Foi em uma noite na qual eu tinha saído com Vinicius para
atender um chamado solicitado para conter um Demballa que havia sido invocado
num ritual feito por jovens médiuns de umbanda na zona oeste da cidade. Cheguei
ao nosso esconderijo na Lapa que hoje me serve de apartamento e Carol já estava
me esperando.
Como sempre, meu impulso era pular em cima dela assim que a
vi. Vez ou outra, eu a tomava pela cintura e trazia pra mim sem ao menos
lembrar de tirar a batina, o que causava alguns ferimentos à ela e me deixava
envergonhado depois. Mas em geral, Carol não se importava.
Naquela noite, eu estava esperando exatamente isso, chegar e
trair os juramentos da minha ordem em todos os cômodos da casa com ela, mas ela
tinha este diário nas mãos. Já comentei que a leitura era complicada em alguns
momentos, mas ela insistiu que eu o lesse todo e confesso que agora eu já estava
tão entretido e curioso para saber mais do seu passado, que sentir as páginas
acabando nos meus dedos me deixou um pouco frustrado.
Passava das três da manhã, e eu sabia que logo Carol
precisaria voltar para casa, mesmo assim segui a leitura:
“Se eu não soubesse
que sonhar era impossível para nós, acreditaria que os pensamentos nos quais eu
mergulhava naquele momento eram devaneios de uma vida toda. A dor física estava
num segundo plano, mas eu conseguia senti-la aumentando. Meus pulmões estavam
sendo tocados pelo fogo que me consumia de dentro para fora e respirar se
tornava cada vez mais complicado e doloroso. A mão invisível que se fechava em
meu estômago não dava trégua e até mesmo meus olhos cerrados por trás das
pálpebras doíam.
Mas eu já não estava
mais lá. Eu estava em Paris, passeando pelos Jardins de Luxemburgo na primavera
de mãos dadas com Carlos, ou sentada na beira do Sena com garradas de vinho
enterradas na neve do inverno enquanto testava a validade dos seus votos numa
noite estrelada.
Eu estava com ele e o
mal estar físico não me incomodava.
Eu não sei quanto
tempo fiquei nesse estado de envenenamento, mas me pareceu muito pouco. Máira
chegou trazendo uma mulher baixinha gorducha de meia idade e me contou que
precisou puxar meus cabelos para que eu despertasse, pois seus chamados eram em
vão.
- Carolina? Carolina,
você está me entendendo? Está acordada? - eu assenti com a cabeça ainda meio
grogue - Ótimo. Então, foi o que eu consegui encontrar. Está tarde pra caralho
e não tem muitas opções de mortais na rua. Essa mulher aqui estava saindo de um
taxi quando eu a parei antes de entrar em casa. Tive que desmaia-la para
agilizar o processo.
Meu olhar foi da a
mulher rosada sentada na cadeira à minha frente para a expressão despreocupada
de Máira de pé logo atrás dela. O segundo plano era a prataria da Colombo
exposta numa grande estante de vidro atrás do balcão, atravessada pela fria luz
da lua. Contemplei a cena por alguns momentos, até que percebi as bordas do
quadro escurecendo. A cena aos meus olhos ia ficando cada vez menor, a
escuridão ia tomando conta de tudo até eu ouvir um grito e sentir algo quente e
pulsante em meus lábios.
Pouco a pouco, eu fui
recobrando os sentidos. Minha cabeça funcionava melhor e passei a ter consciência
de estar bebendo do pulso da mulher trazida por Máira. Meus olhos se abriram
sem dor e vi que a toalha que cobria a mesa, bem como o meu vestido estavam
sujos de vermelho. Notei também uma faca de serra sobre a mesa, suja com o
mesmo sangue que eu bebia.
A ausência de Máira
foi a terceira coisa a ser notada.
Lembrei que o sol já
estava muito próximo de nascer e que Beatriz deveria estar com a garganta seca
em casa me esperando. Só tomei da minha presa o que precisava para recobrar
minimamente minhas faculdades físicas. Quando percebi que já podia ficar de pé,
rasquei um pedaço da toalha que cobria a mesa e fiz um torniquete
improvisado no pulso exposto da senhora que jazia desfalecida na cadeira.
