“Eu não gostei de
Máira naquele primeiro momento. Ela me pareceu cheia de si e bastante pedante,
coisas que eu nunca suportei. Antes era só uma caçada normal à procura de
alguma vítima ordinária para levar para casa, entretanto agora as coisas haviam
se tornado muito mais interessantes. Eu sempre gostei de desafios, e não
era preciso ser muito atenta à detalhes para perceber que Máira não era
acostumada a eles. É curioso pensar em como a nossa amizade tão grande nasceu
de uma desavença dessas.
Na época eu ainda não
sabia que as coisas eram tão complexas assim. No âmbito sobrenatural, eu digo.
Acreditava que nós, vampiros, éramos a única parcela infernal do mundo. Foi
isso que Lucas me contou e foi no que eu acreditei por muito tempo. É verdade
que já tinha sentido cheiros e presenças diferentes eventualmente, algo que não
parecia humano ou pelo menos humano de modo não-convencional, mas isso sempre
passava rápido e eu sentia como se tivesse sido só uma impressão. Fui atingida
com a energia totalmente diferenciada de Máira desde que ela pôs os pés ali.
Quando Rogério se sentou na mesa próxima à minha, vi que ele parecia não
pertencer àquele ambiente mas Máira parecia não pertencer à este plano.
Ela se pôs ao lado
direito do homem que agora parecia ter sido levado ao paraíso. Se uma mulher já
consegue ter um homem nas mãos, imagine duas. Rogério afrouxou a gravata e
articulava com Máira, disfarçando a empolgação, sobre coisas triviais
deliberadamente preparando terreno para chegar ao ponto que realmente procurava.
Deixei escapar um riso eleve quando ele finalmente fez a proposta à ela, a
previsibilidade masculina chega a ser cômica às vezes. Máira, no entanto,
parecia bastante incomodada; não pela ideia do insistente Rogério, mas pela
minha presença ali. E eu estava adorando isso.
Voltado para ela,
explicando novamente como eu havia aparecido no encontro dos dois, Rogério
estava totalmente de costas para mim. Máira fingia estar ouvindo, mas seus
olhos focavam nos meus. Respondi com meu melhor sorriso falso-inocente e dei de
ombros. Ela me olhou mais furiosa do que nunca.
- Eu entendo se
estiver atrapalhando algo entre vocês dois. Meu plano esta noite era só tomar
algumas taças de vinho para esquecer dos meus problemas e logo voltar para
casa. Vou voltar para a minha mesa e esquecer deste incidente na sua camisa
Rogério. - toquei o alto de suas costas, no ponto onde a mancha se iniciou, e
fui acompanhando sua extensão até mais embaixo.
- Não! - o homem levantou
quase que com um pulo – De modo algum, minha querida. Veja, Máira entende, ela
só não está muito à vontade em mudarmos nossos planos, mas acredito que isso
seja facilmente remediado. Tenho uma ideia para quebrar o gelo e aproximar
vocês duas, meninas. Eu tenho outra camisa no carro, que inclusive combina melhor
com meu terno que essa aqui. No fim você acabou me fazendo um favor, Carolina.
Eu vou até lá trocar e, enquanto isso, por que vocês não aproveitam o tempo
para se conhecerem melhor? Acho que seria ótimo.
Eu sequer estava
tentando e o pobre coitado já estava comendo na minha mão. Fez-se alguns
segundos de silêncio depois que ele bateu a porta do bordel e eu facilmente
adivinhei o que aconteceria em seguida. Fingi procurar alguma coisa na minha
bolsa distraída enquanto percebia Máira me avaliando de cima abaixo. Como se
tirasse uma máscara, seu tom de voz e suas expressões mudaram quando ela falou:
- Ok, o que é que você
esta querendo aqui?
- Pardon?
- Para de encenação,
garota. O idiota já foi embora, podemos falar abertamente agora. EU o vi
primeiro, já encontrei alguns da sua laia, vocês não respeitam isso mas fique
sabendo que eu não estou disposta a perder esse aí.
- Minha…laia?
- Eu vi os seus dentes
quando você sorriu. Não sei como os mortais burros não percebem isso em vocês,
é tão obvio! Acho que eles estão ocupados demais ficando de queixo caído, mas
eu vou te falar que estou há três dias esperando para esse aí, pode ir buscando
outra coisa pra você.
