domingo, 24 de julho de 2016

Ver042



“A Serra fluminense não é exatamente fria, apesar do imaginário popular. Alguns graus abaixo da temperatura da capital, mas para quem já morou na Europa e é basicamente uma morta-viva que se alimenta de sangue quente, “frio” tem uma outra conotação. 

As pessoas na discreta rua residencial que contornei para estacionar o carro pareciam concordar comigo, nenhuma delas usava casaco. Exceto um adolescente que vinha com cabelo penteado para trás com gel numa tentativa frustrada de copiar o estilo dos atores de cinema da época. Ele, e sua jaqueta de couro destoavam de todos os outros passantes.

Assim como a casa.

Situada entre um prédio de arquitetura moderna e uma padaria de aspecto familiar e tradicional, a casa não parecia se encontrar em nenhum dos dois extremos. Sua construção parecia ter sido feita de maneira paulatina, o que acarretou numa desconexão geral em sua estrutura. Era pequena em comparação ao seu terreno, fazendo parecer que a grama alta engolia seus membros mal costurados. Não havia cerca, e a vegetação vinha até a calçada onde era aparada naturalmente pela roda dos carros.

- Ótimo, ela está em casa. - Máira indicou com a cabeça uma luz acesa emanando da janela que ficava à extrema direita da casa.

Fomos até o único ponto de passagem através da grama não aparada, que era uma sucessão de placas de concreto postas uma após a outra, abrindo caminho até a soleira da porta de madeira. Uma senhora que fumava numa das varandas do prédio que se levantava à esquerda da casa nos olhou com desaprovação e jogou a sobra de eu cigarro no farto jardim da casa antes de entrar.

Não havia campainha, em seu lugar foi posto uma aldrava oxidada pelo tempo. Máira bateu duas vezes contra a porta, e quando se preparava para faze-lo novamente, ouvimos a tranca se abrir e as dobradiças gemerem.

A madeira não parecia estar em bom estado, então fiquei em dúvida se Máira tinha batido forte demais e forçado a tranca ou se realmente alguém havia aberto a porta. Alguns segundos depois um braço fez um gesto para que entrássemos. Minha amiga seguiu o gesto instintivamente, enquanto eu fiquei parada na soleira da porta.

- Posso entrar? - perguntei.
- Não sabia que você se misturava agora, irmã - disse a voz escondida atrás da porta de madeira podre. Uma voz arrastada e com a língua presa. - Sim, você pode entrar.

A porta se fechou assim que entrei e eu a vi. Máira tinha me contado a história toda, por isso eu acreditava estar preparada, mas você não se prepara para receber uma bala de canhão mesmo que tenha ouvido a ordem de disparo antes, certo? Debóhra era baixa e seu tronco tinha a forma de um barril, as pernas eram tortas e os braços pareciam curtos demais em comparação ao resto do corpo. Eu poderia dizer que os cabelos loiros vinham a altura do pescoço, mas o que mais impressionava em sua aparência grotesca era que Debóhra não tinha pescoço. Uma massa de carne desforme e pele repuxada unia seus ombros à base do rosto. 

Um silêncio constrangedor desceu sobre a casa onde todas nós trocamos olhares sem saber muito bem com agir.

- Então…eu não estava esperando visitas. Não sei se tenho alguma coisa na dispensa para oferecer. - a irmã de Máira quebrou o gelo com a sua voz defeituosa - Mas acredito que vocês não se importam muito com isso, quer dizer, acho que você nem come coisas convencionais, certo?
- Não, e nem estou com sede também. - minha resposta saiu mais grossa do que eu esperava, mas foi por estar ainda pasma com aquela figura à minha frente.

Debóhra abriu um sorriso amarelo o máximo que sua pele defeituosa permitia e examinou a mim e a sua irmã com olhos suspeitos. Ela tinha um ar pedante a despeito de sua aparência, e isso me incomodava.

- Por que não vamos até a sala? - ela sugeriu e começou a liderar o caminho sem se preocupar em esperar a nossa resposta. Percebi que seu caminhar era desengonçado, ela andava com as pernas arqueadas e abertas demais e os curtos braços alternavam em balanços cômicos a cada passo. 