Eu precisava ir
embora, já não havia mais muito tempo e eu não estava certa de que conseguiria
usar a minha velocidade total para chegar em casa à tempo. Precisava encontrar
Máira. Meu relógio já se aproximava das cinco da manhã, e toda a confeitaria
agora já estava muito mais dourada do que quando eu tinha chegado.
Mesmo ainda estando
muito longe da plenitude das minhas capacidades psíquicas e com um bate-estaca
dentro da cabeça não foi difícil sentir a presença de Máira. Ela nunca foi
discreta. Apesar de perto, ela estava muito fraca e quando notei isso tentei
acelerar pelo corredor de mesas até a escada em espiral. Quase fui ao chão
depois de alguns passos, não fosse o balcão. Achei que seria mais inteligente
se eu fosse um passo de cada vez até ela. Me parecia que ela estava no
segundo andar do estabelecimento, que eu ainda não havia conhecido. Chamei seu
nome algumas vezes, desconfiada dos meus sentidos mas mão tive resposta. Eu não
estive muito tempo desacordada, mas temia que algo estivesse acontecido neste
ínterim.
O segundo andar da
Confeitaria Colombo não difere muito do primeiro em dimensão, mas tem em seu
centro um buraco no chão das mesmas medidas da claraboia que fica bem acima
dele. Um grande número de mesas está posta ao redor do buraco e, nas paredes,
grandes espelhos equidistantes me faziam ter a ideia de que o lugar era muito
maior do que a realidade. Em um destes espelhos Máira estava refletida, também
desacordada.
Me aproximei
preocupada e puxei para trás os cabelos que cobriam seu rosto. No espelho atrás
dela, parecia que os fios de cabelo levantavam sozinhos por ação de alguma
força fantasmagórica. Ainda olhando o reflexo, vi a pele dela nos pontos em que
minha mão se aproximava de seu rosto, passava a ter contornos de um amarelo purulento
e doentio.
As preocupações
aumentaram, a urgência também. Olhei ao redor, procurando alguém que poderia
ter causado isso a ela, mas não havia ninguém exceto a mulher que eu havia
deixado lá embaixo. Através do buraco no piso, eu podia vê-la. O pedaço de
toalha atado ao seu pulso já estava totalmente escarlate. E só então eu
entendi.
Não fui eu quem abriu
o pulso daquela mulher, eu sequer estava consciente quando elas chegaram. A
faca na mesa agora fazia sentido, foi ela. Máira sabia que eu não conseguiria
fazer aquilo e apesar de toda a sua aversão a sangue só se afastou quando teve
certeza de que eu estava me desintoxicando. Havia um bar neste segundo andar, e
eu usei a pia dele para lavar o rosto, as mãos e o vestido. O sangue ainda
estava fresco, não tive muito trabalho. Molhei uma toalha e também passei no
rosto dela e nos cabelos. Os hematomas amarelados foram sumindo gradativamente,
e seus lábios começaram a recobrar a cor mas ela ainda não respondia aos meus
chamados.
De volta ao bar,
peguei um a dose do único conhaque que havia lá, ajoelhei ao seu lado e a fiz
beber. Pareceu dar resultado, ela recobrou a consciência pelo menos.
- Máira, você está
bem?
- Não. Nenhum
pouco.
Sua voz soava distante
e pastosa, levantei com o coração pulsando na boca. Não havia mais sangue nela,
eu havia limpado tudo. Será que havia em mim? Busquei o espelho como primeiro
instinto, mas ele não ajudou. Entendendo a minha preocupação, ela disse:
- Não, não é você. É o
cheiro, aquela gorda está aberta e eu ainda posso sentir o cheiro enjoativo
dela. Me tira daqui, preciso de ar puro.