O sentimento de perigo
eminente tomou conta de mim. Primeiro, pensei que ela fosse da Ordem e que
estivesse ali para me caçar, mas não fazia sentido, ou os métodos deles no
Brasil eram bem diferentes dos europeus…a indumentária também. Instintivamente
levantei da mesa, perdendo o chão e a pose, eu nunca havia sido descoberta
antes. Máira percebeu meu descompasso e também pareceu intrigada.
- Serio? Assim tão fácil?
Qual é a pegadinha,? Te falei que já conheci outros de vocês e não são de
desistir de uma presa assim.
- Quem é você? Você
está sozinha aqui? - lembro de ter dado uma rápida olhada nas mesas ao nosso
redor
- Não. Estou com
aquele panaca que acha que vai se dar bem com nós duas hoje. Por que você está paranoica?
- E…o que você quer
com ele?
- O mesmo que você: me
aproveitar de toda a vitalidade dele e depois mata-lo. Só que sem toda aquela
sujeira toda de sangue que o seu pessoal faz.
- Pss! Fale baixo -
sussurrei - quer que nos descubram?
- Pelo amor de Lúcifer!
Esses idiotas? Eles estão mais preocupados em ver a bunda daquela ali - apontou
para o palco - do que nos ouvir. Você é nova nisso?
- Eu estou
transformada há um século... - disse um tanto embaraçada. - Mas você…calma, eu
estou um pouco perdida...você não é uma upyr também?
Máira gargalhou.
- Eu? Garota, eu sou o
contrário de vocês! Sabe aqueles problemas todos que vocês tem com luz,
crucifixo, alho, blá blá blá? Acontece algo semelhante comigo se eu vir sangue.
Acho que o único ponto em comum aqui é que eu e você seduzimos os mortais antes
de acabarmos com eles.
- Existem…outros?
- Típico de vocês
acharem que são tão especiais. Sim floquinho de neve, tem demônios para caralho
espalhados aqui nesse plano e mais de nós lá embaixo, mas nem se preocupe em
descer lá, a diversão está toda aqui em cima. Engraçado, em cem anos acho que
você já deveria saber disso.
- É…acho que eu tenho
vivido um pouco reclusa. – sorri sem jeito.
- Sabe de uma coisa?
Acho que aquele palhaço do Rogério fez algo de útil na vida pela primeira vez. –
pensou um pouco e disse - Por que não esperamos ele voltar e damos o que ele
tanto quer? Eu tive uma ideia.
- Sou toda
ouvidos.
Rogério voltou e não
conseguiu conter a felicidade por eu e Mária “termos nos dado tão bem”.
Rapidamente pediu que a garçonete fechasse a conta, mas não sem antes perguntar
se eu não queria uma garrafa daquele Bordeaux para viagem, já que eu mal tinha
tocado minha taça. Disse que não era necessário, mas ele comprou assim mesmo. De
braços dados à nos duas, nos conduziu até o seu carro e disse que daríamos um
passeio. O Fleetmaster era caro e novo, mas pintado num verde de muito mau
gosto. Imaginei que ele fosse pedir um quarto ali mesmo no estabelecimento onde
estávamos, mas Rogério nos levou até um lugar mais chique, em frente à praia de
Botafogo. Depois eu soube que o bordel era ideia da Máira, ela sempre marcava
com as vítimas lá pois o lugar não levantava muitas suspeitas.
O recepcionista o
chamou pelo nome quando lhe entregou as chaves do nosso quarto, o que poderia
complicar um pouco a situação. O quarto 248 seria nosso por seis horas e o
plano era bem simples: levaríamos o Rogério para cama, onde Máira o prenderia
com o par de algemas que tinha levado em sua bolsa. Ela me revelou ser uma
Aaba, um tipo de infernal que se alimentava dos desejos luxuriosos de mortais.
Quanto mais ela seduzia, mais envolvia a vítima e fazia que ele tivesse sentimentos
mundanos; mais se satisfazia. Acontece que, ao estar satisfeita, Máira era
obrigada a mostrar sua verdadeira forma e consequentemente a matar o pobre
coitado. Ou enlouquece-lo, o que ela me disse fazer quando estava entediada
também. Uma vez nossa vítima impossibilitada de fugir, ela iria primeiro
enquanto minha tarefa seria cuidar para que o homem não gritasse durante o
processo, quando estivesse saciada, seria a minha vez, ela sairia do quarto e
eu teria Rogério totalmente para mim. Eu estava excitada, mal podia esperar
para ver a forma real de Máira. Eu havia sido transformada, mas ela havia
nascido no próprio Inferno. Havia tanta coisa que ela podia me revelar, tantas
perguntas que eu queria fazer.