Ao adentrar na sala, ouvi a madeira de seu piso estalando abaixo dos meus pés. Como a casa toda parecia num estado comprometido não dei muita atenção a isso, mas confesso ter me assustado quando eu e Máira sentamos no sofá puído e pude sentir nitidamente as tábuas arqueando sob o nosso peso.

Debóhra, no entanto, não esboçou reação a isso. Ela se pôs numa poltrona de aspecto mais novo ao nosso lado e estalou todos os dedos da mão antes de perguntar para Máira:

- E então, irmã, você tem visto a mãe? Alguma das outras?
- Depois do nosso encontro eu não fui mandada lá pra baixo ainda, por isso estou há alguns anos sem ver a mãe. Mas encontrei Lúpta e  Cicélia para um drink há um tempo atrás. Elas também perguntaram sobre você.
- Perguntaram, é? Elas são adoráveis mesmo. - nossa anfitriã disse sarcástica - Gostaria que elas tivessem se preocupado em me avisar da pequena brincadeira que nossas outras irmãs fizeram comigo também.

O sorriso repuxado tinha aparecido outra vez e, enquanto Máira e a irmã conversavam sobre frivolidades eu notei que algo mais me incomodava naquele aposento. Corri os olhos pela sala e, apesar do mau gosto, percebi que não era a decoração. Um cachorro latia lá fora, mas salvo isso não havia som algum para me perturbar também. Procurei rapidamente algum crucifixo pela sala por instinto, antes de lembrar que Debóhra também era uma de nós. Por fim, senti o que era. O cheiro não parecia estar emanando de algum ponto específico, e eu não havia dado atenção a ele assim que entramos, mas agora, sentada ali, podia senti-lo inundando o ambiente. 

Máira e Debóhra não pareciam notar, não como eu. Culpei meu olfato mais sensível por isso, mas a verdade é que inspirar estava se tornando uma tarefa bem incômoda. O cheiro era forte e parecia uma mistura de excrementos humanos, novos e velhos. Apesar da decoração ruim, a sala parecia limpa até certo ponto e eu estava me perguntando de onde ele poderia estar vindo quando Máira me cutucou.

- Vai, mostra pra ela.
- Pardon? - respondi sem saber bem o que deveria mostrar.
- Eu perguntei para Máira o motivo da visita e ela disse que tinha trazido algo para me mostrar. Acredito que esteja na sua bolsa? - disse a língua presa.
- Ah, sim. - me apressei em tirar o antigo livro da minha bolsa e entrega-lo a ela. Como Máira, ela não entendeu de início o que era. Mas não ouve surpresa em seu olhar quando ela começou a entender o conteúdo das páginas.
- Então - seus olhos fundos não saíam das páginas enquanto ela falava - você me trouxe um dos livros dos padres. Eu agradeço, mas não entendo o motivo.
- Irmã, eu acredito que este seja o primeiro livro. Aquele que o anjo trouxe e entregou para eles. 
- O original? - Debóhra passou mais algumas páginas do livro o examinando com cuidado. - Onde vocês o encontraram?
- Estava na biblioteca especial da minha casa. - respondi.
- E quem é você, vampira?
- Sou Carolina LeBion. - fiz questão de que meu nome tivesse um tom tão desafiador quanto a empáfia de sua pergunta. A Aaba se limitou a olhar como se aquilo devesse ter dito alguma coisa a ela.
- Carolina é do clã de Lucas, ela vive com ele ha mais de cem anos. - pela primeira vez, pude ver o rosto horrível adquirir uma expressão surpresa.
- Malta? Você é do clã de Lucas Malta? - ela pôs uma ênfase sutil no “você”.
- Sou, e viemos até você porque Máira achou que você poderia confirmar se esse é realmente o original do Livro dos Ofícios. - eu ainda não estava acostumada com a aparente fama de Lucas entre os demônios, mas me vali dela para reforçar nosso ponto - Acredito que, se você não puder avaliar o livro, estamos todas perdendo nosso tempo aqui.

Debórah estalou os lábios displicentemente e me fitou por algum tempo.

