domingo, 24 de julho de 2016

Ver042



“A Serra fluminense não é exatamente fria, apesar do imaginário popular. Alguns graus abaixo da temperatura da capital, mas para quem já morou na Europa e é basicamente uma morta-viva que se alimenta de sangue quente, “frio” tem uma outra conotação. 

As pessoas na discreta rua residencial que contornei para estacionar o carro pareciam concordar comigo, nenhuma delas usava casaco. Exceto um adolescente que vinha com cabelo penteado para trás com gel numa tentativa frustrada de copiar o estilo dos atores de cinema da época. Ele, e sua jaqueta de couro destoavam de todos os outros passantes.

Assim como a casa.

Situada entre um prédio de arquitetura moderna e uma padaria de aspecto familiar e tradicional, a casa não parecia se encontrar em nenhum dos dois extremos. Sua construção parecia ter sido feita de maneira paulatina, o que acarretou numa desconexão geral em sua estrutura. Era pequena em comparação ao seu terreno, fazendo parecer que a grama alta engolia seus membros mal costurados. Não havia cerca, e a vegetação vinha até a calçada onde era aparada naturalmente pela roda dos carros.

- Ótimo, ela está em casa. - Máira indicou com a cabeça uma luz acesa emanando da janela que ficava à extrema direita da casa.

Fomos até o único ponto de passagem através da grama não aparada, que era uma sucessão de placas de concreto postas uma após a outra, abrindo caminho até a soleira da porta de madeira. Uma senhora que fumava numa das varandas do prédio que se levantava à esquerda da casa nos olhou com desaprovação e jogou a sobra de eu cigarro no farto jardim da casa antes de entrar.

Não havia campainha, em seu lugar foi posto uma aldrava oxidada pelo tempo. Máira bateu duas vezes contra a porta, e quando se preparava para faze-lo novamente, ouvimos a tranca se abrir e as dobradiças gemerem.

A madeira não parecia estar em bom estado, então fiquei em dúvida se Máira tinha batido forte demais e forçado a tranca ou se realmente alguém havia aberto a porta. Alguns segundos depois um braço fez um gesto para que entrássemos. Minha amiga seguiu o gesto instintivamente, enquanto eu fiquei parada na soleira da porta.

- Posso entrar? - perguntei.
- Não sabia que você se misturava agora, irmã - disse a voz escondida atrás da porta de madeira podre. Uma voz arrastada e com a língua presa. - Sim, você pode entrar.

A porta se fechou assim que entrei e eu a vi. Máira tinha me contado a história toda, por isso eu acreditava estar preparada, mas você não se prepara para receber uma bala de canhão mesmo que tenha ouvido a ordem de disparo antes, certo? Debóhra era baixa e seu tronco tinha a forma de um barril, as pernas eram tortas e os braços pareciam curtos demais em comparação ao resto do corpo. Eu poderia dizer que os cabelos loiros vinham a altura do pescoço, mas o que mais impressionava em sua aparência grotesca era que Debóhra não tinha pescoço. Uma massa de carne desforme e pele repuxada unia seus ombros à base do rosto. 

Um silêncio constrangedor desceu sobre a casa onde todas nós trocamos olhares sem saber muito bem com agir.

- Então…eu não estava esperando visitas. Não sei se tenho alguma coisa na dispensa para oferecer. - a irmã de Máira quebrou o gelo com a sua voz defeituosa - Mas acredito que vocês não se importam muito com isso, quer dizer, acho que você nem come coisas convencionais, certo?
- Não, e nem estou com sede também. - minha resposta saiu mais grossa do que eu esperava, mas foi por estar ainda pasma com aquela figura à minha frente.

Debóhra abriu um sorriso amarelo o máximo que sua pele defeituosa permitia e examinou a mim e a sua irmã com olhos suspeitos. Ela tinha um ar pedante a despeito de sua aparência, e isso me incomodava.

- Por que não vamos até a sala? - ela sugeriu e começou a liderar o caminho sem se preocupar em esperar a nossa resposta. Percebi que seu caminhar era desengonçado, ela andava com as pernas arqueadas e abertas demais e os curtos braços alternavam em balanços cômicos a cada passo. 

Ao adentrar na sala, ouvi a madeira de seu piso estalando abaixo dos meus pés. Como a casa toda parecia num estado comprometido não dei muita atenção a isso, mas confesso ter me assustado quando eu e Máira sentamos no sofá puído e pude sentir nitidamente as tábuas arqueando sob o nosso peso.

Debóhra, no entanto, não esboçou reação a isso. Ela se pôs numa poltrona de aspecto mais novo ao nosso lado e estalou todos os dedos da mão antes de perguntar para Máira:

- E então, irmã, você tem visto a mãe? Alguma das outras?
- Depois do nosso encontro eu não fui mandada lá pra baixo ainda, por isso estou há alguns anos sem ver a mãe. Mas encontrei Lúpta e  Cicélia para um drink há um tempo atrás. Elas também perguntaram sobre você.
- Perguntaram, é? Elas são adoráveis mesmo. - nossa anfitriã disse sarcástica - Gostaria que elas tivessem se preocupado em me avisar da pequena brincadeira que nossas outras irmãs fizeram comigo também.

O sorriso repuxado tinha aparecido outra vez e, enquanto Máira e a irmã conversavam sobre frivolidades eu notei que algo mais me incomodava naquele aposento. Corri os olhos pela sala e, apesar do mau gosto, percebi que não era a decoração. Um cachorro latia lá fora, mas salvo isso não havia som algum para me perturbar também. Procurei rapidamente algum crucifixo pela sala por instinto, antes de lembrar que Debóhra também era uma de nós. Por fim, senti o que era. O cheiro não parecia estar emanando de algum ponto específico, e eu não havia dado atenção a ele assim que entramos, mas agora, sentada ali, podia senti-lo inundando o ambiente. 