Começamos, Rogério
ofereceu certa resistência quando Máira sugeriu as algemas, mas aceitou sem
pestanejar quando eu disse que era um desejo antigo. Eu mesma prendi seus
braços entre as grades de metal da cama e quando tive certeza de que ele não se
soltaria, acenei para que minha nova amiga seguir com o plano. Ela se despiu,
eu fiz o mesmo. Na época seus cabelos lisos eram castanhos e batiam na altura
dos ombros num corte reto e sem muitas curvas, mas não fazia falta, todas as
curvas que ela precisava estavam no seu corpo. Nua ela chamava ainda mais
atenção que vestida, era alta, mas sua presença era imposta por muito mais que
só altura. Seus seios eram o que mais chamava atenção à primeira vista, sem
dúvidas grandes. Mas se fosse visto com calma, seu corpo tinha formatos e
volumes específicos nos lugares certos. Sem exageros, ela era toda torneada. Tinha
o corpo de uma pin-up da época. Só que, apesar de tudo isso, era a expressão no
seu rosto, com seus olhos grandes e redondos, além de um sorriso confiante que
dava à Máira ares de dona do lugar.
Percebendo que eu a
observava, ela me olhou de volta. Sempre fomos diferentes fisicamente em todos
os aspectos, e acredito que foi isso que naquela noite despertou esse interesse
mútuo entre nós duas. Não saberia dizer se foi ela quem se aproximou primeiro
ou eu. O primeiro registro que tenho é de estarmos de frente uma para outra,
bem de perto. Lembro também da forma que seus lábios se abriram num sorriso
torto quando percebeu a surpresa que tive ao sentir suas mãos me abraçando por
trás. Abraçando e apertando, as duas mão apertavam bem forte a minha bunda. Não
me importei e deixei que ela me trouxesse para si. Meu rosto ficou enterrado
entre aqueles seios tão maiores que os meus e, com vontade eu me dediquei a
eles dois enquanto era estimulada por baixo pelos dedos dela. Apesar de ser
menor, consegui empurra-la até a beirada da cama, de pernas abertas, e agora
era eu quem usava os dedos enquanto ela passeava com as mãos pela minha cintura
e subia até os meus peitos. Eu me arrepiei, mas não parei. Minha pele se marcou
fácil com os dedos dela cada vez mais fortes conforme eu aumentava a frequência
e força dos meus movimentos. Quando ela relaxou, levei os dedos da mão esquerda
à boca, ao tira-los, ela pegou meu pulso e mordeu com força.
- Essa marca aí é pra
você lembrar de quem mordeu você, vampira - ela levantou e falou ao meu ouvido
- Vamos ao prato principal?
Durante todo aquele
momento eu havia esquecido totalmente do homem que prendi à cama. Enquanto
Máira o despia, e negava todos os pedidos para que ele fosse solto, eu percebi
que seu pau já estava latejando depois de tudo aquilo. Apesar de ser bonito
para um homem de meia-idade, pensei que Rogério nunca deveria ter tido uma
experiência como esta.
Ela subiu de quatro na
cama, e foi engatinhando até ficar sobre o corpo dele, sustentada sobre seus
braços e pernas à uma altura onde ele não conseguia tocar nela, por mais que
tentasse. Os grandes seios chegavam a milímetros de onde sua língua esticada
não conseguia alcançar; suas unhas passavam por suas pernas, mas nunca no meio
delas e quando ela lambia o rosto do homem eu sabia que o que ela estava
provando na verdade era seu desejo. Ele se contorcia de prazer e ela estava
chegando cada vez mais ao seu ápice. Sentada ao lado deles, eu tapava a boca de
Rogério com a minha mão e esporadicamente arranhava seu pescoço com o cuidado
de não abrir nenhum corte exposto. Ainda.
