“O cedro do interior do meu caixão é escuro, mas o escuro sempre me foi confortável. A luz me incomodou ao abrir a porta do caixão e levantar, mas minha perna já não mancava. Abri as cortinas pesadas do quarto e as gotículas na janela me contaram que havia chovido. Fazia uma rara noite fria no Rio de Janeiro e eu preparei um banho quente para que a começasse relaxada.
Imersa em espuma, tive
tempo para refletir sobre o que quase havia acontecido na madrugada anterior,
em como Lucas tratara Beatriz e eu. Notei que, inconscientemente, eu achava
estar ligada a ele eterna e exclusivamente e que era isso que ele me fazia
acreditar. Entretanto, agora eu passava a enxergar as coisas de outro modo, meu
encontro com Máira foi muito elucidante. Ela parecia estar se virando muito bem
sozinha, e há muito mais tempo que eu.
Decidi que não mais
suportaria as imposições sem sentido e idiossincrasias de Lucas. É verdade que
seu conhecimento e experiência com casos da Ordem poderia ser algo decisivo vez
ou outra, mas pondo tudo na balança, achei que não valia à pena. Pela primeira
vez eu pensei em abandonar o meu clã e acho que o teria feito naquele exato
momento se estivesse sozinha. Mas havia Beatriz, e eu me preocupava com ela.
Apesar de já ter mostrado fibra algumas vezes nos poucos momentos que tivemos
juntas, eu ainda temia pelo seu futuro e não a deixaria sozinha com Lucas de
maneira alguma.
Eu conversaria com
Máira essa noite sobre isso, ela já estava neste plano há muito tempo e talvez
tivesse conhecido alguém da minha raça que se desgarrou de seu clã
também.
Perdida em meus
pensamentos, não o quanto havia demorado no banho até perceber os espelhos e
vidros do banheiro nublados, assim como meus pensamentos. Depois de me secar,
fui até o quarto e passei algum tempo também escolhendo o que vestir. Sempre
gostei de me vestir para o frio, me lembrava os tempos de Paris, escolhi um
casaco de manga longa que ia até os meus joelhos, posto por cima de um vestido
vermelho justo, meia-calça e um par de botas de couro.
Ao abrir a porta da
sala, encontrei Beatriz encarando em silêncio a cadeira sobre a qual tínhamos
dedicado nossos esforços na madrugada anterior para apagar qualquer vestígio de
massa cinzenta ou ossos que ali restassem. Sentei ao seu lado no sofá maior e
ficamos assim por alguns minutos. Como quem acordasse de um transe, ela disse:
- Ele saiu. Assim que
o sol se pôs, falou que ia procurar outra casa para nós em algum canto mais
reservado da cidade ou talvez algo no interior. Comentou que tem uma cidade
imperial no alto da Serra e disse que talvez fosse até lá. - ainda contemplando
a cadeira de madeira escura e estofado vermelho ela seguiu - Eu acho cafona.
- É, Lucas tem o gosto
um tanto quanto antiquado mesmo. Acho que é reminiscência da época que foi
transformado. Você passa a acostumar depois de um tempo. - dei de ombros.
- Posso te fazer uma
pergunta?
- Sim, eu sou ruiva
natural. - brinquei.
- Não, piadista. É
sobre ele. Eu…eu realmente fiquei assustada ontem à noite. E fiquei me
perguntando a madrugada toda em meu caixão, como era possível vocês dois terem
se conhecido. Você e ele, não é preciso muito tempo para perceber, são
incompatíveis.
- Ah, Bia…isso já foi
há muito tempo. Lucas me transformou quando eu estava em Paris uma vida atrás,
me levou para o seu apartamento lá e me deu os passos básicos que eu devia
seguir à partir daquele momento. Eu não tinha mais ninguém - disse num suspiro
- e me sentia muito perdida, principalmente no início. Acho que não senti o
tempo passar e acabei ficando por aqui. Como eu disse, acho que você passa a
acostumar depois de um tempo.
- E sobre aquilo que
você disse ontem, de haverem outras. Tem mais alguém morando aqui?