Máira não tinha
condições de ficar sobre os próprios pés, e eu não estava em minha melhor
forma. Tive que sustentar seu peso, bem maior que o meu, sobre meus joelhos e
coluna, isso nos fez demorar mais do que deveríamos para sair da confeitaria.
Conforme nos aproximávamos da mulher ia ficando mais difícil. Caímos duas vezes
no caminho até sair, numa delas Máira tombou sobre minha perna direita com tudo
e me deixou mancando. Mas eu sempre tive boa tolerância à dor, talvez por causa
do ballet, e não reclamei.
Quando finalmente
conseguimos sair, sentamos sobre um banco de madeira ao lado da porta da
confeitaria. À essa hora, já existiam poucos transeuntes pelas ruas do Centro.
Máira inspirou forte e profundo algumas vezes e isso já foi suficiente para que
ela recobrasse a cor morena e saudável que tinha. Depois de algum tempo ela
sorriu, tão forte e contagiante que eu me juntei ao seu riso.
- Que noite! Você é
perigosa, hein? Se eu fosse esperta, nunca sairia com você outra vez.
- É, os garotos
costumam falar isso. - brinquei ignorando a dor que ainda permanecia em meus
maxilares.
- Convencida. Olha,
sei que você não tem muito tempo, então acho melhor você ir se adiantando com a
miss bacon lá dentro. - ela tirou do decote novamente a chave do carro de
Rogério - E também acho que isso aqui pode ajudar você chegar em casa à tempo.
- Claro que não, eu
posso ir correndo! E você precisa muito mais do carro do que eu.
- Não precisa se fazer
de forte, Carolina. Eu vi que deixei você mancando. - ela pôs a chave no meu decote,
só que não ficou escondida como no ela. Pela minha blusa ser justa e meus seios
menores, parecia que eu tinha um terceiro peito deformado ou algo assim - Pegue
o carro, ponha a nossa amiga nele e vai pra casa. São quase seis horas, você
precisa ir.
- Por que você não me
deixa lá e depois vai pra casa?
- Tá brincando? Você
tem uma entrega de uns 200kg e sangrando lá pra levar pra casa. Não, não.
Prefiro deixar vocês à sós. Eu me viro. Sabe, apesar das suas tendências
suicidas você até que não é insuportável, e a eternidade não vale nada se você
não puder se divertir um pouco. – ponderou - Acho que vai ser muito mais fácil
eu arrumar alguma coisa com mortais se eu tiver essa sua bunda do meu lado. Não
que eu precise, claro. Mas se você não estiver ocupada, poderíamos sair hoje à
noite de novo para dançar um pouco e tomar alguma coisa. EU tomar alguma coisa,
você vai ficar de boca fechada.
- Claro, claro. Eu
moro no casarão atrás do Palácio do Catete, você passa lá mais tarde? - eu
disse sorrindo - E prometo que só bebo da garganta dos caras que a gente
enganar.
- Ótimo - ela disse se
levantando - Nossa, que droga, não tenho mais dinheiro como será que eu vou
para casa agora?!
Essa última frase foi
dita com o volume um pouco mais alto que o normal, o suficiente para um rapaz
que passava entregando os jornais do dia ouvir e se aproximar. Jonas, se
apresentou e disse que se ela o acompanhasse até o final da rua, ele poderia
lhe dar uma carona na sua scouter. Máira aceitou prontamente, me deu um beijo
na bochecha e disse baixinho ao meu ouvido:
- Viu? Eu disse que me
virava. Te vejo mais tarde.
Observei enquanto ela seguia
de braços dados com Jonas e notei que, pela primeira vez em muitos anos, eu
tinha feito uma amiga de verdade. Ainda mancando muito, caminhei até a minha vítima
esquecida e consegui, aos poucos, leva-la até o carro.
Eu não pegava num
volante há muito tempo, mas é como andar de bicicleta. Numa bicicleta de quatro
rodas e com um motor. O carro não era conversível, mas ainda assim eu pisei
fundo porque não queria confiar num de alumínio para me proteger do sol. Enquanto
dirigia, pensei que seria muito bom ter o meu próprio carro. Ajudaria não só
nessas situações emergenciais, mas também levantaria muito menos suspeitas.