De súbito as luzes
começaram a falhar, o homem não percebeu e nem poderia em seu estado, mas eu
soube que estava acontecendo. Mantive sua boca fechada, agora com mais força e
senti ele reclamando da dor com sons abafados. Máira estava sorrindo e, no meio
deste sorriso, sua voz começou a entrar num tipo de metamorfose sinistra onde
os sons iam se entrecortando. Arqueou o corpo para trás quando chifres
começaram a brotar das laterais de sua testa, curvando-se para cima. Seu corpo
tremia e gradativamente eu percebi suas unhas crescendo nos pés e nas mãos; até
mesmo suas feições, principalmente os olhos, agora estavam diferentes. Uma
sombra se alongava sobre os seus olhos e suas sobrancelhas. Suas íris
apresentavam um laranja muito vivo no lugar do castanho escuro. Todo esse
laranja se focou nos olhos azuis do homem atado a cama que parecia não
acreditar no que via. Ele olhava para mim em busca de ajuda e eu gostava de ver
o seu desespero.
No último estágio da
transformação, Maíra jogou todo o seu corpo para frente e eu vi suas omoplatas
rachando com um barulho seco. Pouco à pouco asas de dragão iam emergindo da sua
pele com a facilidade de uma borboleta que rasga seu casulo, mas sem nenhum
sangue escorrer. E da mesma forma, um rabo de animal despontou do seu quadril e
se enrolou no pé direito de Rogério. Pude ouvir nitidamente quando o rabo
quebrou seu pé num estalo. Ele teria gritado por causa da dor, mas eu não
permiti.
Máira levantou de cima
do homem, ficou de pé ao lado da cama e deu uma voltinha se exibindo.
- E então? O que acha.
Ela ainda tinha o
corpo que tinha como mulher, mas toda aquela mudança a fazia uma criatura
única, pelo menos aos meus olhos. Acho que a reação de Rogério foi plausível,
para mortais ela devia realmente parecer um monstro, mas para mim era admirável.
Vendo que eu não responderia, ela voltou a atenção para a nossa vítima que
derrubava lágrimas mudas à essa altura.
- Aaah, coitadinho.
Cuidei para que ele não fugisse, mesmo se as algemas falharem - apontou para o
pé dobrado num angulo errado - Acha que você consegue dar conta dele sozinha?
Ótimo. Te contei que não suporto ver toda essa sujeira né? Eu vou te esperar lá
fora, mas leve o tempo que precisar.
A luz começou a voltar
no quarto e eu vi seus traços demoníacos recuando enquanto ela juntava as
roupas e se vestia.
- Ah! Vê se se lava
depois. Vou dar um jeito no recepcionista enquanto você se diverte. Te encontro
lá embaixo.
Esperei ela fechar a
porta e olhei para a minha presa daquela noite. Eu não precisava me alimentar,
estava cheia. Mas estava tão animada que lembro daquele homem até hoje como uma
das minhas refeições mais satisfatórias. Não foi uma mordida, nem duas. Eu o
mordi em todos os lugares que consegui pensar e só bem depois lembrei que eu só
saí de casa para conseguir algo que saciasse a sede de Beatriz, agora eu teria
que levar outra vítima para ela.
Durante o banho,
refleti sobre a montanha-russa que havia sido aquela noite. O relógio ainda não
marcava quatro da manhã e eu já havia tido mais agitação do que poderia lembrar
ter em anos.
Sempre tive uma
facilidade grande para ler pessoas, mesmo antes de ser transformada. Para mim é
simples perceber uma atitude dissimulada, uma mentira, ou alguma intenção
espúria de outrem muito antes que notassem que eu já sabia, o que tornava
algumas situações bastante interessantes. Lembro que Carlos costumava dizer em
muitas ocasiões que eu conseguia ler a mente dele, e realmente isso parecia ser
verdade. Mas nesse caso não era por alguma intenção obscura que ele tivesse
para comigo ou algo do tipo. Carlos era uma dessas raras pessoas com o coração
bom, realmente bom. Até ingênuo muitas vezes, eu diria, e a bondade em sua
essência não tem manchas. Ela é transparente como vidro.
Máira definitivamente
não era boa, isso eu conseguia afirmar sem maiores problemas também. Só que, com
surpresa, me dei conta de que confiava nela, o que poderia ser muito arriscado.