- Não, mas já houve
mais uma companheira conosco. Viveu algumas décadas conosco na França, mas
acabou sofrendo um acidente fatal.
- Mas você conhece
outros de nós então, certo? Quer dizer, existem outros a quem possamos recorrer
caso as coisas fujam do controle…como fugiram ontem?
- Sim e não. - percebi
que eu já estava na posição de dar conselhos sobre a vida de vampiro - Existem
outros de nós sim, tive contato com um clã grande liderado por uma mulher assim
que chegamos ao Rio de Janeiro e enquanto morávamos na Europa, conheci alguns
outros. Mais velhos ou mais novos, nossa raça tende a se unir em grupos para
proteção mútua, e nesses grupos todos seguem ao líder. Por isso não, não
existem ninguém a quem possamos recorrer sobre questões internas da nossa
família. Lucas é o líder do clã e, infelizmente, devemos segui-lo enquanto
fizermos parte disso. Mas não se preocupe, eu já estou pensando numa solução
para isso. Agora vamos, vá se arrumar que Máira logo passará aqui.
Beatriz voltou três
quartos de hora depois, usava um vestido branco de cortes orientais e detalhes
dourados. Seus olhos estavam maquiados e seu cabelo preso num coque justo
firmado por duas agulhas longas. Ela já trazia consigo a palidez característica
de nós e isso só realçava o negro profundo dos seus olhos e cabelo.
Máira chegou antes do
retorno de Lucas e eu agradeci porque odiaria vê-lo naquela noite. Ela buzinou,
mas já estávamos ao pé da escada mesmo antes dela parar o carro. Dessa vez, um
conversível esporte alongado e chamativo. Combinava com ela.
- Ei, ruivinha! Será
que você e sua amiga gueixa não querem dar uma volta no meu conversível hoje? -
me chamou com uma piscadela
Abri a porta do carona
enquanto Beatriz se sentava no banco detrás. Máira usava uma blusa de mangas
longas e gola alta que vestia muito bem no seu corpo. Na cabeça usava um lenço
envolvendo seus cabelos e preso na base do seu pescoço, algo que estava em moda
na época. Depois que eu me sentei ao seu lado, ela virou todo o corpo para mim,
sorriu e desamarrou o lenço.
Seu cabelo estava
drasticamente diferente da noite anterior. Volume, cor, tamanho, tudo. Agora
sua raiz começava tão escura quanto o cabelo de Beatriz e, nas pontas, passava
a ter um bonito tom aloirado. Uma franja reta se apresentava sobre os olhos
também, e depois de soltas, duas tranças pendiam sobre os seus ombros.
- E aí, gostou?
- Como você fez isso?
- puxei uma das tranças para me certificar que não era uma peruca muito bem
produzida - Seu cabelo estava na altura do queixo há menos de dez horas atrás.
- Uma das vantagens de
poder usar uma casca pra esconder a minha forma verdadeira é que eu posso
molda-la como eu quiser. - disse convencida - Sempre que eu canso de um cabelo,
da cor dos olhos ou algo assim, posso trocar somo se fosse uma roupa no meu
armário. Fora que é ótimo para não levantar suspeitas, vocês deviam tentar
qualquer dia desses. E você, Flor do Oriente, o que achou?
- É, ficou legal, eu
acho.
- Desculpa, não
apresentei vocês. Máira, essa é Beatriz, minha irmã de clã. Bia, essa é Máira.
Máira olhou para
Beatriz e depois para mim, voltou-se para frente e deu a partida no carro.
- É melhor vocês
pensarem em outra desculpa, ninguém vai acreditar nesse papinho de irmãs. Agora
vamos, vou levar vocês para um lugar que aposto que vocês não conhecem.
Ela estava meio certa.
