quinta-feira, 28 de abril de 2016

Ver038




Foi em uma noite na qual eu tinha saído com Vinicius para atender um chamado solicitado para conter um Demballa que havia sido invocado num ritual feito por jovens médiuns de umbanda na zona oeste da cidade. Cheguei ao nosso esconderijo na Lapa que hoje me serve de apartamento e Carol já estava me esperando.

Como sempre, meu impulso era pular em cima dela assim que a vi. Vez ou outra, eu a tomava pela cintura e trazia pra mim sem ao menos lembrar de tirar a batina, o que causava alguns ferimentos à ela e me deixava envergonhado depois. Mas em geral, Carol não se importava. 

Naquela noite, eu estava esperando exatamente isso, chegar e trair os juramentos da minha ordem em todos os cômodos da casa com ela, mas ela tinha este diário nas mãos. Já comentei que a leitura era complicada em alguns momentos, mas ela insistiu que eu o lesse todo e confesso que agora eu já estava tão entretido e curioso para saber mais do seu passado, que sentir as páginas acabando nos meus dedos me deixou um pouco frustrado. 

Passava das três da manhã, e eu sabia que logo Carol precisaria voltar para casa, mesmo assim segui a leitura: 

“Se eu não soubesse que sonhar era impossível para nós, acreditaria que os pensamentos nos quais eu mergulhava naquele momento eram devaneios de uma vida toda. A dor física estava num segundo plano, mas eu conseguia senti-la aumentando. Meus pulmões estavam sendo tocados pelo fogo que me consumia de dentro para fora e respirar se tornava cada vez mais complicado e doloroso. A mão invisível que se fechava em meu estômago não dava trégua e até mesmo meus olhos cerrados por trás das pálpebras doíam.

Mas eu já não estava mais lá. Eu estava em Paris, passeando pelos Jardins de Luxemburgo na primavera de mãos dadas com Carlos, ou sentada na beira do Sena com garradas de vinho enterradas na neve do inverno enquanto testava a validade dos seus votos numa noite estrelada.

Eu estava com ele e o mal estar físico não me incomodava.

Eu não sei quanto tempo fiquei nesse estado de envenenamento, mas me pareceu muito pouco. Máira chegou trazendo uma mulher baixinha gorducha de meia idade e me contou que precisou puxar meus cabelos para que eu despertasse, pois seus chamados eram em vão.

- Carolina? Carolina, você está me entendendo? Está acordada? - eu assenti com a cabeça ainda meio grogue - Ótimo. Então, foi o que eu consegui encontrar. Está tarde pra caralho e não tem muitas opções de mortais na rua. Essa mulher aqui estava saindo de um taxi quando eu a parei antes de entrar em casa. Tive que desmaia-la para agilizar o processo.

Meu olhar foi da a mulher rosada sentada na cadeira à minha frente para a expressão despreocupada de Máira de pé logo atrás dela. O segundo plano era a prataria da Colombo exposta numa grande estante de vidro atrás do balcão, atravessada pela fria luz da lua. Contemplei a cena por alguns momentos, até que percebi as bordas do quadro escurecendo. A cena aos meus olhos ia ficando cada vez menor, a escuridão ia tomando conta de tudo até eu ouvir um grito e sentir algo quente e pulsante em meus lábios.

Pouco a pouco, eu fui recobrando os sentidos. Minha cabeça funcionava melhor e passei a ter consciência de estar bebendo do pulso da mulher trazida por Máira. Meus olhos se abriram sem dor e vi que a toalha que cobria a mesa, bem como o meu vestido estavam sujos de vermelho. Notei também uma faca de serra sobre a mesa, suja com o mesmo sangue que eu bebia.

A ausência de Máira foi a terceira coisa a ser notada.