Depois de me vestir, senti em mim um impulso enorme de sair pela varanda do
hotel e não ver Máira nunca mais. Esse é o problema em ser boa percebendo a
falsidade nos outros: você custa a acreditar em alguém realmente confiável
quando aparece. Refleti um pouco mais e senti os dentes que ela deixou no meu
pulso minutos antes. Ela sabia tudo de mim, da minha espécie pelo menos. Nossos
pontos fracos, modo de agir… e ainda assim ofereceu parceria ao invés de usar
tudo isso contra mim. Ainda me contou a sua fraqueza sem nem pensar em alguma
atitude minha!
Resolvi, então, que
daria uma chance. Máira não era transparente mas sua nebulosidade não me
incomodava. Desci e a encontrei no lobby do hotel misturada à uma pequena fila
que começava a se formar no balcão de recepção, que estava vazio. Dois homens
disputavam a atenção dela que fingia uma indignação bastante caricata pela
ausência do funcionário. Ao me ver ao pé da escada, piscou pra mim e veio em
minha direção:
- Carolina, você
demorou demais no banheiro! Acredita que o recepcionista do hotel ainda não me
atendeu? - piscou discretamente para mim - Acho melhor procurarmos vaga em
outro lugar.
Fui incapaz de não rir
com aquela atuação ruim e tive que ser dura com os dois homens que insistam que
não fossemos embora para que saíssem do nosso pé. Máira parecia estar muito
animada apesar do avanço da hora, o que me ajudou ainda mais com a simpatia que
já sentia por ela.
- Você está com sono?
- Sono? Não, eu não
durmo. – eu respondi sorrindo.
- Aquela historia toda
dos caixões então é mentira.
- Não, temos caixões
sim. Mas servem mais para proteção da luz durante o dia ou viagens longas do
que para dormir.
- Você são estranhos.
- e fez uma careta - De qualquer forma, se você não dorme então não está com
sono agora, e se não está com sono agora talvez tope ir comigo até a minha
confeitaria favorita. Nada melhor que um doce de sobremesa depois de um
banquete, não acha? Não se preocupe com a hora - ela acrescentou ao me ver
checando meu relógio - eu conheço o segurança e ele sempre “esquece" a
porta dos fundos aberta para mim.
- Bom, não é isso…é
que logo logo vai nascer o sol...
- Não se preocupe
Cinderela, eu te levo para casa na hora. Confia em mim?
- Confio. – e
confiava.
- Ótimo, porque você
não teria muita opção mesmo já que eu te sequestraria. – brincou - Agora vamos
pensar, estamos em Botafogo e precisamos chegar rápido ao Centro já que a
senhorita tem hora pra voltar pra casa. Como faremos? - outra vez a atuação
dissimulada - JÁ SEI! Por que não pegamos o carro daquele nosso amigo do hotel?
Acho que ele não vai precisar mais, não é mesmo? Se pelo menos tivéssemos
pensado nisso antes…
Máira tirou uma chave
prateada do meio do decote e começou a roda-la em seu indicador. De novo, não
pude segurar o riso e pensar no quanto aquela noite estava sendo agradável.
Entramos no carro de cor estranha de Rogério e Máira foi dirigindo pela orla de
Botafogo até o Centro. No caminho contei para ela a história de como fui
transformada, todo o caso com Manoela e do recente evento no qual eu
transformei Beatriz e ela estava em casa me esperando. Contei até mesmo do meu
romance com Carlos e notei que aquela foi a primeira vez desde que eu havia
conversado com alguém sobre isso desde o ocorrido. Era bom me abrir um pouco,
eu já não fazia isso há muito tempo.
Paramos o carro na Rua
da Carioca e seguimos à pé até a confeitaria, pois Máira não queria chamar
atenção. Caminhamos conversando distraídas quando de repente eu senti outra
presença daquele tipo diferenciado. Só que me incomodou bastante. Eu a senti
antes de Máira que deu ainda dois passos adiante antes de notar que algo estava
errado. Do outro lado da rua estreita vinham passos tão leves que pareciam não
tocar o chão, e veio também a voz mais insuportável que eu já ouvira na vida.
- Quanto tempo faz,
Carolina? Vinte anos? - ela disse com nojo.
- Vinte e quatro. Você
costumava ser mais generosa com esses intervalos - devolvi com a mesma
cortesia.