Eu realmente nunca tinha estado na Vogue, apesar de ter ido algumas vezes com
Máira lá depois daquele dia, mas Bia já tinha ido algumas vezes lá com um
ex-namorado. Contrastava muito com o ambiente de segunda que Máira costumava ir
para arrumar suas vítimas. A Vogue atraía a alta sociedade carioca na época e
foi frequentada por muitos nomes importantes entre os anos 40 e 50. Logo que
chegamos, havia um senhor de smoking tocando com talento um pianoforte na
antessala enquanto uma cantora estava ao microfone com um francês impecável. Uma
pista de dança com piso diferente e alguns casais colados um ao outro separava
o bar no fundo do salão das mesas que se seguiam arrumadas em quatro fileiras.
Máira foi na frente,
abrindo caminho entre os engravatados e as mulheres em vestidos brilhantes até
que decidiu uma mesa para ficarmos. No final do salão, estávamos perto dos
primeiros casais da noite que se aventuravam a dançar juntos alguma música
romântica que tocava. Eu tinha acabado de sentar e colocar meu casaco nas
costas da cadeira quando um garçom veio nos atender:
- Boa noite,
senhoritas. Gostaria de dar-lhes boas vindas à Vogue e me apresentar. Meu nome
é Lucas e eu vou atender a sua mesa essa noite. As senhoritas já estão prontas
para pedir? Eu recomendaria o espumante, recebemos umas garrafas dos Estados
Unidos no início do mês e...
- Então Lucas, será
que você consegue trazer uma garrafa desse espumante americano especial num
baldinho com algum gelo para nós? - Máira falava sussurrando e debruçada na
mesa evidenciando seus atributos.
- Bom, nós temos por
política aqui na Vogue servir apenas taças ou copos das bebidas no bar…mas
acredito que talvez, se eu falar com o meu gerente, quem sabe? - o homem
tentava com todas as forças manter a polidez.
- Ah, - Máira tinha
levantado e ajeitava a gravata borboleta do garçom enquanto falava - tenho
certeza que você consegue dar um jeitinho.
- Sim, sim. Claro, eu
vou falar com ele sim. A garrava e três copos, certo?
- Não - apontou para
nós duas sem tirar os olhos do garçom - essas duas aqui estão grávidas,
acredita? Uma taça só, você vai ser vir só a mim hoje, Lucas.
Depois que se sentou,
virou com um sorriso de orelha a orelha para nós, orgulhosa de si e disse:
- E assim, meninas, é
como se ganha uma garrafa de espumante.
- Grávidas? Sério,
parecemos grávidas pra você? – perguntei fingindo indignação.
- É melhor eu ficar
calada, porque a verdade pode doer, Carolina. Nossa amizade ainda é nova e eu
não gostaria que ela fosse abalada com coisas pesadas. - depois de fazer piada,
ela olhou para Beatriz que fuzilava o garçom com os olhos - Caramba, você não
gostou mesmo do garoto, hein? O que foi, você é daquelas orientais puristas que
“não se mistura”?
- Não, não é nada
disso. É que ele me lembra alguém que eu não gosto. - Bia respondeu, e eu já
começava a ver um caráter reservado nela.
- É o líder do nosso
clã, tem o mesmo nome do garçom. Lucas. E eu e Beatriz tivemos uma leve
discussão com ele ontem depois que eu cheguei em casa.
A alegria foi sugada
do rosto de Máira como se fosse um líquido escoando por um ralo. Seu sorriso
sumiu, seus olhos ficaram preocupados e sua pele chegou a ficar quase tão
pálida quanto a nossa. Quando voltou a falar, estava tão séria que eu mal
reconheci o tom da sua voz.
- Lucas? Lucas Malta é
o líder do clã de vocês?
- Nossa, que chute!
Como você soube? Lucas é um nome tão comum… - Beatriz transformou em palavras a
minha dúvida.
- O nome pode ser, mas
o dono dele não é. Lucas Malta é perigoso. Bastante perigoso. Já ouvi de
grandões lá embaixo de que ele é proibido até mesmo de entrar em alguns dos
círculos do Inferno por estragos que fez por lá. Da última vez que soube dele,
tinha sido ferido por um dos coroinhas e fugido pra Europa. Achei que estava
morto.