Lembrei que o sol já estava muito próximo de nascer e que Beatriz deveria estar com a garganta seca em casa me esperando. Só tomei da minha presa o que precisava para recobrar minimamente minhas faculdades físicas. Quando percebi que já podia ficar de pé, rasquei um pedaço da toalha que cobria a mesa e fiz um torniquete improvisado no pulso exposto da senhora que jazia desfalecida na cadeira. 

Eu precisava ir embora, já não havia mais muito tempo e eu não estava certa de que conseguiria usar a minha velocidade total para chegar em casa à tempo. Precisava encontrar Máira. Meu relógio já se aproximava das cinco da manhã, e toda a confeitaria agora já estava muito mais dourada do que quando eu tinha chegado. 

Mesmo ainda estando muito longe da plenitude das minhas capacidades psíquicas e com um bate-estaca dentro da cabeça não foi difícil sentir a presença de Máira. Ela nunca foi discreta. Apesar de perto, ela estava muito fraca e quando notei isso tentei acelerar pelo corredor de mesas até a escada em espiral. Quase fui ao chão depois de alguns passos, não fosse o balcão. Achei que seria mais inteligente se eu fosse um passo de cada vez até ela. Me parecia que ela estava no segundo andar do estabelecimento, que eu ainda não havia conhecido. Chamei seu nome algumas vezes, desconfiada dos meus sentidos mas mão tive resposta. Eu não estive muito tempo desacordada, mas temia que algo estivesse acontecido neste ínterim. 

O segundo andar da Confeitaria Colombo não difere muito do primeiro em dimensão, mas tem em seu centro um buraco no chão das mesmas medidas da claraboia que fica bem acima dele. Um grande número de mesas está posta ao redor do buraco e, nas paredes, grandes espelhos equidistantes me faziam ter a ideia de que o lugar era muito maior do que a realidade. Em um destes espelhos Máira estava refletida, também desacordada.

Me aproximei preocupada e puxei para trás os cabelos que cobriam seu rosto. No espelho atrás dela, parecia que os fios de cabelo levantavam sozinhos por ação de alguma força fantasmagórica. Ainda olhando o reflexo, vi a pele dela nos pontos em que minha mão se aproximava de seu rosto, passava a ter contornos de um amarelo purulento e doentio.

As preocupações aumentaram, a urgência também. Olhei ao redor, procurando alguém que poderia ter causado isso a ela, mas não havia ninguém exceto a mulher que eu havia deixado lá embaixo. Através do buraco no piso, eu podia vê-la. O pedaço de toalha atado ao seu pulso já estava totalmente escarlate. E só então eu entendi.

Não fui eu quem abriu o pulso daquela mulher, eu sequer estava consciente quando elas chegaram. A faca na mesa agora fazia sentido, foi ela. Máira sabia que eu não conseguiria fazer aquilo e apesar de toda a sua aversão a sangue só se afastou quando teve certeza de que eu estava me desintoxicando. Havia um bar neste segundo andar, e eu usei a pia dele para lavar o rosto, as mãos e o vestido. O sangue ainda estava fresco, não tive muito trabalho. Molhei uma toalha e também passei no rosto dela e nos cabelos. Os hematomas amarelados foram sumindo gradativamente, e seus lábios começaram a recobrar a cor mas ela ainda não respondia aos meus chamados.

De volta ao bar, peguei um a dose do único conhaque que havia lá, ajoelhei ao seu lado e a fiz beber. Pareceu dar resultado, ela recobrou a consciência pelo menos.

- Máira, você está bem?
- Não. Nenhum pouco. 

Sua voz soava distante e pastosa, levantei com o coração pulsando na boca. Não havia mais sangue nela, eu havia limpado tudo. Será que havia em mim? Busquei o espelho como primeiro instinto, mas ele não ajudou. Entendendo a minha preocupação, ela disse:

- Não, não é você. É o cheiro, aquela gorda está aberta e eu ainda posso sentir o cheiro enjoativo dela. Me tira daqui, preciso de ar puro.

