quinta-feira, 28 de abril de 2016

Ver038




Foi em uma noite na qual eu tinha saído com Vinicius para atender um chamado solicitado para conter um Demballa que havia sido invocado num ritual feito por jovens médiuns de umbanda na zona oeste da cidade. Cheguei ao nosso esconderijo na Lapa que hoje me serve de apartamento e Carol já estava me esperando.

Como sempre, meu impulso era pular em cima dela assim que a vi. Vez ou outra, eu a tomava pela cintura e trazia pra mim sem ao menos lembrar de tirar a batina, o que causava alguns ferimentos à ela e me deixava envergonhado depois. Mas em geral, Carol não se importava. 

Naquela noite, eu estava esperando exatamente isso, chegar e trair os juramentos da minha ordem em todos os cômodos da casa com ela, mas ela tinha este diário nas mãos. Já comentei que a leitura era complicada em alguns momentos, mas ela insistiu que eu o lesse todo e confesso que agora eu já estava tão entretido e curioso para saber mais do seu passado, que sentir as páginas acabando nos meus dedos me deixou um pouco frustrado. 

Passava das três da manhã, e eu sabia que logo Carol precisaria voltar para casa, mesmo assim segui a leitura: 

“Se eu não soubesse que sonhar era impossível para nós, acreditaria que os pensamentos nos quais eu mergulhava naquele momento eram devaneios de uma vida toda. A dor física estava num segundo plano, mas eu conseguia senti-la aumentando. Meus pulmões estavam sendo tocados pelo fogo que me consumia de dentro para fora e respirar se tornava cada vez mais complicado e doloroso. A mão invisível que se fechava em meu estômago não dava trégua e até mesmo meus olhos cerrados por trás das pálpebras doíam.

Mas eu já não estava mais lá. Eu estava em Paris, passeando pelos Jardins de Luxemburgo na primavera de mãos dadas com Carlos, ou sentada na beira do Sena com garradas de vinho enterradas na neve do inverno enquanto testava a validade dos seus votos numa noite estrelada.

Eu estava com ele e o mal estar físico não me incomodava.

Eu não sei quanto tempo fiquei nesse estado de envenenamento, mas me pareceu muito pouco. Máira chegou trazendo uma mulher baixinha gorducha de meia idade e me contou que precisou puxar meus cabelos para que eu despertasse, pois seus chamados eram em vão.

- Carolina? Carolina, você está me entendendo? Está acordada? - eu assenti com a cabeça ainda meio grogue - Ótimo. Então, foi o que eu consegui encontrar. Está tarde pra caralho e não tem muitas opções de mortais na rua. Essa mulher aqui estava saindo de um taxi quando eu a parei antes de entrar em casa. Tive que desmaia-la para agilizar o processo.

Meu olhar foi da a mulher rosada sentada na cadeira à minha frente para a expressão despreocupada de Máira de pé logo atrás dela. O segundo plano era a prataria da Colombo exposta numa grande estante de vidro atrás do balcão, atravessada pela fria luz da lua. Contemplei a cena por alguns momentos, até que percebi as bordas do quadro escurecendo. A cena aos meus olhos ia ficando cada vez menor, a escuridão ia tomando conta de tudo até eu ouvir um grito e sentir algo quente e pulsante em meus lábios.

Pouco a pouco, eu fui recobrando os sentidos. Minha cabeça funcionava melhor e passei a ter consciência de estar bebendo do pulso da mulher trazida por Máira. Meus olhos se abriram sem dor e vi que a toalha que cobria a mesa, bem como o meu vestido estavam sujos de vermelho. Notei também uma faca de serra sobre a mesa, suja com o mesmo sangue que eu bebia.

A ausência de Máira foi a terceira coisa a ser notada.

Lembrei que o sol já estava muito próximo de nascer e que Beatriz deveria estar com a garganta seca em casa me esperando. Só tomei da minha presa o que precisava para recobrar minimamente minhas faculdades físicas. Quando percebi que já podia ficar de pé, rasquei um pedaço da toalha que cobria a mesa e fiz um torniquete improvisado no pulso exposto da senhora que jazia desfalecida na cadeira. 