- Eu estou em missão,
e quem veio para este continente foi você. Vejo que você fez uma amizade. Pelo
menos agora você sabe o tipo de gente com o qual deve se misturar, não é?
- Catharina?! - Máira
estava surpresa - Você se conhecem?
- Infelizmente.
- Lembra do que eu te
contei no carro? Então, Catharina era a protetora dele.
Catharina parecia
brilhar no meio da noite usando somente um vestido de cetim azul claro e
sapatos baixos. Os cabelos dourados estavam mais curtos do que da última vez
que a tinha visto, mais parecidos com o corte que ela usava na época que nos
conhecemos. Eu não suportava encontrar Catharina por muitos motivos, mas o
principal era a culpa que ela me fazia sentir sobre o que aconteceu com ele.
Ela passou entre nós duas calada e só quando estava alguns passos de nós parou
e disse.
- Você ainda sente
falta dele? - sorriu para si mesma - Ótimo…ótimo.
E sumiu pela escuridão
que eu tinha vindo.
- Essa mulher é
insuportável! Você acredita que uns duzentos anos atrás ela e um desses padres
virgenzinhos quase me deixaram em encrenca e…Carolina, você está me ouvindo?
- Estou,
estou…desculpe. São lembranças demais, eu acho. Só isso. – meu coração ainda
disparava.
- Sabe do que você
precisa?
- Sei, de cappuccino
quente.
- Eu ia dizer “uma
vingança bem dolorosa em cima daquela puta angelical” mas tudo bem, fazemos do
seu jeito. Deve ter cappuccino lá dentro. Vamos.
A Confeitaria Colombo
já tinha seu nome na época, mas eu nem imaginava que ela se tornaria a mais
tradicional da cidade décadas depois. Entramos pelos fundos, e me deparei com
um salão enorme, mais largo do que longo, onde muitas mesas cobertas com
lençóis se enfileiravam bordeando um móvel de carvalho sobre o qual ficavam
mostruários de vidro adornados com metal cravejado nas laterais. Atrás deste
balcão uma escada em espiral dava acesso ao segundo andar que eu não conseguia
ver. O padrão do piso lembra muito a capa deste caderno onde deixo minhas
memórias, um desenho abstrato e contínuo bonito e intrigante, de certa forma me
fazia lembrar os cafés de rua franceses. No escuro, ela deixava de lado o
brilho dourado que tinha durante o dia e se vestia de prata. A luz da lua
invadia o ambiente, atravessando a grandes janelas e também claraboia alongada
à nossa direita tornando as mesas, que eram pretas, naquela noite prateadas,
bem como os talheres e prataria expostos no balcão onde Máira procurava o bule
e o moedor de grãos.
- Já adianto que meu
café não é grande coisa. Mas, enquanto eu preparo aqui, por que você não me
conta mais sobre esse seu problema com a Catharina? Quer dizer, ela já tentou
me mandar de volta pro Inferno umas três vezes e nem eu tenho tanta tensão
assim com ela. O que realmente houve?
Sentei numa das
cadeiras de prata e tirei minhas luvas passando os dedos pelo alto relevo do
metal que circundava a mesa.
- Ele era o protegido
dela. Carlos, o homem sobre o qual eu falei com você no carro.
- Você não faz o
mínimo tipo de que se envolveria com um padre, sabia? Engraçado, se me
perguntassem, eu diria que você teria comido o coraçãozinho apaixonado dele no
café da manhã. - disse enquanto derramava o café já moído na maquina.
- Padre ou não, eu me
envolvi. - meu polegar encontrou uma cruz entalhada no beiral da mesa e de
propósito o forcei sobre ela - E ele se envolveu comigo. Catharina parece levar
muito a sério o serviço dela. Me culpa por ter perdido seu protegido e está
convencida de que eu o tornei vulnerável e distraído. O pior de tudo é que eu
realmente talvez tenha culpa nisso.
- Eu discordo. O cara
quis ficar com você e largar toda aquela baboseira de igreja, o que na minha
opinião foi muito esperto da parte dele. Sei que deve ser difícil pra você
acreditar, mas nem tudo gira ao seu redor. A decisão foi dele.
- É legal da sua parte
tentar tirar esse peso de mim, mas eu estou convencida. Quando me transformei,
cheguei a pedir para Catharina me matar porque achava que não aguentaria isso.