Máira não tinha condições de ficar sobre os próprios pés, e eu não estava em minha melhor forma. Tive que sustentar seu peso, bem maior que o meu, sobre meus joelhos e coluna, isso nos fez demorar mais do que deveríamos para sair da confeitaria. Conforme nos aproximávamos da mulher ia ficando mais difícil. Caímos duas vezes no caminho até sair, numa delas Máira tombou sobre minha perna direita com tudo e me deixou mancando. Mas eu sempre tive boa tolerância à dor, talvez por causa do ballet, e não reclamei.

Quando finalmente conseguimos sair, sentamos sobre um banco de madeira ao lado da porta da confeitaria. À essa hora, já existiam poucos transeuntes pelas ruas do Centro. Máira inspirou forte e profundo algumas vezes e isso já foi suficiente para que ela recobrasse a cor morena e saudável que tinha. Depois de algum tempo ela sorriu, tão forte e contagiante que eu me juntei ao seu riso.

- Que noite! Você é perigosa, hein? Se eu fosse esperta, nunca sairia com você outra vez.
- É, os garotos costumam falar isso. - brinquei ignorando a dor que ainda permanecia em meus maxilares.
- Convencida. Olha, sei que você não tem muito tempo, então acho melhor você ir se adiantando com a miss bacon lá dentro. - ela tirou do decote novamente a chave do carro de Rogério - E também acho que isso aqui pode ajudar você chegar em casa à tempo.
- Claro que não, eu posso ir correndo! E você precisa muito mais do carro do que eu.
- Não precisa se fazer de forte, Carolina. Eu vi que deixei você mancando. - ela pôs a chave no meu decote, só que não ficou escondida como no ela. Pela minha blusa ser justa e meus seios menores, parecia que eu tinha um terceiro peito deformado ou algo assim - Pegue o carro, ponha a nossa amiga nele e vai pra casa. São quase seis horas, você precisa ir.
- Por que você não me deixa lá e depois vai pra casa?
- Tá brincando? Você tem uma entrega de uns 200kg e sangrando lá pra levar pra casa. Não, não. Prefiro deixar vocês à sós. Eu me viro. Sabe, apesar das suas tendências suicidas você até que não é insuportável, e a eternidade não vale nada se você não puder se divertir um pouco. – ponderou - Acho que vai ser muito mais fácil eu arrumar alguma coisa com mortais se eu tiver essa sua bunda do meu lado. Não que eu precise, claro. Mas se você não estiver ocupada, poderíamos sair hoje à noite de novo para dançar um pouco e tomar alguma coisa. EU tomar alguma coisa, você vai ficar de boca fechada.
- Claro, claro. Eu moro no casarão atrás do Palácio do Catete, você passa lá mais tarde? - eu disse sorrindo - E prometo que só bebo da garganta dos caras que a gente enganar.
- Ótimo - ela disse se levantando - Nossa, que droga, não tenho mais dinheiro como será que eu vou para casa agora?!

Essa última frase foi dita com o volume um pouco mais alto que o normal, o suficiente para um rapaz que passava entregando os jornais do dia ouvir e se aproximar. Jonas, se apresentou e disse que se ela o acompanhasse até o final da rua, ele poderia lhe dar uma carona na sua scouter. Máira aceitou prontamente, me deu um beijo na bochecha e disse baixinho ao meu ouvido:

- Viu? Eu disse que me virava. Te vejo mais tarde.

Observei enquanto ela seguia de braços dados com Jonas e notei que, pela primeira vez em muitos anos, eu tinha feito uma amiga de verdade. Ainda mancando muito, caminhei até a minha vítima esquecida e consegui, aos poucos, leva-la até o carro.

Eu não pegava num volante há muito tempo, mas é como andar de bicicleta. Numa bicicleta de quatro rodas e com um motor. O carro não era conversível, mas ainda assim eu pisei fundo porque não queria confiar num de alumínio para me proteger do sol. Enquanto dirigia, pensei que seria muito bom ter o meu próprio carro. Ajudaria não só nessas situações emergenciais, mas também levantaria muito menos suspeitas.