- Então você conhece
Lucas? Que mundo pequeno.
- Não, Carolina. O
nosso mundo é grande pra cacete, mas tem algumas figuras que todos pelo menos
já ouviram falar. É meio caso de segurança ter esse tipo de conhecimento. -
suspirou um pouco - Não, eu não o conheço, apesar de já ter estado no mesmo
recinto que ele em duas ou três ocasiões durante os séculos. Evitei contato
todas elas. Qual de vocês duas é mais velha?
Ficamos sem saber o
que dizer, nunca tínhamos perguntado as idades que tínhamos no ato da
transformação uma para outra. Máira, impaciente seguiu.
- Quem ganhou as
presas primeiro?
- Eu. - respondi
- Ok, e além de vocês
duas, tem mais gente no clã?
- A Carolina disse que
tinha mais uma menina, mas ela acabou sofrendo um acidente.
- Não, não foi
acidente Carolina. E você sabe disso.
Fui pega de surpresa,
e me senti até um pouco envergonhada por ter atenuado esse fato antes, mas a
minha intenção era só deixar Beatriz mais tranquila quando disse aquilo.
- Do que você está
falando? - Beatriz indagou.
- É verdade, Bia. Eu
não fui totalmente sincera antes, desculpe. Essa companheira que morava
conosco, Manoela, causou uma leve confusão lá em Paris acabou nos expondo. -
lembrar de tudo aquilo me incomodava profundamente - Viemos para o Brasil para
tirar a Ordem do nosso encalço. Mas antes disso Lucas a assassinou.
Beatriz recuou em sua
cadeira até sua nuca tocar o encosto adornado e chique. Havia um misto de
insegurança com desconfiança em seu olhar, mas eu não via medo ali.
- Como? Como ele a
assassinou?
- Bia...
- Carolina, nós
estamos passando perigo morando com esse homem. Isso não está certo. Temos que
nos precaver!
- Ele quebrou o
pescoço dela. - disse em voz baixa. - A fez acreditar que estava tudo bem, que
a tinha perdoado e sem cerimônia virou seu rosto para a parede.
Foi Lucas, o garçom,
quem quebrou o silêncio trazendo a garrafa de Charles Heidsieck 38 na num balde
prateado e uma única taça. Esbocei um sorriso quando reconheci o rótulo e
lembrei de quando tinha conhecido o próprio Charles anos atrás e que em sua loucura
em me agradar, ele quase batizara sua nova produção de espumantes como
“LeBion”. Sorte que o convenci do contrário, ia ser incômodo explicar essa
coincidência agora. Nosso garçom, satisfeito consigo mesmo, comentou:
- Senhoritas,
desculpem a demora mas estava tentando convencer nosso gerente a conceder essa
cortesia a vocês. Espero que seja um rótulo do seu agrado. - virou a garrafa
para Máira.
- Sim, sim. Pode
servir, amigo. - ela disse com certa impaciência.
Lucas serviu o
espumante e se retirou. Bebendo de um gole, Máira ponderou:
- Eu concordo com ela,
Carolina. Abandonem esse clã o quanto antes. Vocês foram espertos saindo de
Paris, parece que a Ordem ainda deve estar procurando vocês por lá, mas até
quando?
- De novo essa
“Ordem”. O que é isso? - Beatriz indagou.
- Existem grupos em
cada cidade do mundo, financiados e armados pelo Vaticano para caçar e
exorcizar qualquer infernal que esteja aqui neste plano. - expliquei de forma
sucinta. Máira, entretanto, tinha mais a dizer.
- Tem sido travada uma
disputa entre o plano superior e o Inferno pelas almas dos mortais desde o
início dos tempos. Acontece que Yahweh deu para os seus preferidinhos o dom do
livre-arbítrio, o que significa que eles fazem suas próprias escolhas. Samael
foi traiçoeiro e rasgou pontos específicos onde o tecido que divide este plano
e o plano inferior era mais frágil, criando portais e deixando assim que alguns
demônios passassem de lá para cá.
- Samael? - Beatriz
tinha a curiosidade dos inteligentes.