Máira e Debóhra não pareciam notar, não como eu. Culpei meu olfato mais sensível por isso, mas a verdade é que inspirar estava se tornando uma tarefa bem incômoda. O cheiro era forte e parecia uma mistura de excrementos humanos, novos e velhos. Apesar da decoração ruim, a sala parecia limpa até certo ponto e eu estava me perguntando de onde ele poderia estar vindo quando Máira me cutucou.

- Vai, mostra pra ela.
- Pardon? - respondi sem saber bem o que deveria mostrar.
- Eu perguntei para Máira o motivo da visita e ela disse que tinha trazido algo para me mostrar. Acredito que esteja na sua bolsa? - disse a língua presa.
- Ah, sim. - me apressei em tirar o antigo livro da minha bolsa e entrega-lo a ela. Como Máira, ela não entendeu de início o que era. Mas não ouve surpresa em seu olhar quando ela começou a entender o conteúdo das páginas.
- Então - seus olhos fundos não saíam das páginas enquanto ela falava - você me trouxe um dos livros dos padres. Eu agradeço, mas não entendo o motivo.
- Irmã, eu acredito que este seja o primeiro livro. Aquele que o anjo trouxe e entregou para eles. 
- O original? - Debóhra passou mais algumas páginas do livro o examinando com cuidado. - Onde vocês o encontraram?
- Estava na biblioteca especial da minha casa. - respondi.
- E quem é você, vampira?
- Sou Carolina LeBion. - fiz questão de que meu nome tivesse um tom tão desafiador quanto a empáfia de sua pergunta. A Aaba se limitou a olhar como se aquilo devesse ter dito alguma coisa a ela.
- Carolina é do clã de Lucas, ela vive com ele ha mais de cem anos. - pela primeira vez, pude ver o rosto horrível adquirir uma expressão surpresa.
- Malta? Você é do clã de Lucas Malta? - ela pôs uma ênfase sutil no “você”.
- Sou, e viemos até você porque Máira achou que você poderia confirmar se esse é realmente o original do Livro dos Ofícios. - eu ainda não estava acostumada com a aparente fama de Lucas entre os demônios, mas me vali dela para reforçar nosso ponto - Acredito que, se você não puder avaliar o livro, estamos todas perdendo nosso tempo aqui.

Debórah estalou os lábios displicentemente e me fitou por algum tempo.

- Digamos que eu possa. Vamos supor que eu consiga dar a vocês a  certeza se este é o primeiro Livro dos Ofícios ou uma cópia inútil dele. Diga-me, Carolina LeBion, o que eu ganharia com isso?

A possível ajuda e a curiosidade para saber o resultado de nossa busca não foram maiores que o ódio que senti daquele tom presunçoso e do desdém com o qual Debóhra havia olhado para mim. Carlos dizia que meus olhos perdiam o castanho e pareciam vermelhos quando eu estava muito intensa e tenho certeza de que meus olhos estavam bem vermelhos naquela ocasião. Usei toda a minha velocidade para atravessar a sala e chegar até Debóhra, inclusive lembro de ter quebrado uma mesa de centro que estava no caminho. Ela sequer entendeu o que estava acontecendo até ser tarde demais e, no espaço de uma inspiração, eu já estava à sua frente, agarrando sua garganta e levantando-a enquanto minhas unhas entravam fundo na pele dilacerada de seu pescoço. Sendo um pouco mais baixa que eu, seu esforços eram em vão e eu facilmente a ergui até que seus pés não tocassem mais o chão e depois bati algumas vezes a sua cabeça contra a velha parede, que logo cedeu.

- Você ganha a sua existência nesse plano, - minha voz estava alterada até mesmo para os meus ouvidos, soava áspera e assassina - e acho que isso é uma ótima oferta e eu aconselharia que você aceitasse. Caso contrário, - eu quase podia sentir sua frágil traqueia entre os meus dedos - você vai voltar para o Inferno. Mais horrorosa ainda. É isso que você ganha.

Máira apareceu ao meu lado um tanto quanto assustada e com calma baixou meu braço e junto dele sua irmã. Ainda mantive os dedos alguns segundos enquanto olhava fundo nos olhos dela e os torci quando tirei. Minhas unhas fizeram rasgos consideráveis e eu queria acabar com ela ali mesmo, mas me limitei a sustentar o olhar desafiador para ela. Apesar do estado em que eu a havia deixado, ela não desviou o olhar por um instante sequer. Debóhra era odiosa, mas valente, preciso admitir. 

Minha amiga se pôs entre nós tentando evitar uma luta que certamente chamaria a atenção dos vizinhos e poderia nos complicar. Debóhra não deu atenção a ela, e confesso que também não. Eu apenas esperava um leve movimento dela para agredi-la outra vez quando fui surpreendida. Ela não atacou, apenas rasgou rispidamente uma das mangas da camisa que usava e a enrolou desajeitadamente sobre o pescoço.

Agora que a atmosfera da sala estava esfriando, Máira pegou o livro que tinha caído no chão quando eu fiz minha primeira investida e a mostrou para ela, como que para traze-la de volta à razão:

- Irmã, se eu estiver certa, nós temos um tesouro aqui. Imagine quanto demônios estão atrás disso aqui?! E eu não estou falando da ralé como nós. Não, ou vi dizer que o próprio Sonneillon procura isso séculos a fio. E se ele faz, os outros lordes do Inferno também fazem.
- E que diferença a busca de nossos nobres senhores poderia significar para mim? - sua voz saiu fina e esganiçada.

Máira sorriu para ela maliciosa.

