tive um
estalo:
- Ele não queimou. Isso prova que ele é a primeira versão do
livro, não?
- Na verdade não. A primeira versão não se destruiria com fogo, mas mesmo as cópias que eles fizeram eram protegidas e benzidas. Eu não conseguiria destruir nenhuma delas com esse truque.
- Na verdade não. A primeira versão não se destruiria com fogo, mas mesmo as cópias que eles fizeram eram protegidas e benzidas. Eu não conseguiria destruir nenhuma delas com esse truque.
Senti que minha amiga se esgueirava do livro o máximo que
podia, mas eu estava curiosa e queria saber mais. Pelo menos mais sobre a minha
raça.
- Você disse que entende esse tal enoquiano, não é?
- Sou fluente nele e em outras cinco línguas. Por quê? - ela
respondeu fechando a geladeira e voltando para o sofá com uma garrafa de
espumante. A mesma que tinham dos servido na Vogue. - Lúcifer era um anjo,
assim como os que caíram com ele depois da batalha. Tudo no inferno é escrito
em enoquiano e existem até alguns dos grandes figurões lá debaixo que fazem
questão de só se comunicar nessa língua. Eu acho horrível, mas tive que
aprender pra me virar.
O fino e desgastado laço vermelho que servia como marcador
de páginas do livro estava, onde eu presumia por causa das figuras, ser o
início da sessão que tratava de nós, vampiros. Abri o livro nesta página e
mostrei para Máira.
- Me ajuda a traduzir, então? Imagino que aqui esteja
escrito “Vampiros”, certo? - apontei para uma sequencia de grafismos desconexos
que serviam de título.
- Sim. “Upyres”, na verdade, mas sim. São vocês. - ela
respirou fundo - Você quer mesmo fazer isso?
- Quero sim. Já faz mais de cem anos que eu estou nessa vida
e ainda não sei porque eu preciso pedir permissão pra entrar na casa dos outros
toda vez, por exemplo. Quero saber a extensão dos meus poderes, e saber meus
pontos fracos também.
- Ontem eu estava aqui fodendo um cara gostoso até ele
querer se matar e hoje vou passar a noite lendo com você. Quando foi que a
minha vida começou a ir ladeira abaixo, ein?
Máira, então começou a transcrever o significado daqueles
segredos para mim.
Foi por causa desse livro e dela que eu aprendi tudo que sei
sobre nós, vampiros. Não eram muitas páginas, seis ou sete contando
ilustrações. Aprendi o motivo pelo qual nosso corpo rejeita tudo que não seja
sangue, que a minha aversão a alho tem sim justificativa. Descobri que poderia
me comunicar com certos animais da noite e ouvi sobre A Primeira. Ouvi e senti
orgulho de estar relacionada com ela de alguma maneira.
E descobri nossas fraquezas. A primeira coisa que Lucas me
disse foi sobre a luz do Sol, com isso eu já estava familiarizada, entretanto
havia muito mais perigos do que eu imaginava. Água-benta, crucifixos e outros
artefatos religiosos podiam nos machucar, mas não chegavam a nos
exorcizar ou exterminar. Exceto estacas de madeira benzidas, essas, se fossem
estocadas contra meu peito, poderiam causar graves ferimentos e morte.
Descobri, também, que deveria evitar fogo a qualquer custo, meu corpo não se
recuperaria de ferimentos causados por ele porque aparentemente o calor das
chamas era algo purificador. Provar o sangue de uma vítima com o que o livro
chamou de “Morte Rubra” seria outra de minhas fraquezas, eu e Máira discutimos
um pouco sobre esse tópico, pois o livro não especificava o que seria essa
anomalia, e inferimos que isso seria alguma doença que contaminasse o sangue da
minha presa e que seria passada para mim ao morde-la. Por fim a prata, e isso
explica porque eu tive que me desfazer de todos os meus anéis, brincos e
cordões de prata depois da transformação. Não era alergia, como eu suspeitei,
mas somos intolerantes a este material por algum motivo que o Livro dos Ofícios
também deixava vago.
- Essa vocês compartilham com os Weriuuolf. - Ela disse
quando fechou o livro e quando viu minha expressão de interrogação, completou -
Nome técnico dos Lobisomens, eles também são vulneráveis à prata.
- Ah, sim...
Eu fui pega de surpresa. Com o tempo acho que peguei
confiança na facilidade com que tinha para me satisfazer. Nunca pensei que
precisaria tomar cuidado com tantas variáveis, mas a verdade é que foram mais
de cem anos tendo sorte ao escolher minhas vítimas.