Eu precisava ir embora, já não havia mais muito tempo e eu não estava certa de que conseguiria usar a minha velocidade total para chegar em casa à tempo. Precisava encontrar Máira. Meu relógio já se aproximava das cinco da manhã, e toda a confeitaria agora já estava muito mais dourada do que quando eu tinha chegado. 

Mesmo ainda estando muito longe da plenitude das minhas capacidades psíquicas e com um bate-estaca dentro da cabeça não foi difícil sentir a presença de Máira. Ela nunca foi discreta. Apesar de perto, ela estava muito fraca e quando notei isso tentei acelerar pelo corredor de mesas até a escada em espiral. Quase fui ao chão depois de alguns passos, não fosse o balcão. Achei que seria mais inteligente se eu fosse um passo de cada vez até ela. Me parecia que ela estava no segundo andar do estabelecimento, que eu ainda não havia conhecido. Chamei seu nome algumas vezes, desconfiada dos meus sentidos mas mão tive resposta. Eu não estive muito tempo desacordada, mas temia que algo estivesse acontecido neste ínterim. 

O segundo andar da Confeitaria Colombo não difere muito do primeiro em dimensão, mas tem em seu centro um buraco no chão das mesmas medidas da claraboia que fica bem acima dele. Um grande número de mesas está posta ao redor do buraco e, nas paredes, grandes espelhos equidistantes me faziam ter a ideia de que o lugar era muito maior do que a realidade. Em um destes espelhos Máira estava refletida, também desacordada.

Me aproximei preocupada e puxei para trás os cabelos que cobriam seu rosto. No espelho atrás dela, parecia que os fios de cabelo levantavam sozinhos por ação de alguma força fantasmagórica. Ainda olhando o reflexo, vi a pele dela nos pontos em que minha mão se aproximava de seu rosto, passava a ter contornos de um amarelo purulento e doentio.

As preocupações aumentaram, a urgência também. Olhei ao redor, procurando alguém que poderia ter causado isso a ela, mas não havia ninguém exceto a mulher que eu havia deixado lá embaixo. Através do buraco no piso, eu podia vê-la. O pedaço de toalha atado ao seu pulso já estava totalmente escarlate. E só então eu entendi.

Não fui eu quem abriu o pulso daquela mulher, eu sequer estava consciente quando elas chegaram. A faca na mesa agora fazia sentido, foi ela. Máira sabia que eu não conseguiria fazer aquilo e apesar de toda a sua aversão a sangue só se afastou quando teve certeza de que eu estava me desintoxicando. Havia um bar neste segundo andar, e eu usei a pia dele para lavar o rosto, as mãos e o vestido. O sangue ainda estava fresco, não tive muito trabalho. Molhei uma toalha e também passei no rosto dela e nos cabelos. Os hematomas amarelados foram sumindo gradativamente, e seus lábios começaram a recobrar a cor mas ela ainda não respondia aos meus chamados.

De volta ao bar, peguei um a dose do único conhaque que havia lá, ajoelhei ao seu lado e a fiz beber. Pareceu dar resultado, ela recobrou a consciência pelo menos.

- Máira, você está bem?
- Não. Nenhum pouco. 

Sua voz soava distante e pastosa, levantei com o coração pulsando na boca. Não havia mais sangue nela, eu havia limpado tudo. Será que havia em mim? Busquei o espelho como primeiro instinto, mas ele não ajudou. Entendendo a minha preocupação, ela disse:

- Não, não é você. É o cheiro, aquela gorda está aberta e eu ainda posso sentir o cheiro enjoativo dela. Me tira daqui, preciso de ar puro.

Máira não tinha condições de ficar sobre os próprios pés, e eu não estava em minha melhor forma. Tive que sustentar seu peso, bem maior que o meu, sobre meus joelhos e coluna, isso nos fez demorar mais do que deveríamos para sair da confeitaria. Conforme nos aproximávamos da mulher ia ficando mais difícil. Caímos duas vezes no caminho até sair, numa delas Máira tombou sobre minha perna direita com tudo e me deixou mancando. Mas eu sempre tive boa tolerância à dor, talvez por causa do ballet, e não reclamei.