- Você se lembra quando Azmodeu e a mãe tiveram aquela briga de décadas e no fim, ele quebrou alguma das vértebras dela?
- Claro que lembro. Ela ficou inválida e nos obrigou a cuidar dela por meses. Seu ponto?
- Exatamente, mas após a poeira baixar, ela mandou que algumas de nós fossem chamar Buer, lembra? Para reabilita-la. Meu ponto, irmã, é que existem alguns entre nós com o poder de curar semelhante ao do próprio Rafael. E estou certa que algum deles acharia sua reabilitação um preço justo a ser pago pelo livro.

O brilho da ganância tomou a face da minha rival e pareceu restabelece-la e confesso que naquele momento vi um vislumbre de beleza em seu rosto. Debóhra tinha em seu âmago mais profundo o desejo de voltar a ser como era e gozar de todas as regalias que sua beleza lhe trouxe um dia. Era inesperado ver a irônica e desbocada Máira conduzir uma negociação quase diplomática, mas ela se mostrou competente. Enquanto sua irmã se deliciava com aquela perspectiva, ela insistiu:

- Se, é claro, você puder nos ajudar neste pequeno detalhe. Pensei no seu jovem amigo. Você ainda o tem?
- E quando foi que eu perdi algum admirador, irmã? - Debóhra alisou a garganta ferida por cima do pano empapado - Venham comigo.

Acompanhamos seu passo desajeitado por um corredor que parecia ir se tornando mais abafado a cada momento. Conforme avançávamos, o fedor ficava mais intenso. Gesticulei para Máira, questionando se também estava sentindo aquilo, e ela apenas disse para que eu esperasse. O corredor dava numa área que parecia ainda estar em construção, um cômodo retangular e apertado. O piso, as paredes e o teto eram cobertos da mesma mistura de cimento mal acabado. Não havia nada ali, a não ser uma escada que descia em diagonal, morrendo no sentido contrário ao corredor de onde viemos. Nossa anfitriã, que seguia em silêncio, checou os bolsos à procura de algo e quando encontrou desceu a escada. Máira a seguiu e eu preferi ir por último para descer com calma, já que me sentia nauseada.

E foi lá, quando pisei no último degrau, que descobri a origem de toda a podridão que empestava o ar da casa.

Estávamos bem abaixo da sala onde eu havia feito o ataque à Debóhra minutos antes. Amplo, o ambiente era o que tinha os melhores móveis da casa: uma grande mesa, um armário, uma mesa de cabeceira e uma cama. Todos aparentando bom estado e feitos da mesma madeira de qualidade. Não havia janelas, no entanto, abajures e lâmpadas de mesa mantinham o ambiente bem iluminado. Tudo era bem aconchegante e receptivo, exceto pela jaula.

- Não seja rude, Hugo. De oi para as visitas. - disse Debóhra, entre discretos pigarros.

Dentro da jaula, que era feita de barras de ferro e ia do piso ao teto do quarto, havia um garoto. Adolescente, era provável que não tivesse nem dezoito anos. Ele estava nu e acorrentado numa viga mais grossa que se erguia do centro da jaula. Tinha cabelos escuros e lisos à altura dos ombros, e por dentre eles eu vi um rosto bastante feminino. Somente as grossas sobrancelhas, que me faziam lembrar de taturanas, me indicavam que era um garoto. Isso e o que ele tinha exposto entre as pernas preso por um cruel cinto de castidade, mas mesmo ele era muito pequeno e desproporcional à sua altura. Hugo tinha marcas de urina na parte interna das coxas que irradiavam até o chão, onde também era possível ver fezes antigas e novas forrando todo o interior de seu cativeiro. Não havia vestígio de comida.

- O-oi…olá. - respondeu o garoto, e eu pensei ter ouvido timidez na sua voz.

Tenho que dizer que aquilo me pegou desprevenida, não esperava algo como um garoto preso numa jaula num lugar como aqueles. Máira não estava sequer minimamente impactada com a visão, o que me levou a crer que ela já estava ciente daquilo. Fiquei perplexa com aquele quadro e demorei para me dar conta que elas já tinham sentado nas confortáveis poltronas que ficavam na lateral da jaula e me juntei à elas.

- Este é um dos meus admiradores. - Debóh dizia isso com orgulho e júbilo - Hugo estava estudando para se ordenar. Ele ia ser um dos Sacerdos, mas nos encontramos alguns meses antes da cerimônia e tudo mais, e o que eu posso dizer…acho que o amor venceu, não é mesmo?

O garoto não respondeu. Apenas olhou para aquela figura horrenda à sua frente e tentou levar um dos braços acorrentados à sua direção sem lembrar das correntes que o impediam. Era quase inexplicável a admiração naquele olhar, ele estava fingindo muito bem ou realmente parecia estar apaixonado por Debóhra.

- Conte para elas o que você era quando nos conhecemos.
- Um estudante da Ordem dos Sacerdos da Catedral de São João Batista. - ele respondeu, incapaz de tirar os olhos de sua dona.
- Não, não querido…eu estou dizendo sobre suas experiências.
- Ah, eu…eu era virgem. - e agora definitivamente havia timidez na sua voz.
- Muito bem! Isso mesmo, - Debóhra o parabenizava como uma cachorro que aprendeu um truque novo - ele era virgem. Você acredita quanto tempo eu consegui ficar sem precisar me alimentar depois que tirei a virgindade do Hugo, irmã? Meses!
- Virgem, é? - Máira brincou - Achei que não se achava mais desse tipo por aí.