- Eu nunca sei por
qual nome as pessoas o conhecem. Diabo, Lúcifer, O Adversário… você escolhe.
Com as passagens abertas, depois de algum tempo, alguns infernais passaram a
ser criados aqui mesmo, vocês duas são um exemplo. Demorou um tempo até que o
pessoal lá de cima percebesse que a nossa presença aqui desequilibrava bastante
as coisas, digamos que os mortais tendem a gostar muito mais do nosso jeito de
ver o mundo do que do dele. Foi então que resolveu criar uma categoria nova de
primogênitos chamada Favrashi, nossa amiga Catharina é um deles, Carolina.
- Esses tais Favrashi
tentariam fazer com que o máximo de mortais tivesse atitudes boas, altruístas e
nobres para que fossem salvos no fim de suas vidas, certo?
- Errado, parece que
mesmo em desvantagem Yahweh preza muito pelo dom da escolha que deu aos
humanos. Ele selecionou alguns mortais por todo o mundo, não sei dizer quais
foram os critérios de escolha, mas diria que foram “os mais puros” ou “os mais
dignos” blá, blá, blá aquele tipo de coisa chata. A missão dos anjos enviados a
este plano era proteger e orientar cada um destes mortais escolhidos que
aceitasse atender ao chamado. A esse grupo, foi dado o nome de “Sacerdos” e
eles não demoraram para seguir em sua missão. Quando nós, do plano inferior,
soubemos disso até achamos graça pensando que eles não passariam de falastrões,
pregadores de praça, e que ninguém iria dar ouvidos à eles. Mas o plano era
outro, Yahweh não ia proteger as almas de seus preciosos mortais mostrando-lhes
o caminho a seguir com palavras de conforto ou algo assim, seus agentes
escolhidos não buscariam convencer ninguém das maravilhas do plano superior, a
missão deles era caçar cada demônio que encontrasse e fechar o máximo de
portais que encontrassem, afim de evitar que mais de nós viéssemos para cá e
livrando os mortais que aqui estão de nossas “tentações”. Os Favrashi ensinaram
as primeiras gerações, que no começo ainda não eram páreo para a maioria de nós
mas foram melhorando e aprendendo mais a cada retorno. A “Ordem dos Sacerdos” é
o nome que esses grupos têm.
Apesar de já conhecer
a história, era bom ouvir Máira falando, ela tinha a visão de quem realmente
vivera aquilo tudo e me ajudava a esclarecer algumas dúvidas que apareciam.
- Você já foi
emboscada por eles alguma vez? - interrompi o monólogo de Máira
- Já me pegaram
quatro vezes, e está cada mais difícil sair do Inferno com o tempo, é por isso
que Lucas deve ser tão paranoico com discrição. É melhor deixar que eles não
nos vejam. - enquanto ela mesma se servia de uma segunda taça, Beatriz sofria
para assimilar toda aquela nova informação.
- Então, basicamente
existem grupos de malucos religiosos aí fora nos caçando e nós estamos aqui,
bebendo e dançando como se fosse algo super seguro e normal?
- Calma, Bia. Não é
tão perigoso assim. - eu a acalmei - E o melhor jeito de não chamar atenção é
se misturando. Tive uma ideia, você ainda não conseguiu uma presa sozinha desde
que eu te transformei. O que você achou do rapaz tímido sentado sozinho na
última mesa da esquerda? Acho que ele gostou de você.
Apesar de ela estar de
costas para ele, eu tinha uma visão melhor. Pude ver o homem de corte e postura
militar que tomava cerveja e não tirava os olhos de Beatriz desde que chegou.
Ao menciona-lo, ela se virou e deu um leve aceno para ele.
- Confesso que seria
bom descansar um pouco a cabeça disso tudo, e esse seu espumante me deu sede. -
ela disse
- Então, senta lá com
ele ou o convide pra dançar. Você não vai ter muitos problemas pelo que eu
estou vendo daqui.