Quando finalmente conseguimos sair, sentamos sobre um banco de madeira ao lado da porta da confeitaria. À essa hora, já existiam poucos transeuntes pelas ruas do Centro. Máira inspirou forte e profundo algumas vezes e isso já foi suficiente para que ela recobrasse a cor morena e saudável que tinha. Depois de algum tempo ela sorriu, tão forte e contagiante que eu me juntei ao seu riso.

- Que noite! Você é perigosa, hein? Se eu fosse esperta, nunca sairia com você outra vez.
- É, os garotos costumam falar isso. - brinquei ignorando a dor que ainda permanecia em meus maxilares.
- Convencida. Olha, sei que você não tem muito tempo, então acho melhor você ir se adiantando com a miss bacon lá dentro. - ela tirou do decote novamente a chave do carro de Rogério - E também acho que isso aqui pode ajudar você chegar em casa à tempo.
- Claro que não, eu posso ir correndo! E você precisa muito mais do carro do que eu.
- Não precisa se fazer de forte, Carolina. Eu vi que deixei você mancando. - ela pôs a chave no meu decote, só que não ficou escondida como no ela. Pela minha blusa ser justa e meus seios menores, parecia que eu tinha um terceiro peito deformado ou algo assim - Pegue o carro, ponha a nossa amiga nele e vai pra casa. São quase seis horas, você precisa ir.
- Por que você não me deixa lá e depois vai pra casa?
- Tá brincando? Você tem uma entrega de uns 200kg e sangrando lá pra levar pra casa. Não, não. Prefiro deixar vocês à sós. Eu me viro. Sabe, apesar das suas tendências suicidas você até que não é insuportável, e a eternidade não vale nada se você não puder se divertir um pouco. – ponderou - Acho que vai ser muito mais fácil eu arrumar alguma coisa com mortais se eu tiver essa sua bunda do meu lado. Não que eu precise, claro. Mas se você não estiver ocupada, poderíamos sair hoje à noite de novo para dançar um pouco e tomar alguma coisa. EU tomar alguma coisa, você vai ficar de boca fechada.
- Claro, claro. Eu moro no casarão atrás do Palácio do Catete, você passa lá mais tarde? - eu disse sorrindo - E prometo que só bebo da garganta dos caras que a gente enganar.
- Ótimo - ela disse se levantando - Nossa, que droga, não tenho mais dinheiro como será que eu vou para casa agora?!

Essa última frase foi dita com o volume um pouco mais alto que o normal, o suficiente para um rapaz que passava entregando os jornais do dia ouvir e se aproximar. Jonas, se apresentou e disse que se ela o acompanhasse até o final da rua, ele poderia lhe dar uma carona na sua scouter. Máira aceitou prontamente, me deu um beijo na bochecha e disse baixinho ao meu ouvido:

- Viu? Eu disse que me virava. Te vejo mais tarde.

Observei enquanto ela seguia de braços dados com Jonas e notei que, pela primeira vez em muitos anos, eu tinha feito uma amiga de verdade. Ainda mancando muito, caminhei até a minha vítima esquecida e consegui, aos poucos, leva-la até o carro.

Eu não pegava num volante há muito tempo, mas é como andar de bicicleta. Numa bicicleta de quatro rodas e com um motor. O carro não era conversível, mas ainda assim eu pisei fundo porque não queria confiar num de alumínio para me proteger do sol. Enquanto dirigia, pensei que seria muito bom ter o meu próprio carro. Ajudaria não só nessas situações emergenciais, mas também levantaria muito menos suspeitas.

Em menos de vinte minutos eu já estava em casa. Já me sentia mais recuperada do incidente e agora até consegui levar minha presa sobre os ombros. Bati a porta de madeira e vi o primeiro andar vazio, imaginei que Lucas e Beatriz já estivessem em seus caixões pela hora.

Eu estava errada. 

Subi as escadas e quando passei pela sala de estar, uma voz controlada e cortante me convidou a entrar. O ambiente estava um pouco diferente, mais sombrio e percebi também que havia alguma mobília nova no cômodo.