Em menos de vinte minutos eu já estava em casa. Já me sentia mais recuperada do incidente e agora até consegui levar minha presa sobre os ombros. Bati a porta de madeira e vi o primeiro andar vazio, imaginei que Lucas e Beatriz já estivessem em seus caixões pela hora.

Eu estava errada. 

Subi as escadas e quando passei pela sala de estar, uma voz controlada e cortante me convidou a entrar. O ambiente estava um pouco diferente, mais sombrio e percebi também que havia alguma mobília nova no cômodo.

- Gostou das cadeiras? Comprei alguns móveis para o seu quarto também. - Lucas falou monotônico - Achei que a presença permanente da nossa nova companheira demandaria novos ares para a casa.
- É muito bonito sim. - toquei no veludo vermelho que envolva o assento, o encosto e os braços da cadeira de madeira adornada antes de pousar a mulher que trazia nela. – Onde está Beatriz? Ela deve estar com sede.
- Já tomei conta disso também. - ênfase no “também” - Sabe por quê, Carolina? Porque eu me preocupo com este clã. Porque enquanto você estava lá fora se divertindo sei lá com o que, eu estava aqui me virando para arrumar as merdas que você fez.
- Do que você está falando?

Lucas não alterou o volume da voz, mas Beatriz parecia estar começando a aprender a sentir as coisas. Ouvi seus passos saindo do quarto que havia escolhido como seu e parando no umbral da porta da sala. Mesmo atrás de mim eu podia sentir, ela estava com medo.

- Eu estou falando, Carolina, que você pode ter estragado a melhor chance que nós já tivemos de fazer algo realmente relevante. Sua irresponsabilidade simplesmente atrapalhou uma ideia que eu estou amadurecendo há um século!
- A culpa não é dela. Fui eu quem pediu para ela trazer algo para eu comer…beber, quero dizer. - Mentiu Beatriz, e eu pensei que ao contrário do senso comum, mentir pode definir um traço enorme de caráter dependendo da ocasião.
- Você, por favor fique quieta, novata. Não lembro ter solicitado sua opinião nesta conversa.
- Lucas, você ainda não respondeu o que foi de tão importante que eu estraguei.
- Não importa mais, importa? Eu já desmarquei mesmo. Agora vai saber quando é que ele vai resolver descer aqui de novo para nos honrar com a sua ilustríssima presença. - ele pingava cinismo.
- Tudo bem, fique aí com as suas desilusões secretas. Eu não me importo. Beatriz, desculpa a demora, fiquei um pouco…ocupada essa noite. Mas aqui está o lanche que eu te prometi. Acabei começando sem você, espero que não se importe, mas ainda tem muita coisa, fique à vontade.

Ela avançou sobre o pescoço da mulher ignorando seu pulso aberto. Me caminhei de volta para o corredor que daria no meu quarto, estava exausta demais para discutir e Lucas parecia estar num dia insuportável. Mas ele me interrompeu outra vez.

- Você está mancando?
- Talvez.

Alguma coisa mudou na sua expressão de pedra por um breve momento e, se eu não o conhecesse bem, diria que ele até estava preocupado comigo. Mas na verdade, Lucas era o tipo de homem que odiava perder o que julgava ser dele.

- Quem vez isso?
- Eu conheci alguém.

O silencio que se fez foi quebrado pelo despertar da mulher gorda marcado por um grito de dor lancinante. Antes mesmo que Beatriz parasse seu frenesi, Lucas já estava em cima da mortal e, com uma só mão, descontou toda raiva que não demonstrava estar sentindo no crânio dela. Ele se estourou num leve fechar de dedos dele, explodindo miolos e sangue em cima de Beatriz. Ele não se sujou.