- Digamos que eu possa. Vamos supor que eu consiga dar a vocês a  certeza se este é o primeiro Livro dos Ofícios ou uma cópia inútil dele. Diga-me, Carolina LeBion, o que eu ganharia com isso?

A possível ajuda e a curiosidade para saber o resultado de nossa busca não foram maiores que o ódio que senti daquele tom presunçoso e do desdém com o qual Debóhra havia olhado para mim. Carlos dizia que meus olhos perdiam o castanho e pareciam vermelhos quando eu estava muito intensa e tenho certeza de que meus olhos estavam bem vermelhos naquela ocasião. Usei toda a minha velocidade para atravessar a sala e chegar até Debóhra, inclusive lembro de ter quebrado uma mesa de centro que estava no caminho. Ela sequer entendeu o que estava acontecendo até ser tarde demais e, no espaço de uma inspiração, eu já estava à sua frente, agarrando sua garganta e levantando-a enquanto minhas unhas entravam fundo na pele dilacerada de seu pescoço. Sendo um pouco mais baixa que eu, seu esforços eram em vão e eu facilmente a ergui até que seus pés não tocassem mais o chão e depois bati algumas vezes a sua cabeça contra a velha parede, que logo cedeu.

- Você ganha a sua existência nesse plano, - minha voz estava alterada até mesmo para os meus ouvidos, soava áspera e assassina - e acho que isso é uma ótima oferta e eu aconselharia que você aceitasse. Caso contrário, - eu quase podia sentir sua frágil traqueia entre os meus dedos - você vai voltar para o Inferno. Mais horrorosa ainda. É isso que você ganha.

Máira apareceu ao meu lado um tanto quanto assustada e com calma baixou meu braço e junto dele sua irmã. Ainda mantive os dedos alguns segundos enquanto olhava fundo nos olhos dela e os torci quando tirei. Minhas unhas fizeram rasgos consideráveis e eu queria acabar com ela ali mesmo, mas me limitei a sustentar o olhar desafiador para ela. Apesar do estado em que eu a havia deixado, ela não desviou o olhar por um instante sequer. Debóhra era odiosa, mas valente, preciso admitir. 

Minha amiga se pôs entre nós tentando evitar uma luta que certamente chamaria a atenção dos vizinhos e poderia nos complicar. Debóhra não deu atenção a ela, e confesso que também não. Eu apenas esperava um leve movimento dela para agredi-la outra vez quando fui surpreendida. Ela não atacou, apenas rasgou rispidamente uma das mangas da camisa que usava e a enrolou desajeitadamente sobre o pescoço.

Agora que a atmosfera da sala estava esfriando, Máira pegou o livro que tinha caído no chão quando eu fiz minha primeira investida e a mostrou para ela, como que para traze-la de volta à razão:

- Irmã, se eu estiver certa, nós temos um tesouro aqui. Imagine quanto demônios estão atrás disso aqui?! E eu não estou falando da ralé como nós. Não, ou vi dizer que o próprio Sonneillon procura isso séculos a fio. E se ele faz, os outros lordes do Inferno também fazem.
- E que diferença a busca de nossos nobres senhores poderia significar para mim? - sua voz saiu fina e esganiçada.

Máira sorriu para ela maliciosa.

- Você se lembra quando Azmodeu e a mãe tiveram aquela briga de décadas e no fim, ele quebrou alguma das vértebras dela?
- Claro que lembro. Ela ficou inválida e nos obrigou a cuidar dela por meses. Seu ponto?
- Exatamente, mas após a poeira baixar, ela mandou que algumas de nós fossem chamar Buer, lembra? Para reabilita-la. Meu ponto, irmã, é que existem alguns entre nós com o poder de curar semelhante ao do próprio Rafael. E estou certa que algum deles acharia sua reabilitação um preço justo a ser pago pelo livro.

O brilho da ganância tomou a face da minha rival e pareceu restabelece-la e confesso que naquele momento vi um vislumbre de beleza em seu rosto. Debóhra tinha em seu âmago mais profundo o desejo de voltar a ser como era e gozar de todas as regalias que sua beleza lhe trouxe um dia. Era inesperado ver a irônica e desbocada Máira conduzir uma negociação quase diplomática, mas ela se mostrou competente. Enquanto sua irmã se deliciava com aquela perspectiva, ela insistiu:

- Se, é claro, você puder nos ajudar neste pequeno detalhe. Pensei no seu jovem amigo. Você ainda o tem?
- E quando foi que eu perdi algum admirador, irmã? - Debóhra alisou a garganta ferida por cima do pano empapado - Venham comigo.