- Gostou das cadeiras? Comprei alguns móveis para o seu quarto também. - Lucas falou monotônico - Achei que a presença permanente da nossa nova companheira demandaria novos ares para a casa.
- É muito bonito sim. - toquei no veludo vermelho que envolva o assento, o encosto e os braços da cadeira de madeira adornada antes de pousar a mulher que trazia nela. – Onde está Beatriz? Ela deve estar com sede.
- Já tomei conta disso também. - ênfase no “também” - Sabe por quê, Carolina? Porque eu me preocupo com este clã. Porque enquanto você estava lá fora se divertindo sei lá com o que, eu estava aqui me virando para arrumar as merdas que você fez.
- Do que você está falando?

Lucas não alterou o volume da voz, mas Beatriz parecia estar começando a aprender a sentir as coisas. Ouvi seus passos saindo do quarto que havia escolhido como seu e parando no umbral da porta da sala. Mesmo atrás de mim eu podia sentir, ela estava com medo.

- Eu estou falando, Carolina, que você pode ter estragado a melhor chance que nós já tivemos de fazer algo realmente relevante. Sua irresponsabilidade simplesmente atrapalhou uma ideia que eu estou amadurecendo há um século!
- A culpa não é dela. Fui eu quem pediu para ela trazer algo para eu comer…beber, quero dizer. - Mentiu Beatriz, e eu pensei que ao contrário do senso comum, mentir pode definir um traço enorme de caráter dependendo da ocasião.
- Você, por favor fique quieta, novata. Não lembro ter solicitado sua opinião nesta conversa.
- Lucas, você ainda não respondeu o que foi de tão importante que eu estraguei.
- Não importa mais, importa? Eu já desmarquei mesmo. Agora vai saber quando é que ele vai resolver descer aqui de novo para nos honrar com a sua ilustríssima presença. - ele pingava cinismo.
- Tudo bem, fique aí com as suas desilusões secretas. Eu não me importo. Beatriz, desculpa a demora, fiquei um pouco…ocupada essa noite. Mas aqui está o lanche que eu te prometi. Acabei começando sem você, espero que não se importe, mas ainda tem muita coisa, fique à vontade.

Ela avançou sobre o pescoço da mulher ignorando seu pulso aberto. Me caminhei de volta para o corredor que daria no meu quarto, estava exausta demais para discutir e Lucas parecia estar num dia insuportável. Mas ele me interrompeu outra vez.

- Você está mancando?
- Talvez.

Alguma coisa mudou na sua expressão de pedra por um breve momento e, se eu não o conhecesse bem, diria que ele até estava preocupado comigo. Mas na verdade, Lucas era o tipo de homem que odiava perder o que julgava ser dele.

- Quem vez isso?
- Eu conheci alguém.

O silencio que se fez foi quebrado pelo despertar da mulher gorda marcado por um grito de dor lancinante. Antes mesmo que Beatriz parasse seu frenesi, Lucas já estava em cima da mortal e, com uma só mão, descontou toda raiva que não demonstrava estar sentindo no crânio dela. Ele se estourou num leve fechar de dedos dele, explodindo miolos e sangue em cima de Beatriz. Ele não se sujou.

Não faço ideia de como se deu a transformação de Lucas, mas a frieza característica era tão intrínseca que eu imagino ser um traço que ele carrega desde a sua vida mortal. Beatriz parecia abalada com a visão da coisa toda, mas não atreveu a se manifestar, tremendo, apenas e afastou do corpo mutilado o máximo que pôde. Não consigo imaginar como ela conseguiu amadurecer numa vampira tão estável vendo tanta coisa durante os primeiros dias de sua transformação. Beatriz sempre foi muito forte.

- Quem foi que você conheceu? - Lucas estava se segurando.
- Não é só você que tem mistérios, não é?
- Carolina, eu exijo que você me diga o que fez esta noite! - disse o homem vertendo seus olhos num vermelho tão intenso quanto os meus cabelos. A voz engrossando pela primeira vez desde que o conheci.
- Escuta aqui! Eu não sei por quanto tempo você alimenta essa ilusão de harém que criou aqui. Você faz ideia do quanto isso é patético? Você é um pobre coitado que mendiga companhia. Transforma mulheres para não se ver sozinho por toda a eternidade, porque ninguém suportaria passar ela ao seu lado. Não sei quantas delas foram submissas a você, mas vou te contar que isso não vai funcionar comigo. Levantar a voz não vai ajudar, eu não vou falar porra nenhuma do que eu fiz essa noite pelo simples fato de que eu não quero.