Eu estava realmente desconfortável, por alguma coisa além do odor pútrido. A notícia de que o garoto era virgem me incomodou ainda mais. Ele era padre, virgem e, ao que tudo indicava, estava apaixonado. Assim como Carlos, e ver qualquer coisa que tivesse o mínimo paralelo com ele naquele estado não me deixava nenhum pouco à vontade. Mas acredito que, mesmo se não tivesse encontrado nenhuma ligação entre os dois, ainda assim eu ficaria terminantemente contra qualquer forma de amor impingida a outra pessoa.

- Por que você mantêm ele assim? - perguntei, seca.
- Do que você está falando? - Debóhra respondeu no mesmo tom.
- Estou falando de você literalmente precisar deixar um homem acorrentado para que ele esteja com você. O que você ganha com isso?
- Eu quero. - quem respondeu foi o próprio Hugo.

Debóhra saboreava sua primeira vitória sobre mim.

- Pode repetir, querido, acredito que a nossa sanguessuga aqui não escutou direito.
- Eu gosto…assim, quero dizer. - olhou para o interior da sua jaula - Ela sugeriu e eu…eu gosto.

Máira me olhou de modo censor, e talvez ela estivesse certa. Eu não deveria me meter e aquilo não era da minha conta, mas aquela situação não me descia. Me recompus e voltei ao meu assento tentando não ser tão atingida pela visão do garoto pisando em seus próprios excrementos por vontade.

- Agora, eu tenho um pedido para te fazer, Hugo. A minha amiga ali tem um livro que, eu acredito, você tenha familiaridade. Estamos em  dúvida da autenticidade dele. Você acha que pode nos ajudar? - a última frase foi dita com toda libido que sua voz de língua presa poderia ter.
- Agora mesmo! Vou fazer o possível, senhora.

Debóhra estendeu a mão para que eu lhe desse o livro, mas eu a ignorei e o levei até a jaula de Hugo e esperei que ela abrisse a porta e trouxesse seu escravo. Com uma referência irônica, ela me induziu a entrar.

- Eu não vou entrar aí.
- Tudo bem, - Debóhra bateu a porta com força - ele tem bons olhos. Mostre o livro.

Máira se pôs ao meu lado empolgada enquanto eu desembrulhava a publicação do pano que a protegia. Escolhi uma página aleatória e abri o livro na altura dos olhos de Hugo. 

Seu cativeiro era grande, ocupava boa parte do quarto, e por isso tínhamos uma relativa distancia entre nós. Ele olhou fixo por um tempo, depois baixou os olhos e voltou a se esforçar mais. Frustrado consigo mesmo, ele olhou para Debóhra e disse:

- Desculpe, eu não consigo ler. Está muito longe.
- Eu não vou entrar aí. - repeti.
- Por que você não o traz aqui, irmã? Adoraria ve-lo mais de perto. - Máira ainda tratava tudo com muita naturalidade. Sua irmã, que não estava nenhum pouco feliz em sujar os pés, me fuzilou com os olhos antes de entrar na jaula e trazê-lo para perto.

Passei o livro para as mãos dele e ele quase o deixou cair, por ser pesado. Então pus as minhas mãos sob as dele, afim de dividir o peso, e ele me olhou. Primeiro de relance, e tentou voltar ao livro, mas sem demora seus olhos estavam em mim novamente.

Fixamente, como se fosse eu o objeto a ser examinado, ele me olhava.

Debóhra, estava claramente incomodada com aquilo, e isso me deixou feliz. Ela puxou um dos mamilos do garoto com tudo que podia e perguntou:

- Ela acredita que esse seja...
- O Livro dos Ofícios dos Espíritos. Sua publicação original - ele disse com uma voz tão sofrida quanto certeira. “




sábado, 2 de julho de 2016

Ver041



“O corredor que encontrei ao sair do elevador ela longo, estreito e tinha luzes opacas. Apesar da iluminação ruim não foi complicado encontrar o apartamento 402, todas as outras portas, talvez por padrão do prédio, eram brancas. A porta de Máira era negra.

Não precisei tocar a campainha ou bater na porta, ela se abriu assim que parei de frente a ela. Máira sorria lá dentro, usava a mesma camisola que eu vi na fotografia impressa no jornal mais cedo. Ela me puxou pra dentro com entusiasmo, e estranhou quando eu firmei posição na soleira de sua porta.

- Posso entrar? - eu disse.
- Nossa, vocês são insuportáveis com essa polidez toda. O que acontece se eu disser que você não pode entrar?
- Vamos ter que conversar com a porta aberta então.
- Eu poderia ser cruel e me divertir com isso, mas você tem sorte, estou de bom humor hoje. - ela fez uma referência exagerada e afetada - Você pode entrar sim, alteza, por favor não repare na bagunça.

E sim, havia bagunça.

Talvez por estar vivendo com Lucas há tanto tempo eu tenha me habituado a ambientes herméticos e organizados, sequer me lembro como será meu grau de organização antes disso. Mas acredito que, mesmo na durante o tempo que morei com Marie, que não era exatamente um primor de organização, nosso apartamento estivesse nem perto daquilo. 

Ao entrar, eu não sabia se aquilo era um quarto, uma sala ou uma cozinha. Provavelmente era um misto dos três cômodos. O ambiente era amplo, é verdade, mas parecia pequeno com tanto entulho e má distribuição de móveis. Ela bateu a porta e percebeu meu espanto.

- Eu disse para não reparar, vadia. 
- Eu li que nosso garçom de ontem se jogou da varanda. Estou aqui tentando imaginar como ele passou por aquela mesa de centro pra chegar lá.
- Rá rá rá, muito engraçadinha você. - ela disse se jogando em um sofá que ficava no meio da passagem de um corredor que levava para o interior do apartamento. - Mas não foi só para me e dar lições de decoração que você veio pra cá, ne?
- Não. - caminhei até o sofá e sentei ao seu lado após tirar algumas revistas que estavam empilhadas nele - Eu pensei na conversa que tivemos ontem e notei que não sabia nada sobre o passado do Lucas. Quem ele era antes de se transformar e o que ele fez até se tornar quem é hoje. Resolvi tentar conseguir algumas informações sobre ele, mas não consegui nada. Aí resolvi procurar lá em casa, na nossa biblioteca, alguma coisa que me ajudasse, e encontrei isso.