Ela o fez. Era bom ver
Beatriz animada, odiava pensar no estado de nervos que ela poderia ficar se não
tirasse o foco do nosso problema. Ficamos só Máira e eu na mesa e ela mais uma
vez enchia sua taça.
- Quero te perguntar
uma coisa. Quando você disse que transformou a Beatriz, foi literal? Você
realmente fez isso?
- Sim, fiz. Na
verdade, Bia foi a primeira pessoa que eu mordi e transformei. Lucas a trouxe
para casa como um exercício para mim, mas consegui fazer na primeira vez.
- É, talvez a garota
esteja certa em fugir mesmo. - ela baixou o tom de voz, sabendo de nossa
audição aguçada. - Você já conheceu algum Ghoul?
- Acredito que não.
- Imaginei, não é bem
o tipo de demônio que frequenta os mesmo ambientes que vocês. Bom, Ghouls são
um tipo de infernal que costuma viver em cemitérios comendo carne em
decomposição. Não são muito poderosos, o máximo de perigo que levam aos mortais
são as histórias de barulhos ou aparições em cemitérios que você acaba
escutando por aí. A própria Ordem não liga muito para eles por não considera-los
muito prioritários. Acontece que, na terceira vez que os soldadinhos de Deus me
mandaram de volta pro Inferno, junto comigo estava um Ghoul. Você nunca foi
exorcizada, e espero que nunca seja, mas é um longo caminho até os portões do
Inferno e é bom ter alguém para conversar enquanto não chega.
Era estranho ver Máira
tão séria assim.
- Enfim, esse cara,
Ptyr era o nome dele, me contou que tinham armado para ele. Enquanto
caminhávamos pelo deserto vermelho que leva até o porto onde o Barqueiro nos
pega, parou algumas vezes para detalhar o que dizia ter acontecido a ele. O
pobre Ptyr não tinha muita sorte, estava no lugar errado na hora errada, mas
conseguiu ouvir algo importante. Segundo ele, o vampiro conhecido como Lucas
Malta estaria arquitetando um plano com um aliado grande para não só se tornar
muito mais poderoso, mas também para transformar este a Terra numa extensão de
seus domínios onde somente ele, e aqueles transformados por ele comandaram. Não
conheço Lucas, mas ele parece ser bastante narcisista, até mesmo para os meus
padrões. Mesmo outros vampiros, aqueles que ele não tivesse posto suas nobres
presas seriam escravizados se o plano dele desse certo.
- Que plano era esse?
- Ptyr não tinha
detalhes, perceberam que ele estava ouvindo e logo trataram de joga-lo na sede
da Ordem mais próxima para que fosse exorcizado. Mas me disse que teve tempo de
ver o parceiro de Lucas nesse plano. Segundo ele, parecia ser um anjo.
Ela olhou para
Beatriz.
- Isso já tem algumas
décadas. Talvez o plano tenha dado errado, ou ele tenha desistido. Mas a
verdade é que Lucas Malta tem a fama de não respeitar nem mesmo os vampiros que
ele transforma. Beatriz está certa em querer se afastar dele o quanto antes.
- O que aconteceu com
o Ghoul?
- Chegamos na outra
ponta do Rio da Morte e minha mãe estava esperando, assim como Mormo, o Senhor
dos Ghouls. Nos despedimos e eu nunca mais o vi.
- Tudo bem, mas ele
deve ter dado essa informação para mais alguém. Será que ainda podemos
encontra-lo? Ou encontrar alguém para quem ele tenha contado isso com mais
detalhes?
- Acho difícil
acharmos ele outra vez, e quase impossível algum outro demônio ter tido a
paciência de aguentar ele contando essa história. Eu mesma só tive porque
tínhamos um caminho grande a seguir, mas cada vez que ele parava para contar
algo eu ficava puta.
- Ele precisava parar
para falar?
Máira olhou para mim
com malícia enquanto enchia sua sexta taça com o espumante que nosso garçom
havia trazido.
- Eu não disse que ele
falava, Carolina. Ptyr me contou toda história rascunhando coisas na terra.
Haviam arrancado a sua língua.”