Eu tinha conseguido. Desestabilizei o infeliz de um jeito que ele não conseguia mais se segurar. Ele fechou os punhos e percebi que ele ia me atacar. Por uma fração de segundo pensei em Manoela, no que ele fez com ela, e tive medo pela primeira vez naquela conversa. Nunca lutei com Lucas, mas acredito que por toda a experiência, eu não seria páreo para ele num combate corporal. Fui salva pelo gongo.

Por um grito, na verdade.

- PAREM! Agora, parem com isso. O que vocês querem fazer? Lutar até cansarem? Eu acabei de me tornar isso que somos, e já sei o tamanho do estrago que podemos fazer. Será que ninguém aqui é inteligente o bastante para saber que uma briga agora, por motivo nenhum, seria um contrassenso? Lucas, você mesmo passou horas me dando um sermão do quanto a discrição e invisibilidade era importante para a nossa…nossa raça, e agora está aí agindo como um adolescente descompensado que acredita que vai resolver tudo no soco. Pelo amor de Deus, você estourou os miolos de uma mulher na nossa sala! Se vocês querem quebrar a merda da casa inteira, ótimo! Só me deem tempo de fugir antes porque eu não quero que nosso vizinhos falem muito de mim. 

Como eu disse, morávamos num casarão atrás do Palácio do Catete, e nessa época, ali era a residência fixa do presidente da república. Beatriz estava certa, um escândalo ali chamaria tanta atenção que não teríamos mais problemas se resolvêssemos brigar na frente da Candelária.

Lucas respirou fundo e contemplou Beatriz em silêncio. Lucas Malta era um ser perigoso de muitas maneiras, soube por Carlos que ele é dos demônios mais procurados pela Ordem. Mas é a sua calma fria e extremamente controlada que sempre me fez teme-lo. Lucas era capaz de desmembrar um mortal vivo, e enunciar parte por parte do corpo que arrancava com a serenidade de quem lista os itens que precisam ser comprados no mercado. Eu já o vi fazer isso. Muitas vezes ele fez parecer que gostava de mim, ou no mínimo que sentia atração por mim, mas eu nunca me iludi: Lucas Malta nunca sentiu nada por ninguém. Ele era incapaz de sentir uma ínfima partícula de empatia.

Isso nunca me impediu de discutir com ele ao menor sinal de uma atitude que me incomodasse, entretanto ali, naquela sala, eu temi por Beatriz. Passo ante passo ele se aproximou dela que parecia aos poucos compreender o peso do discurso de acabara de fazer, mas era incapaz de se mover. Lucas parou bem em frente a ela e deu um sorriso mudo.

- Bem pontuado. Muito bem pontuado, Beatriz. - eu comecei a relaxar após ouvir estas palavras, no entanto eu vi seu próximo movimento e inevitavelmente veio à minha cabeça a lembrança do destino que Manoela tivera. Lucas tomou-a pelo pescoço e a levantou com uma só mão, batendo fortemente seu corpo contra a parede. Apesar da atitude, sua voz seguia inabalada quando voltou a falar.

- No entanto, acredito que por ser nova nisso você ainda não compreenda a hierarquia das coisas. Carolina pode ter te transformado, mas eu a transformei. Eu sou o líder deste clã e você nunca mais deveria levantar a voz para mim, criança.

Prendi a respiração nos breves segundos nos quais ele ainda a manteve no ar, mas o barulho oco que se fez quando ele a soltou e ela tombou sem forças em estado de nervos sobre o nosso assoalho me fez relaxar. Eu poderia ver o medo nos olhos dela, e me culpo até hoje por não ter tido uma reação mais imediata naquele dia.