Mostrei o livro a ela. Máira primeiro não reconheceu, mas quando viu a cruz invertida na página de rosto, vi suas feições mudando da água para o vinho. Suas mãos passaram pelas páginas com velocidade e espanto. Até que ela me perguntou:

- Onde foi que você disse que conseguiu isso mesmo?
- Na biblioteca lá de casa. Pelo estado do livro é bem antigo. Eu acho que é um livro de estudo, mas não consegui entender nada do que está escrito. Não sei se isso tem algo a ver com o Lucas exatamente, mas esse livro me chamou a atenção em meio aos outros e eu resolvi traze-lo para te mostrar. Você consegue ler alguma coisa?
- Consigo. É enoquiano, a língua dos anjos. - ela ainda passava as páginas, como se estivesse à procura de algo específico, e era possível ver figuras das mais diversas intercaladas com grafismos ininteligíveis impressas nas folhas amareladas.

Até que, subitamente, Máira parou. Ela aparentava nervosismo.

- Lembra que eu te contei, no dia que nos conhecemos, sobre a minha mãe?
- Lembro. Vagamente, na verdade. - respondi - Ela lutou e caiu ao lado de Lúcifer, mas usa o rosto de um anjo que matou durante a guerra, não é?
- Isso. Um esqueleto em forma de serpente que, na cabeça usa o rosto de um anjo como máscara. - ela levantou o livro e o pôs a alguns centímetros do meu rosto. - Parece familiar para você?

Na página que ela me mostrava havia a ilustração de uma pilha de corpos humanos, homens e mulheres com expressão de horror, rodeada por uma coluna vertebral de onde saíam incontáveis costelas afiadas como espadas e que tinha em seu fim um rosto de olhos frios. Lívido e belo, emoldurado por cabelos encaracolados.

- Essa é a minha mãe. E este - Máira fechou o livro e o jogou no meu colo - é o Livro dos Ofícios. E o pior, estou quase certa de que essa é a versão original.
- Ok. E eu deveria saber o que isso quer dizer?
- O Livro dos Ofícios foi uma das primeiras armas que eles receberam para usar contra nós. Os sacerdos, quero dizer. Ele já passou por várias mãos ao longo do tempo, e é tão valioso que eles até fizeram algumas poucas cópias para distribuir entre as sedes da Ordem, mas nunca conseguiram reproduzir integralmente a versão original. E eu acho que é essa ai.
- Esse livro não tem nada a ver com o Lucas então, né?
- Não, tem a ver com todos nós. Isso estava na sua casa todo esse tempo?
- Acho que sim. Eu não tinha reparado nele antes, mas agora, dedicada a pesquisar, ele chamou minha atenção. Mas eu não sei se entendi muito bem. Sobre o que trata esse livro, exatamente?
- Quando te falei da criação da Ordem dos Sacerdos, eu expliquei que, no início, achávamos que eles não causariam mais problemas porque eram destreinados e não muito equipados, lembra? Acontece que um deles, não sei dizer o nome do infeliz, foi visitado por um anjo certo dia. E esse anjo lhe deu esse mesmo livro. O Livro dos Ofícios, é uma enciclopédia onde está listado todo e qualquer tipo de infernal, e também todos os rituais e formas de destruição para cada um. Quem tiver esse livro, especialmente sua versão completa, pode ter o conhecimento necessário para exterminar qualquer demônio.

O livro pareceu pesar sobre as minhas coxas.

- E por que você suspeita que esse seja o livro original?
- Não são muitos mortais que conseguem reproduzir enoquiano, mas eu conheci um ou dois que sabiam sim, então logo que vi o idioma já levantei alguma suspeita. Mas tem a minha mãe nesse livro, como eu te mostrei. Desde que caiu, ela nunca mais saiu do Inferno. Lúcifer gosta muito daquela filha da puta e não permite que ela venha para este plano por ter um cargo alto lá. Então, nenhum mortal poderia documentar com tantos detalhes assim a parte dela. Vampiros, Incubus, Bernes…isso se vê por aí, mas esse livro tem coisas como Bael e Vassago. Carolina, eu mesma nunca vi a porra da cara do Vassago. Só um anjo pode ter escrito isso.
- Entendi, então isso é importante. Muito importante. - eu disse - Não pode cair na mão dos padres senão acabou para nós. Por que não o queimamos aqui mesmo, então?

Sorrindo, Máira pegou o livro novamente e, com a mão que o sustentava, formou chamas que o engoliram. Pude sentir a luz e o calor da labareda, era tão intensa que mal era possível ver o livro dentro dela. Depois de alguns segundos, Máira recolheu o fogo e eu me espantei em ver a publicação, ainda intacta, entre os seus dedos.

- É impossível dar fim a essas merdas. Eles usam algum tipo de reza que impede que possamos danificar seus equipamentos místicos. – quanto mais ela pensava naquele livro, mais eu podia sentir seu desconforto crescendo - Eu preciso de um drink.

Ela me entregou o livro, levantou e foi em direção à sua cozinha apertada, que tinha sua entrada bloqueada por uma pilha de roupas usadas. E, sentido o calor da edição intacta agora nas minhas mãos, eu tive um estalo:

- Ele não queimou. Isso prova que ele é a primeira versão do livro, não?
- Na verdade não. A primeira versão não se destruiria com fogo, mas mesmo as cópias que eles fizeram eram protegidas e benzidas. Eu não conseguiria destruir nenhuma delas com esse truque.