- Muito bem, e o que vamos fazer agora? - Máira me tirou de
meus devaneios perguntando.
- Não estou com muito apetite, mas te acompanho se você
quiser ir a algum lugar.
- Você não entendeu. O que vamos fazer agora quanto a isso?
- apontou para o livro que agora estava ao meu lado no sofá. - É valioso
demais, e imagino que todos os virgenzinhos estejam atrás dele. Você tem algum plano
pra ele?
Eu não tinha. Ainda não tinha assimilado bem a importância
de ter a versão original do Livro dos Ofícios dos Espíritos em minha posse.
Sim, esse era o nome completo do livro, que eu só vim a saber mais tarde
naquele dia. Minha ideia era voltar com ele pra casa e bota-lo, discretamente,
entre os outros livros da mudança. Mas ao me ouvir dizer isso, Máira quase
cuspiu o espumante que bebia direto da garrafa.
- Além de suicida você também é idiota?! Eu vou desenhar
para você: ISSO NÃO PODE CAIR EM MÃOS ERRADAS. Ou mãos certas se você preferir.
É muito arriscado, Carolina! Tenho muito amor à minha existência para deixar
você ser irresponsável desse jeito.
- Se você não me deixa leva-lo de volta pra casa e ele é
indestrutível, o que fazemos então? - Eu disse, me contagiando com seu
nervosismo. Máira, sentava e levantava nas cadeiras mal posicionadas que se
espalhavam pela sala. Batia os pés no chão quando estava sentada e estalava os
dedos quando estava andando. Olhava do livro para mim e passava repetidamente
as mãos pelos cabelos que, dessa vez ainda mantinham a franja, mas estavam na
altura do seu quadril e num uniforme castanho escuro.
Até que parou.
Contrariada, ela sentou na mesma mesa de centro que eu havia
notado quando cheguei e com uma careta de desgosto disse:
- Eu já sei o que vamos fazer. Não vai ser agradável, mas
acho que precisamos estar certas de que essa é a primeira publicação do livro
antes de qualquer coisa. Eu suspeito que seja, e tudo leva a crer que eu tenha
razão, mas não tenho gabarito o bastante para dar certeza absoluta.
- E quem poderia?
- Um sacerdo poderia. Pelo menos pra identificar
instrumentos bentos eles servem.
- Tá bom. - comentei, irônica. - E é claro que eles
ajudariam a gente de bom grado. Máira, a gente nem pode entrar numa igreja.
Agora você é que está parecendo maluca.
- Mas quem disse que eles teriam opção? Acontece que uma das
minhas irmãs, - ela respirou fundo agora - e provavelmente a mais insuportável,
pedante e arrogante delas, pode nos ajudar com isso. Anteontem você me
apresentou a sua “irmã” oriental, acho que hoje é a minha vez de retribuir. Eu
vou trocar essa camisola e botar alguma coisa que pelo menos finja que eu sou
uma mulher de respeito. – pegou as chaves na pia da cozinha e jogou pra mim –
Mas você dirige, eu estou sem saco hoje.
Descemos e o porteiro disse para não nos preocuparmos que
tudo ficaria bem, quando passamos por ele a caminho da garagem. Provavelmente
ele se referia ao suposto suicídio acontecido mais cedo, mas foi bom ouvir
palavras de alguém que não estava pensando que tinha uma arma em potencial na
bolsa.
O caminho foi longo, e mais uma vez eu gostei de estar atrás
do volante. Quando dirigia, eu podia esvaziar a minha cabeça e finalmente
relaxar um pouco. Faz tempo que eu não durmo, e por isso eu posso estar com a
memória um pouco comprometida, mas dirigir aquele carro foi para mim como
dormir uma boa noite de sono depois de um dia exaustivo.
- Então, qual é o seu problema com ela? Sua irmã. -
perguntei afim de fazer Máira falar algo, mas sem realmente me importar.
- Vocês, vampiros, tem uma tendência natural a se fechar em
grupos e por isso talvez você não entenda muito. Mas isso não costuma funcionar
com a maioria dos demônios. Eu não me dou bem com as minhas irmãs. Com nenhuma
delas, mantemos a distância e passamos séculos sem ter contato nenhum. Pega a
próxima esquerda.
- E já que vocês são distantes e não se dão bem, por que sua
irmã nos ajudaria a descobrir a autenticidade do livro?
- Porque ela me deve uma. Depois daquele sinal pega a saída
para a Serra. Sim, vamos sair do Rio. Só espero que ela ainda esteja morando lá
- ela disse essa última frase para si mesma.