Acompanhamos seu passo desajeitado por um corredor que parecia ir se tornando mais abafado a cada momento. Conforme avançávamos, o fedor ficava mais intenso. Gesticulei para Máira, questionando se também estava sentindo aquilo, e ela apenas disse para que eu esperasse. O corredor dava numa área que parecia ainda estar em construção, um cômodo retangular e apertado. O piso, as paredes e o teto eram cobertos da mesma mistura de cimento mal acabado. Não havia nada ali, a não ser uma escada que descia em diagonal, morrendo no sentido contrário ao corredor de onde viemos. Nossa anfitriã, que seguia em silêncio, checou os bolsos à procura de algo e quando encontrou desceu a escada. Máira a seguiu e eu preferi ir por último para descer com calma, já que me sentia nauseada.

E foi lá, quando pisei no último degrau, que descobri a origem de toda a podridão que empestava o ar da casa.

Estávamos bem abaixo da sala onde eu havia feito o ataque à Debóhra minutos antes. Amplo, o ambiente era o que tinha os melhores móveis da casa: uma grande mesa, um armário, uma mesa de cabeceira e uma cama. Todos aparentando bom estado e feitos da mesma madeira de qualidade. Não havia janelas, no entanto, abajures e lâmpadas de mesa mantinham o ambiente bem iluminado. Tudo era bem aconchegante e receptivo, exceto pela jaula.

- Não seja rude, Hugo. De oi para as visitas. - disse Debóhra, entre discretos pigarros.

Dentro da jaula, que era feita de barras de ferro e ia do piso ao teto do quarto, havia um garoto. Adolescente, era provável que não tivesse nem dezoito anos. Ele estava nu e acorrentado numa viga mais grossa que se erguia do centro da jaula. Tinha cabelos escuros e lisos à altura dos ombros, e por dentre eles eu vi um rosto bastante feminino. Somente as grossas sobrancelhas, que me faziam lembrar de taturanas, me indicavam que era um garoto. Isso e o que ele tinha exposto entre as pernas preso por um cruel cinto de castidade, mas mesmo ele era muito pequeno e desproporcional à sua altura. Hugo tinha marcas de urina na parte interna das coxas que irradiavam até o chão, onde também era possível ver fezes antigas e novas forrando todo o interior de seu cativeiro. Não havia vestígio de comida.

- O-oi…olá. - respondeu o garoto, e eu pensei ter ouvido timidez na sua voz.

Tenho que dizer que aquilo me pegou desprevenida, não esperava algo como um garoto preso numa jaula num lugar como aqueles. Máira não estava sequer minimamente impactada com a visão, o que me levou a crer que ela já estava ciente daquilo. Fiquei perplexa com aquele quadro e demorei para me dar conta que elas já tinham sentado nas confortáveis poltronas que ficavam na lateral da jaula e me juntei à elas.

- Este é um dos meus admiradores. - Debóh dizia isso com orgulho e júbilo - Hugo estava estudando para se ordenar. Ele ia ser um dos Sacerdos, mas nos encontramos alguns meses antes da cerimônia e tudo mais, e o que eu posso dizer…acho que o amor venceu, não é mesmo?

O garoto não respondeu. Apenas olhou para aquela figura horrenda à sua frente e tentou levar um dos braços acorrentados à sua direção sem lembrar das correntes que o impediam. Era quase inexplicável a admiração naquele olhar, ele estava fingindo muito bem ou realmente parecia estar apaixonado por Debóhra.