Não faço ideia de como se deu a transformação de Lucas, mas a frieza característica era tão intrínseca que eu imagino ser um traço que ele carrega desde a sua vida mortal. Beatriz parecia abalada com a visão da coisa toda, mas não atreveu a se manifestar, tremendo, apenas e afastou do corpo mutilado o máximo que pôde. Não consigo imaginar como ela conseguiu amadurecer numa vampira tão estável vendo tanta coisa durante os primeiros dias de sua transformação. Beatriz sempre foi muito forte.

- Quem foi que você conheceu? - Lucas estava se segurando.
- Não é só você que tem mistérios, não é?
- Carolina, eu exijo que você me diga o que fez esta noite! - disse o homem vertendo seus olhos num vermelho tão intenso quanto os meus cabelos. A voz engrossando pela primeira vez desde que o conheci.
- Escuta aqui! Eu não sei por quanto tempo você alimenta essa ilusão de harém que criou aqui. Você faz ideia do quanto isso é patético? Você é um pobre coitado que mendiga companhia. Transforma mulheres para não se ver sozinho por toda a eternidade, porque ninguém suportaria passar ela ao seu lado. Não sei quantas delas foram submissas a você, mas vou te contar que isso não vai funcionar comigo. Levantar a voz não vai ajudar, eu não vou falar porra nenhuma do que eu fiz essa noite pelo simples fato de que eu não quero.

Eu tinha conseguido. Desestabilizei o infeliz de um jeito que ele não conseguia mais se segurar. Ele fechou os punhos e percebi que ele ia me atacar. Por uma fração de segundo pensei em Manoela, no que ele fez com ela, e tive medo pela primeira vez naquela conversa. Nunca lutei com Lucas, mas acredito que por toda a experiência, eu não seria páreo para ele num combate corporal. Fui salva pelo gongo.

Por um grito, na verdade.

- PAREM! Agora, parem com isso. O que vocês querem fazer? Lutar até cansarem? Eu acabei de me tornar isso que somos, e já sei o tamanho do estrago que podemos fazer. Será que ninguém aqui é inteligente o bastante para saber que uma briga agora, por motivo nenhum, seria um contrassenso? Lucas, você mesmo passou horas me dando um sermão do quanto a discrição e invisibilidade era importante para a nossa…nossa raça, e agora está aí agindo como um adolescente descompensado que acredita que vai resolver tudo no soco. Pelo amor de Deus, você estourou os miolos de uma mulher na nossa sala! Se vocês querem quebrar a merda da casa inteira, ótimo! Só me deem tempo de fugir antes porque eu não quero que nosso vizinhos falem muito de mim. 

Como eu disse, morávamos num casarão atrás do Palácio do Catete, e nessa época, ali era a residência fixa do presidente da república. Beatriz estava certa, um escândalo ali chamaria tanta atenção que não teríamos mais problemas se resolvêssemos brigar na frente da Candelária.

Lucas respirou fundo e contemplou Beatriz em silêncio. Lucas Malta era um ser perigoso de muitas maneiras, soube por Carlos que ele é dos demônios mais procurados pela Ordem. Mas é a sua calma fria e extremamente controlada que sempre me fez teme-lo. Lucas era capaz de desmembrar um mortal vivo, e enunciar parte por parte do corpo que arrancava com a serenidade de quem lista os itens que precisam ser comprados no mercado. Eu já o vi fazer isso. Muitas vezes ele fez parecer que gostava de mim, ou no mínimo que sentia atração por mim, mas eu nunca me iludi: Lucas Malta nunca sentiu nada por ninguém. Ele era incapaz de sentir uma ínfima partícula de empatia.

Isso nunca me impediu de discutir com ele ao menor sinal de uma atitude que me incomodasse, entretanto ali, naquela sala, eu temi por Beatriz. Passo ante passo ele se aproximou dela que parecia aos poucos compreender o peso do discurso de acabara de fazer, mas era incapaz de se mover. Lucas parou bem em frente a ela e deu um sorriso mudo.