Senti que minha amiga se esgueirava do livro o máximo que podia, mas eu estava curiosa e queria saber mais. Pelo menos mais sobre a minha raça.

- Você disse que entende esse tal enoquiano, não é?
- Sou fluente nele e em outras cinco línguas. Por quê? - ela respondeu fechando a geladeira e voltando para o sofá com uma garrafa de espumante. A mesma que tinham dos servido na Vogue. - Lúcifer era um anjo, assim como os que caíram com ele depois da batalha. Tudo no inferno é escrito em enoquiano e existem até alguns dos grandes figurões lá debaixo que fazem questão de só se comunicar nessa língua. Eu acho horrível, mas tive que aprender pra me virar.

O fino e desgastado laço vermelho que servia como marcador de páginas do livro estava, onde eu presumia por causa das figuras, ser o início da sessão que tratava de nós, vampiros. Abri o livro nesta página e mostrei para Máira.

- Me ajuda a traduzir, então? Imagino que aqui esteja escrito “Vampiros”, certo? - apontei para uma sequencia de grafismos desconexos que serviam de título.
- Sim. “Upyres”, na verdade, mas sim. São vocês. - ela respirou fundo - Você quer mesmo fazer isso?
- Quero sim. Já faz mais de cem anos que eu estou nessa vida e ainda não sei porque eu preciso pedir permissão pra entrar na casa dos outros toda vez, por exemplo. Quero saber a extensão dos meus poderes, e saber meus pontos fracos também.
- Ontem eu estava aqui fodendo um cara gostoso até ele querer se matar e hoje vou passar a noite lendo com você. Quando foi que a minha vida começou a ir ladeira abaixo, ein?

Máira, então começou a transcrever o significado daqueles segredos para mim.

Foi por causa desse livro e dela que eu aprendi tudo que sei sobre nós, vampiros. Não eram muitas páginas, seis ou sete contando ilustrações. Aprendi o motivo pelo qual nosso corpo rejeita tudo que não seja sangue, que a minha aversão a alho tem sim justificativa. Descobri que poderia me comunicar com certos animais da noite e ouvi sobre A Primeira. Ouvi e senti orgulho de estar relacionada com ela de alguma maneira.

E descobri nossas fraquezas. A primeira coisa que Lucas me disse foi sobre a luz do Sol, com isso eu já estava familiarizada, entretanto havia muito mais perigos do que eu imaginava. Água-benta, crucifixos e outros artefatos religiosos  podiam nos machucar, mas não chegavam a nos exorcizar ou exterminar. Exceto estacas de madeira benzidas, essas, se fossem estocadas contra meu peito, poderiam causar graves ferimentos e morte. Descobri, também, que deveria evitar fogo a qualquer custo, meu corpo não se recuperaria de ferimentos causados por ele porque aparentemente o calor das chamas era algo purificador. Provar o sangue de uma vítima com o que o livro chamou de “Morte Rubra” seria outra de minhas fraquezas, eu e Máira discutimos um pouco sobre esse tópico, pois o livro não especificava o que seria essa anomalia, e inferimos que isso seria alguma doença que contaminasse o sangue da minha presa e que seria passada para mim ao morde-la. Por fim a prata, e isso explica porque eu tive que me desfazer de todos os meus anéis, brincos e cordões de prata depois da transformação. Não era alergia, como eu suspeitei, mas somos intolerantes a este material por algum motivo que o Livro dos Ofícios também deixava vago.

- Essa vocês compartilham com os Weriuuolf. - Ela disse quando fechou o livro e quando viu minha expressão de interrogação, completou - Nome técnico dos Lobisomens, eles também são vulneráveis à prata.
- Ah, sim...

Eu fui pega de surpresa. Com o tempo acho que peguei confiança na facilidade com que tinha para me satisfazer. Nunca pensei que precisaria tomar cuidado com tantas variáveis, mas a verdade é que foram mais de cem anos tendo sorte ao escolher minhas vítimas.

- Muito bem, e o que vamos fazer agora? - Máira me tirou de meus devaneios perguntando.
- Não estou com muito apetite, mas te acompanho se você quiser ir a algum lugar.
- Você não entendeu. O que vamos fazer agora quanto a isso? - apontou para o livro que agora estava ao meu lado no sofá. - É valioso demais, e imagino que todos os virgenzinhos estejam atrás dele. Você tem algum plano pra ele?

Eu não tinha. Ainda não tinha assimilado bem a importância de ter a versão original do Livro dos Ofícios dos Espíritos em minha posse. Sim, esse era o nome completo do livro, que eu só vim a saber mais tarde naquele dia. Minha ideia era voltar com ele pra casa e bota-lo, discretamente, entre os outros livros da mudança. Mas ao me ouvir dizer isso, Máira quase cuspiu o espumante que bebia direto da garrafa.

- Além de suicida você também é idiota?! Eu vou desenhar para você: ISSO NÃO PODE CAIR EM MÃOS ERRADAS. Ou mãos certas se você preferir. É muito arriscado, Carolina! Tenho muito amor à minha existência para deixar você ser irresponsável desse jeito.
- Se você não me deixa leva-lo de volta pra casa e ele é indestrutível, o que fazemos então? - Eu disse, me contagiando com seu nervosismo. Máira, sentava e levantava nas cadeiras mal posicionadas que se espalhavam pela sala. Batia os pés no chão quando estava sentada e estalava os dedos quando estava andando. Olhava do livro para mim e passava repetidamente as mãos pelos cabelos que, dessa vez ainda mantinham a franja, mas estavam na altura do seu quadril e num uniforme castanho escuro.

Até que parou.