- Pensei ter ouvido você dizer que ela era arrogante e
insuportável.
- Sim, ela era. Algumas décadas atrás, ela era a mais
atraente de todas nós. Minha mãe nos fez com ligeiras diferenças, mas parecia
que ela tinha caprichado na Debóhra,. Ela era mais inteligente, mais bonita e
mais poderosa que todas nós. Sério ela era insuportável.
- Mas vocês não podem moldar a forma que usam para se
mostrar para os humanos? - enquanto eu falava um gato preto de olhos brilhantes
cruzou a estrada com um rompante - Por exemplo, você sempre muda os cabelos,
por que não poderia mudar suas formas e ficar mais parecida com ela então, se
isso incomodava tanto?
- Se você abrir o livro no capítulo que trata sobre eu e
minhas irmãs, vai ver que chamamos de segunda pele essa maquiagem que usamos
para transitar livremente nesse plano. Acontece que a segunda pele não toma a
forma que eu quiser assim, arbitrariamente. Comprimento dos cabelos, cor dos
olhos, formato das unhas eu consigo variar, mas a segunda pele se molda ao meu
corpo como ele é. Ela tem meus exatos volumes, fora os chifres e o rabo, claro.
Debóhra era gostosa e atraente por ser gostosa e atraente, ponto. Nenhuma de
nós conseguia chegar lá e isso causava muitas discussões e conflitos. As vezes
eu suspeito que Triskelle a fez assim de propósito, aquela cobra adora ver o
circo pegando fogo. E a Debóhra era uma filha da puta também, ela sabia disso e
sabia que incomodava a gente, ainda assim esfregava na nossa cara. - e com uma
voz afetada ela fez uma caricatura da irmã - ‘Ai, eu nunca fui exorcizada. Não
preciso fugir ou me preocupar em limpar minhas pistas porque nunca suspeitam de
mim. Deve ser muito chato ter que se preocupar com tudo isso.'
- E imagino que você tenha saído no tapa com ela algumas
vezes. - falei ainda rindo da sua imitação.
- Muitas, mas aí é que está, a vadia ainda era forte como um
touro. Eu saía por baixo todas as vezes e em qualquer aspecto. Eu e qualquer
uma que tentasse. Bom, foi assim até que ela se descuidou. - um sorriso sádico
em seus lábios - E toda a arrogância foi por água abaixo. Acontece que algumas
das minhas outras irmãs, com raiva das atitudes babacas dela por séculos, prepararam
uma armadilha que ela caiu como uma criancinha ingênua. Você sabe que nós nos
alimentamos dos desejos impuros dos homens, certo?
- Algo que é bem mais fácil de conseguir do que sangue. -
pontuei.
- Talvez. Mas para Debóhra essa facilidade não deu bons
resultados. Outra de minhas irmãs tinha um plano, ela tentou e torturou tanto
um mortal que o levou a loucura. Nessa condição, ele não respondia mais por si
e fazia tudo que ela queria. Isso não é algo incomum isso acontecer, eu mesma
tenho vários escravos que visito pra me alimentar quando quero. Os homens ficam
parecendo nossos cachorrinhos e fazem tudo o que pedimos sem o mínimo
questionamento. Ela poderia ter pedido a ele um olho, um braço ou qualquer
outra coisa que ele daria, só que ela pediu que ele servisse de isca. Eu não
participei desse plano, estava no plano inferior na época. Mas de lá pude ver
as minhas irmãs arquitetando tudo. As instruções do mortal eram bem simples,
começavam dizendo que ele deveria estar no mesmo bar que Debóhra estaria
naquela noite. Ela não suspeitou de nada e, cheia de si, não demorou para
atacar aquele alvo fácil. Em pouco tempo estava no carro dele, no
estacionamento, se alimentando dele. O mortal tinha mais uma instrução: quando
ela mostrasse a sua verdadeira forma, ele deveria tirar a tesoura que tinha
escondida dos bolsos e cortar a própria pele, o máximo de vezes que
conseguisse. São breves segundos que ficamos realmente vulneráveis a um golpe
desses, você viu quando aconteceu comigo lá naquele hotel. É rápido, mas
ficamos sem defesa durante o processo de transformação. Obediente, o escravo
fez o que lhe foi ordenado. - Máira simulou o movimento de cortes com as mãos -
E quando Debóhra estava enfraquecida demais para qualquer reação, ele esfregou
em seu pescoço todo o sangue que conseguiu antes que a hemorragia lhe tirasse a
consciência. Entenda, seu vir sangue, meus olhos passam a arder e lacrimejar, o
cheiro me deixa com náuseas e dor de cabeça…mas é o contato direto com a pele o
pior. Eu nunca passei por isso, mas sei de relatos bem pesados, principalmente
em embate com os padres que usam o próprio sangue contra nós. Em nossa pele,
ele arde e corrói como ácido, nossa carne ferve e até os ossos podem se
desfazer em alguns poucos segundos de contato. Ela foi encontrada por algum outro
demônio, acho que um jinn ou um kappa que estava fugindo enquanto era
perseguido por sacerdos. Ferido, ele não conseguiu fazer muita coisa para
ajuda-la e acabou emboscado pelos padres. Os dois foram exorcizados e Triskelle
mandou que eu recebesse Debóhra nos portões. Eu não gostava mais dela do que
minhas irmãs que montaram a armadilha, só que era menos insuportável cruzar
meio Inferno para levar minha irmã ferida pra casa do que contrariar a minha
mãe. Ela não é conhecida por ter muita misericórdia.