- Bem pontuado. Muito bem pontuado, Beatriz. - eu comecei a relaxar após ouvir estas palavras, no entanto eu vi seu próximo movimento e inevitavelmente veio à minha cabeça a lembrança do destino que Manoela tivera. Lucas tomou-a pelo pescoço e a levantou com uma só mão, batendo fortemente seu corpo contra a parede. Apesar da atitude, sua voz seguia inabalada quando voltou a falar.

- No entanto, acredito que por ser nova nisso você ainda não compreenda a hierarquia das coisas. Carolina pode ter te transformado, mas eu a transformei. Eu sou o líder deste clã e você nunca mais deveria levantar a voz para mim, criança.

Prendi a respiração nos breves segundos nos quais ele ainda a manteve no ar, mas o barulho oco que se fez quando ele a soltou e ela tombou sem forças em estado de nervos sobre o nosso assoalho me fez relaxar. Eu poderia ver o medo nos olhos dela, e me culpo até hoje por não ter tido uma reação mais imediata naquele dia.

- Eu estou cansado de vocês. Das duas. Acredito que já tenham frustrado meus planos o bastante por essa noite, por isso vou descansar um pouco no meu caixão até o sol morrer. Ficaria grato se não fosse perturbado e, por favor - indicou a mulher sem cabeça na poltrona nova - limpem essa bagunça, sim?

Apesar do que disse, Lucas se deteve antes de ir de fato para o seu quarto. Eu já havia corrido para abraçar Beatriz agora, que se debulhava em lágrimas pensando que ele já não estava mais lá. E voz dele me incomodou como uma agulha sendo espetada por baixo da unha quando disse:

- No entanto, Beatriz percebeu algo que nem eu nem você atentamos, Carolina. Apesar da localização geográfica de nossa morada ser favorável, a social não é. Estamos no debaixo dos holofotes, quaisquer mínimos problemas que passarmos aqui poderão facilmente ser percebidos pelos mortais porque todos os olhos estão voltados para o palácio aqui em frente. Vou me dedicar, a partir de amanha, a encontrar um lugar mais discreto para morarmos.

E se foi.

Depois de acalmar minha nova irmã, eu e ela limpamos a poltrona de feltro e nos livramos do corpo. A levei para o quarto que ela havia escolhido e tive uma leve surpresa ao vê-lo mobiliado. Lá, eu contei a ela da minha noite e justifiquei a minha demora. Falei de Máira, e que me encontraria com ela ainda naquela mesma noite. O caixão que ela havia escolhido era verde, e tinha o mesmo ideograma oriental decorando-o em intervalos iguais.

- O que quer dizer? O símbolo do seu caixão.
- Meu avô tinha uma historia que contava para mim e para o meus irmãos. Você sabe, muita gente acha que se combate o medo que você tenha de qualquer coisa com força. Mas isso não é realmente verdade. Ser forte não necessariamente te faz ser destemido. Todos nós temos medo de algo, interdependente do quão forte formos. E você sabe o que meu avô dizia que é a melhor arma contra o medo, Carolina?
- Não.
- A perseverança. Você não tem que ser uma pessoa sem medo, mas você tem que ter a perseverança para ser maior do que qualquer medo que possa te acometer. É isso que significam estes símbolos no meu caixão.

Eu sorri e pensei no quão perseverante eu tinha sido todos estes anos. Fechei a tampa esverdeada sobre ela e caminhei até a porta dos seus aposentos. Parei quando a ouvi novamente.”

- Você acha que eu poderia acompanhar você e a sua amiga nessa saída de mais tarde?
- Claro, Bia. Ela não se incomodaria, e eu ia adorar.

Me despedi e fui descansar da madrugada movimentada que tinha tido sem nem imaginar que a conversa que eu teria aquela noite seria determinante para o que aconteceria comigo doravante.”


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