Em menos de vinte
minutos eu já estava em casa. Já me sentia mais recuperada do incidente e agora
até consegui levar minha presa sobre os ombros. Bati a porta de madeira e vi o
primeiro andar vazio, imaginei que Lucas e Beatriz já estivessem em seus
caixões pela hora.
Eu estava
errada.
Subi as escadas e
quando passei pela sala de estar, uma voz controlada e cortante me convidou a
entrar. O ambiente estava um pouco diferente, mais sombrio e percebi também que
havia alguma mobília nova no cômodo.
- Gostou das cadeiras?
Comprei alguns móveis para o seu quarto também. - Lucas falou monotônico -
Achei que a presença permanente da nossa nova companheira demandaria novos ares
para a casa.
- É muito bonito sim.
- toquei no veludo vermelho que envolva o assento, o encosto e os braços da
cadeira de madeira adornada antes de pousar a mulher que trazia nela. – Onde
está Beatriz? Ela deve estar com sede.
- Já tomei conta disso
também. - ênfase no “também” - Sabe por quê, Carolina? Porque eu me preocupo
com este clã. Porque enquanto você estava lá fora se divertindo sei lá com o
que, eu estava aqui me virando para arrumar as merdas que você fez.
- Do que você está
falando?
Lucas não alterou o
volume da voz, mas Beatriz parecia estar começando a aprender a sentir as
coisas. Ouvi seus passos saindo do quarto que havia escolhido como seu e
parando no umbral da porta da sala. Mesmo atrás de mim eu podia sentir, ela
estava com medo.
- Eu estou falando,
Carolina, que você pode ter estragado a melhor chance que nós já tivemos de
fazer algo realmente relevante. Sua irresponsabilidade simplesmente atrapalhou
uma ideia que eu estou amadurecendo há um século!
- A culpa não é dela.
Fui eu quem pediu para ela trazer algo para eu comer…beber, quero dizer. -
Mentiu Beatriz, e eu pensei que ao contrário do senso comum, mentir pode
definir um traço enorme de caráter dependendo da ocasião.
- Você, por favor
fique quieta, novata. Não lembro ter solicitado sua opinião nesta conversa.
- Lucas, você ainda
não respondeu o que foi de tão importante que eu estraguei.
- Não importa mais,
importa? Eu já desmarquei mesmo. Agora vai saber quando é que ele vai resolver
descer aqui de novo para nos honrar com a sua ilustríssima presença. - ele
pingava cinismo.
- Tudo bem, fique aí
com as suas desilusões secretas. Eu não me importo. Beatriz, desculpa a demora,
fiquei um pouco…ocupada essa noite. Mas aqui está o lanche que eu te prometi.
Acabei começando sem você, espero que não se importe, mas ainda tem muita
coisa, fique à vontade.
Ela avançou sobre o
pescoço da mulher ignorando seu pulso aberto. Me caminhei de volta para o
corredor que daria no meu quarto, estava exausta demais para discutir e Lucas
parecia estar num dia insuportável. Mas ele me interrompeu outra vez.
- Você está mancando?
- Talvez.
Alguma coisa mudou na
sua expressão de pedra por um breve momento e, se eu não o conhecesse bem,
diria que ele até estava preocupado comigo. Mas na verdade, Lucas era o tipo de
homem que odiava perder o que julgava ser dele.
- Quem vez isso?
- Eu conheci alguém.
O silencio que se fez
foi quebrado pelo despertar da mulher gorda marcado por um grito de dor
lancinante. Antes mesmo que Beatriz parasse seu frenesi, Lucas já estava em
cima da mortal e, com uma só mão, descontou toda raiva que não demonstrava estar
sentindo no crânio dela. Ele se estourou num leve fechar de dedos dele,
explodindo miolos e sangue em cima de Beatriz. Ele não se sujou.