- Conte para elas o que você era quando nos conhecemos.
- Um estudante da Ordem dos Sacerdos da Catedral de São João Batista. - ele respondeu, incapaz de tirar os olhos de sua dona.
- Não, não querido…eu estou dizendo sobre suas experiências.
- Ah, eu…eu era virgem. - e agora definitivamente havia timidez na sua voz.
- Muito bem! Isso mesmo, - Debóhra o parabenizava como uma cachorro que aprendeu um truque novo - ele era virgem. Você acredita quanto tempo eu consegui ficar sem precisar me alimentar depois que tirei a virgindade do Hugo, irmã? Meses!
- Virgem, é? - Máira brincou - Achei que não se achava mais desse tipo por aí.

Eu estava realmente desconfortável, por alguma coisa além do odor pútrido. A notícia de que o garoto era virgem me incomodou ainda mais. Ele era padre, virgem e, ao que tudo indicava, estava apaixonado. Assim como Carlos, e ver qualquer coisa que tivesse o mínimo paralelo com ele naquele estado não me deixava nenhum pouco à vontade. Mas acredito que, mesmo se não tivesse encontrado nenhuma ligação entre os dois, ainda assim eu ficaria terminantemente contra qualquer forma de amor impingida a outra pessoa.

- Por que você mantêm ele assim? - perguntei, seca.
- Do que você está falando? - Debóhra respondeu no mesmo tom.
- Estou falando de você literalmente precisar deixar um homem acorrentado para que ele esteja com você. O que você ganha com isso?
- Eu quero. - quem respondeu foi o próprio Hugo.

Debóhra saboreava sua primeira vitória sobre mim.

- Pode repetir, querido, acredito que a nossa sanguessuga aqui não escutou direito.
- Eu gosto…assim, quero dizer. - olhou para o interior da sua jaula - Ela sugeriu e eu…eu gosto.

Máira me olhou de modo censor, e talvez ela estivesse certa. Eu não deveria me meter e aquilo não era da minha conta, mas aquela situação não me descia. Me recompus e voltei ao meu assento tentando não ser tão atingida pela visão do garoto pisando em seus próprios excrementos por vontade.

- Agora, eu tenho um pedido para te fazer, Hugo. A minha amiga ali tem um livro que, eu acredito, você tenha familiaridade. Estamos em  dúvida da autenticidade dele. Você acha que pode nos ajudar? - a última frase foi dita com toda libido que sua voz de língua presa poderia ter.
- Agora mesmo! Vou fazer o possível, senhora.

Debóhra estendeu a mão para que eu lhe desse o livro, mas eu a ignorei e o levei até a jaula de Hugo e esperei que ela abrisse a porta e trouxesse seu escravo. Com uma referência irônica, ela me induziu a entrar.

- Eu não vou entrar aí.
- Tudo bem, - Debóhra bateu a porta com força - ele tem bons olhos. Mostre o livro.

Máira se pôs ao meu lado empolgada enquanto eu desembrulhava a publicação do pano que a protegia. Escolhi uma página aleatória e abri o livro na altura dos olhos de Hugo. 

Seu cativeiro era grande, ocupava boa parte do quarto, e por isso tínhamos uma relativa distancia entre nós. Ele olhou fixo por um tempo, depois baixou os olhos e voltou a se esforçar mais. Frustrado consigo mesmo, ele olhou para Debóhra e disse:

- Desculpe, eu não consigo ler. Está muito longe.
- Eu não vou entrar aí. - repeti.
- Por que você não o traz aqui, irmã? Adoraria ve-lo mais de perto. - Máira ainda tratava tudo com muita naturalidade. Sua irmã, que não estava nenhum pouco feliz em sujar os pés, me fuzilou com os olhos antes de entrar na jaula e trazê-lo para perto.

Passei o livro para as mãos dele e ele quase o deixou cair, por ser pesado. Então pus as minhas mãos sob as dele, afim de dividir o peso, e ele me olhou. Primeiro de relance, e tentou voltar ao livro, mas sem demora seus olhos estavam em mim novamente.

Fixamente, como se fosse eu o objeto a ser examinado, ele me olhava.

Debóhra, estava claramente incomodada com aquilo, e isso me deixou feliz. Ela puxou um dos mamilos do garoto com tudo que podia e perguntou:

- Ela acredita que esse seja...
- O Livro dos Ofícios dos Espíritos. Sua publicação original - ele disse com uma voz tão sofrida quanto certeira. “




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