Contrariada, ela sentou na mesma mesa de centro que eu havia notado quando cheguei e com uma careta de desgosto disse:

- Eu já sei o que vamos fazer. Não vai ser agradável, mas acho que precisamos estar certas de que essa é a primeira publicação do livro antes de qualquer coisa. Eu suspeito que seja, e tudo leva a crer que eu tenha razão, mas não tenho gabarito o bastante para dar certeza absoluta.
- E quem poderia?
- Um sacerdo poderia. Pelo menos pra identificar instrumentos bentos eles servem.
- Tá bom. - comentei, irônica. - E é claro que eles ajudariam a gente de bom grado. Máira, a gente nem pode entrar numa igreja. Agora você é que está parecendo maluca. 
- Mas quem disse que eles teriam opção? Acontece que uma das minhas irmãs, - ela respirou fundo agora - e provavelmente a mais insuportável, pedante e arrogante delas, pode nos ajudar com isso. Anteontem você me apresentou a sua “irmã” oriental, acho que hoje é a minha vez de retribuir. Eu vou trocar essa camisola e botar alguma coisa que pelo menos finja que eu sou uma mulher de respeito. – pegou as chaves na pia da cozinha e jogou pra mim – Mas você dirige, eu estou sem saco hoje.

Descemos e o porteiro disse para não nos preocuparmos que tudo ficaria bem, quando passamos por ele a caminho da garagem. Provavelmente ele se referia ao suposto suicídio acontecido mais cedo, mas foi bom ouvir palavras de alguém que não estava pensando que tinha uma arma em potencial na bolsa.

O caminho foi longo, e mais uma vez eu gostei de estar atrás do volante. Quando dirigia, eu podia esvaziar a minha cabeça e finalmente relaxar um pouco. Faz tempo que eu não durmo, e por isso eu posso estar com a memória um pouco comprometida, mas dirigir aquele carro foi para mim como dormir uma boa noite de sono depois de um dia exaustivo.