Não faço ideia de como
se deu a transformação de Lucas, mas a frieza característica era tão intrínseca
que eu imagino ser um traço que ele carrega desde a sua vida mortal. Beatriz
parecia abalada com a visão da coisa toda, mas não atreveu a se manifestar,
tremendo, apenas e afastou do corpo mutilado o máximo que pôde. Não consigo
imaginar como ela conseguiu amadurecer numa vampira tão estável vendo tanta
coisa durante os primeiros dias de sua transformação. Beatriz sempre foi muito
forte.
- Quem foi que você
conheceu? - Lucas estava se segurando.
- Não é só você que
tem mistérios, não é?
- Carolina, eu exijo
que você me diga o que fez esta noite! - disse o homem vertendo seus olhos num
vermelho tão intenso quanto os meus cabelos. A voz engrossando pela primeira
vez desde que o conheci.
- Escuta aqui! Eu não
sei por quanto tempo você alimenta essa ilusão de harém que criou aqui. Você
faz ideia do quanto isso é patético? Você é um pobre coitado que mendiga companhia.
Transforma mulheres para não se ver sozinho por toda a eternidade, porque
ninguém suportaria passar ela ao seu lado. Não sei quantas delas foram
submissas a você, mas vou te contar que isso não vai funcionar comigo. Levantar
a voz não vai ajudar, eu não vou falar porra nenhuma do que eu fiz essa noite
pelo simples fato de que eu não quero.
Eu tinha conseguido.
Desestabilizei o infeliz de um jeito que ele não conseguia mais se segurar. Ele
fechou os punhos e percebi que ele ia me atacar. Por uma fração de segundo
pensei em Manoela, no que ele fez com ela, e tive medo pela primeira vez
naquela conversa. Nunca lutei com Lucas, mas acredito que por toda a
experiência, eu não seria páreo para ele num combate corporal. Fui salva pelo
gongo.
Por um grito, na
verdade.
- PAREM! Agora, parem
com isso. O que vocês querem fazer? Lutar até cansarem? Eu acabei de me tornar
isso que somos, e já sei o tamanho do estrago que podemos fazer. Será que
ninguém aqui é inteligente o bastante para saber que uma briga agora, por
motivo nenhum, seria um contrassenso? Lucas, você mesmo passou horas me dando
um sermão do quanto a discrição e invisibilidade era importante para a
nossa…nossa raça, e agora está aí agindo como um adolescente descompensado que
acredita que vai resolver tudo no soco. Pelo amor de Deus, você estourou os
miolos de uma mulher na nossa sala! Se vocês querem quebrar a merda da casa
inteira, ótimo! Só me deem tempo de fugir antes porque eu não quero que nosso
vizinhos falem muito de mim.
Como eu disse,
morávamos num casarão atrás do Palácio do Catete, e nessa época, ali era a
residência fixa do presidente da república. Beatriz estava certa, um escândalo
ali chamaria tanta atenção que não teríamos mais problemas se resolvêssemos
brigar na frente da Candelária.
Lucas respirou fundo e
contemplou Beatriz em silêncio. Lucas Malta era um ser perigoso de muitas
maneiras, soube por Carlos que ele é dos demônios mais procurados pela Ordem. Mas
é a sua calma fria e extremamente controlada que sempre me fez teme-lo. Lucas
era capaz de desmembrar um mortal vivo, e enunciar parte por parte do corpo que
arrancava com a serenidade de quem lista os itens que precisam ser comprados no
mercado. Eu já o vi fazer isso. Muitas vezes ele fez parecer que gostava de
mim, ou no mínimo que sentia atração por mim, mas eu nunca me iludi: Lucas
Malta nunca sentiu nada por ninguém. Ele era incapaz de sentir uma ínfima partícula
de empatia.
Isso nunca me impediu
de discutir com ele ao menor sinal de uma atitude que me incomodasse,
entretanto ali, naquela sala, eu temi por Beatriz. Passo ante passo ele se
aproximou dela que parecia aos poucos compreender o peso do discurso de acabara
de fazer, mas era incapaz de se mover. Lucas parou bem em frente a ela e deu um
sorriso mudo.