- Eu estou cansado de vocês. Das duas. Acredito que já tenham frustrado meus planos o bastante por essa noite, por isso vou descansar um pouco no meu caixão até o sol morrer. Ficaria grato se não fosse perturbado e, por favor - indicou a mulher sem cabeça na poltrona nova - limpem essa bagunça, sim?

Apesar do que disse, Lucas se deteve antes de ir de fato para o seu quarto. Eu já havia corrido para abraçar Beatriz agora, que se debulhava em lágrimas pensando que ele já não estava mais lá. E voz dele me incomodou como uma agulha sendo espetada por baixo da unha quando disse:

- No entanto, Beatriz percebeu algo que nem eu nem você atentamos, Carolina. Apesar da localização geográfica de nossa morada ser favorável, a social não é. Estamos no debaixo dos holofotes, quaisquer mínimos problemas que passarmos aqui poderão facilmente ser percebidos pelos mortais porque todos os olhos estão voltados para o palácio aqui em frente. Vou me dedicar, a partir de amanha, a encontrar um lugar mais discreto para morarmos.

E se foi.

Depois de acalmar minha nova irmã, eu e ela limpamos a poltrona de feltro e nos livramos do corpo. A levei para o quarto que ela havia escolhido e tive uma leve surpresa ao vê-lo mobiliado. Lá, eu contei a ela da minha noite e justifiquei a minha demora. Falei de Máira, e que me encontraria com ela ainda naquela mesma noite. O caixão que ela havia escolhido era verde, e tinha o mesmo ideograma oriental decorando-o em intervalos iguais.

- O que quer dizer? O símbolo do seu caixão.
- Meu avô tinha uma historia que contava para mim e para o meus irmãos. Você sabe, muita gente acha que se combate o medo que você tenha de qualquer coisa com força. Mas isso não é realmente verdade. Ser forte não necessariamente te faz ser destemido. Todos nós temos medo de algo, interdependente do quão forte formos. E você sabe o que meu avô dizia que é a melhor arma contra o medo, Carolina?
- Não.
- A perseverança. Você não tem que ser uma pessoa sem medo, mas você tem que ter a perseverança para ser maior do que qualquer medo que possa te acometer. É isso que significam estes símbolos no meu caixão.

Eu sorri e pensei no quão perseverante eu tinha sido todos estes anos. Fechei a tampa esverdeada sobre ela e caminhei até a porta dos seus aposentos. Parei quando a ouvi novamente.”

- Você acha que eu poderia acompanhar você e a sua amiga nessa saída de mais tarde?
- Claro, Bia. Ela não se incomodaria, e eu ia adorar.

Me despedi e fui descansar da madrugada movimentada que tinha tido sem nem imaginar que a conversa que eu teria aquela noite seria determinante para o que aconteceria comigo doravante.”


quinta-feira, 7 de abril de 2016

Ver037



“Eu não gostei de Máira naquele primeiro momento. Ela me pareceu cheia de si e bastante pedante, coisas que eu nunca suportei. Antes era só uma caçada normal à procura de alguma vítima ordinária para levar para casa, entretanto agora as coisas haviam se tornado muito mais interessantes. Eu sempre gostei de desafios, e não era preciso ser muito atenta à detalhes para perceber que Máira não era acostumada a eles. É curioso pensar em como a nossa amizade tão grande nasceu de uma desavença dessas.

Na época eu ainda não sabia que as coisas eram tão complexas assim. No âmbito sobrenatural, eu digo. Acreditava que nós, vampiros, éramos a única parcela infernal do mundo. Foi isso que Lucas me contou e foi no que eu acreditei por muito tempo. É verdade que já tinha sentido cheiros e presenças diferentes eventualmente, algo que não parecia humano ou pelo menos humano de modo não-convencional, mas isso sempre passava rápido e eu sentia como se tivesse sido só uma impressão. Fui atingida com a energia totalmente diferenciada de Máira desde que ela pôs os pés ali. Quando Rogério se sentou na mesa próxima à minha, vi que ele parecia não pertencer àquele ambiente mas Máira parecia não pertencer à este plano.