Ela se negou, e agora parece fazer questão de abrir minha ferida todas as vezes
que nos encontramos.
- Aquela vadia é bem
cruel para alguém que se diz do lado dos bonzinhos, ne?
- É, é sim. - esbocei
um sorriso - Mas e você? Qual é a sua história?
- Bom – ela suspirou -
você sabe da guerra, imagino não é? Estrela da Manhã aprontou para cima do cara
lá de cima e acabou perdendo. Caiu, e com ele um terço do céu.
- Estrela da manhã? -
perguntei
- Lúcifer, Diabo,
Satan, Rei das Mentiras…ele tem vários nomes.
- Ah, sim. Desculpe,
não fomos apresentados formalmente. E você estava nessa luta?
- Claro que não! Está
me chamando de velha, vadia? Minha “mãe" estava. Triskelle, uma súcubo, a
“rainha das súcubos”, como gosta de ser chamada. Não é a coisa mais linda de se
ver: imagine uma serpente de ossos enorme e com rabo afiado como uma espada. Eu
nunca vi seu rosto, mas acredito que seja bem feio, ela arrancou o rosto e o
escalpo de um serafim muito poderoso chamado Daniel, um dos grandes pelo que eu
ouvi falar, durante a guerra e deste então o usa como máscara. Fora ele, ela
matou mais 99 serafins na luta e por isso, Lúcifer permitiu que ela criasse uma
linha inteira de demônios com a forma e habilidade que quisesse. E que bom que
ela não nos criou à sua imagem e semelhança, senão seduzir alguém ia ser bem
difícil. Aqui, seu cappuccino está pronto.
Eu sabia, mas quis
tentar. Lucas tinha me dito que nós não podíamos comer ou beber nada que não
fosse sangue. “Vai fazer suas entranhas queimarem como o Inferno”, ele disse.
Não me arriscaria a fazer isso na presença dele ou sozinha, mas Máira estava
ali. Eu confiava nela. A xícara, de porcelana e tão branca quanto eu,
pesou na minha mão. Máira, que puxava uma cadeira para sentar ao meu lado até
percebeu a hesitação que eu tive de leva-la aos lábios, mas apenas deu de
ombros.
- Eu nunca fui próxima
de uma vampira. Já percebeu como eles chamam vocês? “Upyr”, nossa eu acho
horrível esse nome. E, estou aprendendo muito sobre vocês hoje. Primeiro o
caixão que vocês usam para não dormir, e agora você tomando café. Eu poderia
jurar que vocês não podiam tomar nada além de sangue, acredita?
Pareceu descer sem
efeito. Percebi que ela falava a verdade, realmente o cappuccino estava bem
ruim, mas só sentir qualquer outro gosto que não fosse de sangue já elevou meu
ânimo. Infelizmente, por pouco tempo. Em questão de segundos eu senti um enjoo
tão forte e crescente que quase não pude responde-la.
- Não podemos. – minha
garganta parecia fechar-se sobre si mesma enquanto um refluxo era empurrado do
meu estômago apesar das minhas tentativas de contê-lo - Máira, eu vou precisar
da sua ajuda.
Ela não acreditou em
mim de primeira, mas deve ter visto a expressão no meu rosto e se convenceu de
que eu não estava brincando.
- Você sabia que não
podia e bebeu mesmo assim? Ai caralho! Você é maluca, garota? E agora, o que a
gente faz?
- Catharina me lembrou
que eu perdi muitas coisas naquela noite. – as palavras saíam com dificuldade e
eu percebi que estava suando - Algumas eu nunca vou poder ter de volta. Mas o
cappuccino, pelo menos o cappuccino, eu ainda posso provar. - senti uma pontada
no estômago aliada a uma cólica muito forte. - Preciso de sangue para desintoxicar.
Traz alguém para cá, qualquer pessoa. Rápido.
Máira me trouxe de
volta para a cadeira, foi quando eu percebi que tinha caído no chão com o mal
estar. E me deu um beliscão no braço.
- Nunca mais eu faço
café pra você! Maluca...eu já volto.
Pus os braços sobre a
mesa e deitei a cabeça sobre eles, fechei os olhos e pensei nele. Talvez não
fosse ajudar muito, mas eu sempre ouvi dizer que uma dor forte tem o poder de
anestesiar uma menor.
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