- Bem pontuado. Muito
bem pontuado, Beatriz. - eu comecei a relaxar após ouvir estas palavras, no
entanto eu vi seu próximo movimento e inevitavelmente veio à minha cabeça a
lembrança do destino que Manoela tivera. Lucas tomou-a pelo pescoço e a
levantou com uma só mão, batendo fortemente seu corpo contra a parede. Apesar
da atitude, sua voz seguia inabalada quando voltou a falar.
- No entanto, acredito
que por ser nova nisso você ainda não compreenda a hierarquia das coisas.
Carolina pode ter te transformado, mas eu a transformei. Eu sou o líder deste
clã e você nunca mais deveria levantar a voz para mim, criança.
Prendi a respiração
nos breves segundos nos quais ele ainda a manteve no ar, mas o barulho oco que
se fez quando ele a soltou e ela tombou sem forças em estado de nervos sobre o
nosso assoalho me fez relaxar. Eu poderia ver o medo nos olhos dela, e me culpo
até hoje por não ter tido uma reação mais imediata naquele dia.
- Eu estou cansado de
vocês. Das duas. Acredito que já tenham frustrado meus planos o bastante por
essa noite, por isso vou descansar um pouco no meu caixão até o sol morrer.
Ficaria grato se não fosse perturbado e, por favor - indicou a mulher sem
cabeça na poltrona nova - limpem essa bagunça, sim?
Apesar do que disse,
Lucas se deteve antes de ir de fato para o seu quarto. Eu já havia corrido para
abraçar Beatriz agora, que se debulhava em lágrimas pensando que ele já não
estava mais lá. E voz dele me incomodou como uma agulha sendo espetada por
baixo da unha quando disse:
- No entanto, Beatriz
percebeu algo que nem eu nem você atentamos, Carolina. Apesar da localização
geográfica de nossa morada ser favorável, a social não é. Estamos no debaixo
dos holofotes, quaisquer mínimos problemas que passarmos aqui poderão
facilmente ser percebidos pelos mortais porque todos os olhos estão voltados
para o palácio aqui em frente. Vou me dedicar, a partir de amanha, a encontrar
um lugar mais discreto para morarmos.
E se foi.
Depois de acalmar
minha nova irmã, eu e ela limpamos a poltrona de feltro e nos livramos do
corpo. A levei para o quarto que ela havia escolhido e tive uma leve surpresa
ao vê-lo mobiliado. Lá, eu contei a ela da minha noite e justifiquei a minha
demora. Falei de Máira, e que me encontraria com ela ainda naquela mesma noite.
O caixão que ela havia escolhido era verde, e tinha o mesmo ideograma oriental
decorando-o em intervalos iguais.
- O que quer dizer? O
símbolo do seu caixão.
- Meu avô tinha uma
historia que contava para mim e para o meus irmãos. Você sabe, muita gente acha
que se combate o medo que você tenha de qualquer coisa com força. Mas isso não
é realmente verdade. Ser forte não necessariamente te faz ser destemido. Todos
nós temos medo de algo, interdependente do quão forte formos. E você sabe o que
meu avô dizia que é a melhor arma contra o medo, Carolina?
- Não.
- A perseverança. Você
não tem que ser uma pessoa sem medo, mas você tem que ter a perseverança para
ser maior do que qualquer medo que possa te acometer. É isso que significam
estes símbolos no meu caixão.
Eu sorri e pensei no
quão perseverante eu tinha sido todos estes anos. Fechei a tampa esverdeada sobre
ela e caminhei até a porta dos seus aposentos. Parei quando a ouvi novamente.”
- Você acha que eu
poderia acompanhar você e a sua amiga nessa saída de mais tarde?
- Claro, Bia. Ela não
se incomodaria, e eu ia adorar.
Me despedi e fui
descansar da madrugada movimentada que tinha tido sem nem imaginar que a
conversa que eu teria aquela noite seria determinante para o que aconteceria
comigo doravante.”
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