- Ela estava viva? - não desviei os olhos da estrada um só
momento enquanto ela contava a história, mas estava totalmente absorta nela.
- Estava, eu disse que a puta era forte. Quando a encontrei,
ela estava desacordada, mas antes de atravessarmos o Aqueronte já tinha
acordado. Vaidosa, me perguntou como ela estava e eu disse a verdade. Ela
estava horrível. Deformada no rosto que antes fora bonito de um jeito que os
olhos estavam fundos demais e as bochechas e o maxilar muito inchadas e
protuberantes. O acabelo crescia em tufos secos e esporádicos e os lábios
estavam com bolhas purulentas. Mas o pior era o seu pescoço, ou melhor o que
havia sido o seu pescoço. Foi lá que o enviado das minhas irmãs tinha
concentrado o sangue no ataque e desde os ombros até a base do queixo tudo ali
era um amontoado de tendões defeituosos, cartilagens corroídas e ossos. Mais de
uma vez eu pensei que o peso da sua cabeça iria partir a espinha e tornar tudo
ainda pior, mas isso não aconteceu. Quando chegamos no castelo de Triskelle,
ela ordenou que eu deixasse Debóhra em sua cripta e saísse. Eu nunca me senti à
vontade no castelo da minha mãe e essa era a deixa que eu precisava pra sair de
lá. Continuei minha busca por portais para voltar para cá e eventualmente achei
um. Triskelle conseguiu permissão para criar uma classe de demônios para
ela depois da guerra, mas somos um número específico, ela não poderia destruir
e criar assim, segundo sua vontade. Lembro de ela ter pedido para Abaddon
permissão para criar mais de nós um tempo atrás e ele vetou. Ah, desculpa,
Abaddon é...
- Outro nome pra Lúcifer, - respondi - entendi pelo
contexto.
- Isso, você está pegando o jeito. Então, não acho que ela
tenha feito o que fez para trazer Debóhra de volta por ser boazinha ou mesmo
por ter alguma empatia por ela, mas não é vantajoso para Triskelle que ela
perca suas servas assim. Pega a direita aqui, vamos passar pelos portões de
Friburgo, e depois já não falta muito.
- Você encontrou com essa Debóhra depois de tudo isso? -
perguntei enquanto seguia suas orientações.
- Encontrei, alguns meses atrás, na verdade. Não a
reconheci, foi ela quem veio falar comigo. Sua segunda pele agora se molda em
cima do seu corpo defeituoso, o que torna muito difícil para ela ter algum
sucesso com as investidas para se alimentar. Mas ela foi esperta, sua aparência
pode ter sido comprometida, mas não a cabeça, sabe qual é a única coisa que nos
sacia mais que a consumir os desejos luxuosos de um mortal?
- O que?
- Consumir os desejos de um padre. São muito mais nutritivos
e nos permitem ficar satisfeitas por muito mais tempo. Debóhra me contou que
mantêm um sacerdo como seu escravo sexual no porão de casa. E é assim que tem
se mantido ultimamente. Você consegue imaginar? Ela corrompeu um padre!
- É…acho que consigo imaginar sim. - eu ri enquanto deixava
que a ficha caísse para ela.
- Você é insuportável, Carolina.
- Não é culpa minha se os rapazes não conseguem dizer não.
Mas falando sério agora, o quão estragada ela ficou depois daquilo?
- Você vai ter a oportunidade de perguntar a ela
pessoalmente. Encosta aqui, nós chegamos."
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