- Então, qual é o seu problema com ela? Sua irmã. - perguntei afim de fazer Máira falar algo, mas sem realmente me importar.
- Vocês, vampiros, tem uma tendência natural a se fechar em grupos e por isso talvez você não entenda muito. Mas isso não costuma funcionar com a maioria dos demônios. Eu não me dou bem com as minhas irmãs. Com nenhuma delas, mantemos a distância e passamos séculos sem ter contato nenhum. Pega a próxima esquerda.
- E já que vocês são distantes e não se dão bem, por que sua irmã nos ajudaria a descobrir a autenticidade do livro?
- Porque ela me deve uma. Depois daquele sinal pega a saída para a Serra. Sim, vamos sair do Rio. Só espero que ela ainda esteja morando lá - ela disse essa última frase para si mesma.
- Pensei ter ouvido você dizer que ela era arrogante e insuportável.
- Sim, ela era. Algumas décadas atrás, ela era a mais atraente de todas nós. Minha mãe nos fez com ligeiras diferenças, mas parecia que ela tinha caprichado na Debóhra,. Ela era mais inteligente, mais bonita e mais poderosa que todas nós. Sério ela era insuportável.
- Mas vocês não podem moldar a forma que usam para se mostrar para os humanos? - enquanto eu falava um gato preto de olhos brilhantes cruzou a estrada com um rompante - Por exemplo, você sempre muda os cabelos, por que não poderia mudar suas formas e ficar mais parecida com ela então, se isso incomodava tanto?
- Se você abrir o livro no capítulo que trata sobre eu e minhas irmãs, vai ver que chamamos de segunda pele essa maquiagem que usamos para transitar livremente nesse plano. Acontece que a segunda pele não toma a forma que eu quiser assim, arbitrariamente. Comprimento dos cabelos, cor dos olhos, formato das unhas eu consigo variar, mas a segunda pele se molda ao meu corpo como ele é. Ela tem meus exatos volumes, fora os chifres e o rabo, claro. Debóhra era gostosa e atraente por ser gostosa e atraente, ponto. Nenhuma de nós conseguia chegar lá e isso causava muitas discussões e conflitos. As vezes eu suspeito que Triskelle a fez assim de propósito, aquela cobra adora ver o circo pegando fogo. E a Debóhra era uma filha da puta também, ela sabia disso e sabia que incomodava a gente, ainda assim esfregava na nossa cara. - e com uma voz afetada ela fez uma caricatura da irmã - ‘Ai, eu nunca fui exorcizada. Não preciso fugir ou me preocupar em limpar minhas pistas porque nunca suspeitam de mim. Deve ser muito chato ter que se preocupar com tudo isso.'
- E imagino que você tenha saído no tapa com ela algumas vezes. - falei ainda rindo da sua imitação.
- Muitas, mas aí é que está, a vadia ainda era forte como um touro. Eu saía por baixo todas as vezes e em qualquer aspecto. Eu e qualquer uma que tentasse. Bom, foi assim até que ela se descuidou. - um sorriso sádico em seus lábios - E toda a arrogância foi por água abaixo. Acontece que algumas das minhas outras irmãs, com raiva das atitudes babacas dela por séculos, prepararam uma armadilha que ela caiu como uma criancinha ingênua. Você sabe que nós nos alimentamos dos desejos impuros dos homens, certo?
- Algo que é bem mais fácil de conseguir do que sangue. - pontuei.
- Talvez. Mas para Debóhra essa facilidade não deu bons resultados. Outra de minhas irmãs tinha um plano, ela tentou e torturou tanto um mortal que o levou a loucura. Nessa condição, ele não respondia mais por si e fazia tudo que ela queria. Isso não é algo incomum isso acontecer, eu mesma tenho vários escravos que visito pra me alimentar quando quero. Os homens ficam parecendo nossos cachorrinhos e fazem tudo o que pedimos sem o mínimo questionamento. Ela poderia ter pedido a ele um olho, um braço ou qualquer outra coisa que ele daria, só que ela pediu que ele servisse de isca. Eu não participei desse plano, estava no plano inferior na época. Mas de lá pude ver as minhas irmãs arquitetando tudo. As instruções do mortal eram bem simples, começavam dizendo que ele deveria estar no mesmo bar que Debóhra estaria naquela noite. Ela não suspeitou de nada e, cheia de si, não demorou para atacar aquele alvo fácil. Em pouco tempo estava no carro dele, no estacionamento, se alimentando dele. O mortal tinha mais uma instrução: quando ela mostrasse a sua verdadeira forma, ele deveria tirar a tesoura que tinha escondida dos bolsos e cortar a própria pele, o máximo de vezes que conseguisse. São breves segundos que ficamos realmente vulneráveis a um golpe desses, você viu quando aconteceu comigo lá naquele hotel. É rápido, mas ficamos sem defesa durante o processo de transformação. Obediente, o escravo fez o que lhe foi ordenado. - Máira simulou o movimento de cortes com as mãos - E quando Debóhra estava enfraquecida demais para qualquer reação, ele esfregou em seu pescoço todo o sangue que conseguiu antes que a hemorragia lhe tirasse a consciência. Entenda, seu vir sangue, meus olhos passam a arder e lacrimejar, o cheiro me deixa com náuseas e dor de cabeça…mas é o contato direto com a pele o pior. Eu nunca passei por isso, mas sei de relatos bem pesados, principalmente em embate com os padres que usam o próprio sangue contra nós. Em nossa pele, ele arde e corrói como ácido, nossa carne ferve e até os ossos podem se desfazer em alguns poucos segundos de contato. Ela foi encontrada por algum outro demônio, acho que um jinn ou um kappa que estava fugindo enquanto era perseguido por sacerdos. Ferido, ele não conseguiu fazer muita coisa para ajuda-la e acabou emboscado pelos padres. Os dois foram exorcizados e Triskelle mandou que eu recebesse Debóhra nos portões. Eu não gostava mais dela do que minhas irmãs que montaram a armadilha, só que era menos insuportável cruzar meio Inferno para levar minha irmã ferida pra casa do que contrariar a minha mãe. Ela não é conhecida por ter muita misericórdia.
- Ela estava viva? - não desviei os olhos da estrada um só momento enquanto ela contava a história, mas estava totalmente absorta nela.
- Estava, eu disse que a puta era forte. Quando a encontrei, ela estava desacordada, mas antes de atravessarmos o Aqueronte já tinha acordado. Vaidosa, me perguntou como ela estava e eu disse a verdade. Ela estava horrível. Deformada no rosto que antes fora bonito de um jeito que os olhos estavam fundos demais e as bochechas e o maxilar muito inchadas e protuberantes. O acabelo crescia em tufos secos e esporádicos e os lábios estavam com bolhas purulentas. Mas o pior era o seu pescoço, ou melhor o que havia sido o seu pescoço. Foi lá que o enviado das minhas irmãs tinha concentrado o sangue no ataque e desde os ombros até a base do queixo tudo ali era um amontoado de tendões defeituosos, cartilagens corroídas e ossos. Mais de uma vez eu pensei que o peso da sua cabeça iria partir a espinha e tornar tudo ainda pior, mas isso não aconteceu. Quando chegamos no castelo de Triskelle, ela ordenou que eu deixasse Debóhra em sua cripta e saísse. Eu nunca me senti à vontade no castelo da minha mãe e essa era a deixa que eu precisava pra sair de lá. Continuei minha busca por portais para voltar para cá e eventualmente achei um.  Triskelle conseguiu permissão para criar uma classe de demônios para ela depois da guerra, mas somos um número específico, ela não poderia destruir e criar assim, segundo sua vontade. Lembro de ela ter pedido para Abaddon permissão para criar mais de nós um tempo atrás e ele vetou. Ah, desculpa, Abaddon é...
- Outro nome pra Lúcifer, - respondi - entendi pelo contexto.
- Isso, você está pegando o jeito. Então, não acho que ela tenha feito o que fez para trazer Debóhra de volta por ser boazinha ou mesmo por ter alguma empatia por ela, mas não é vantajoso para Triskelle que ela perca suas servas assim. Pega a direita aqui, vamos passar pelos portões de Friburgo, e depois já não falta muito.
- Você encontrou com essa Debóhra depois de tudo isso? - perguntei enquanto seguia suas orientações.
- Encontrei, alguns meses atrás, na verdade. Não a reconheci, foi ela quem veio falar comigo. Sua segunda pele agora se molda em cima do seu corpo defeituoso, o que torna muito difícil para ela ter algum sucesso com as investidas para se alimentar. Mas ela foi esperta, sua aparência pode ter sido comprometida, mas não a cabeça, sabe qual é a única coisa que nos sacia mais que a consumir os desejos luxuosos de um mortal?
- O que?
- Consumir os desejos de um padre. São muito mais nutritivos e nos permitem ficar satisfeitas por muito mais tempo. Debóhra me contou que mantêm um sacerdo como seu escravo sexual no porão de casa. E é assim que tem se mantido ultimamente. Você consegue imaginar? Ela corrompeu um padre!
- É…acho que consigo imaginar sim. - eu ri enquanto deixava que a ficha caísse para ela.
- Você é insuportável, Carolina.
- Não é culpa minha se os rapazes não conseguem dizer não. Mas falando sério agora, o quão estragada ela ficou depois daquilo?
- Você vai ter a oportunidade de perguntar a ela pessoalmente. Encosta aqui, nós chegamos."