Ela se pôs ao lado direito do homem que agora parecia ter sido levado ao paraíso. Se uma mulher já consegue ter um homem nas mãos, imagine duas. Rogério afrouxou a gravata e articulava com Máira, disfarçando a empolgação, sobre coisas triviais deliberadamente preparando terreno para chegar ao ponto que realmente procurava. Deixei escapar um riso eleve quando ele finalmente fez a proposta à ela, a previsibilidade masculina chega a ser cômica às vezes. Máira, no entanto, parecia bastante incomodada; não pela ideia do insistente Rogério, mas pela minha presença ali. E eu estava adorando isso.

Voltado para ela, explicando novamente como eu havia aparecido no encontro dos dois, Rogério estava totalmente de costas para mim. Máira fingia estar ouvindo, mas seus olhos focavam nos meus. Respondi com meu melhor sorriso falso-inocente e dei de ombros. Ela me olhou mais furiosa do que nunca.

- Eu entendo se estiver atrapalhando algo entre vocês dois. Meu plano esta noite era só tomar algumas taças de vinho para esquecer dos meus problemas e logo voltar para casa. Vou voltar para a minha mesa e esquecer deste incidente na sua camisa Rogério. - toquei o alto de suas costas, no ponto onde a mancha se iniciou, e fui acompanhando sua extensão até mais embaixo.
- Não! - o homem levantou quase que com um pulo – De modo algum, minha querida. Veja, Máira entende, ela só não está muito à vontade em mudarmos nossos planos, mas acredito que isso seja facilmente remediado. Tenho uma ideia para quebrar o gelo e aproximar vocês duas, meninas. Eu tenho outra camisa no carro, que inclusive combina melhor com meu terno que essa aqui. No fim você acabou me fazendo um favor, Carolina. Eu vou até lá trocar e, enquanto isso, por que vocês não aproveitam o tempo para se conhecerem melhor? Acho que seria ótimo.

Eu sequer estava tentando e o pobre coitado já estava comendo na minha mão. Fez-se alguns segundos de silêncio depois que ele bateu a porta do bordel e eu facilmente adivinhei o que aconteceria em seguida. Fingi procurar alguma coisa na minha bolsa distraída enquanto percebia Máira me avaliando de cima abaixo. Como se tirasse uma máscara, seu tom de voz e suas expressões mudaram quando ela falou:

- Ok, o que é que você esta querendo aqui?
- Pardon?
- Para de encenação, garota. O idiota já foi embora, podemos falar abertamente agora. EU o vi primeiro, já encontrei alguns da sua laia, vocês não respeitam isso mas fique sabendo que eu não estou disposta a perder esse aí.
- Minha…laia? 
- Eu vi os seus dentes quando você sorriu. Não sei como os mortais burros não percebem isso em vocês, é tão obvio! Acho que eles estão ocupados demais ficando de queixo caído, mas eu vou te falar que estou há três dias esperando para esse aí, pode ir buscando outra coisa pra você.

O sentimento de perigo eminente tomou conta de mim. Primeiro, pensei que ela fosse da Ordem e que estivesse ali para me caçar, mas não fazia sentido, ou os métodos deles no Brasil eram bem diferentes dos europeus…a indumentária também. Instintivamente levantei da mesa, perdendo o chão e a pose, eu nunca havia sido descoberta antes. Máira percebeu meu descompasso e também pareceu intrigada.

- Serio? Assim tão fácil? Qual é a pegadinha,? Te falei que já conheci outros de vocês e não são de desistir de uma presa assim.
- Quem é você? Você está sozinha aqui? - lembro de ter dado uma rápida olhada nas mesas ao nosso redor
- Não. Estou com aquele panaca que acha que vai se dar bem com nós duas hoje. Por que você está paranoica?
- E…o que você quer com ele?
- O mesmo que você: me aproveitar de toda a vitalidade dele e depois mata-lo. Só que sem toda aquela sujeira toda de sangue que o seu pessoal faz.
- Pss! Fale baixo - sussurrei - quer que nos descubram?
- Pelo amor de Lúcifer! Esses idiotas? Eles estão mais preocupados em ver a bunda daquela ali - apontou para o palco - do que nos ouvir. Você é nova nisso?
- Eu estou transformada há um século... - disse um tanto embaraçada. - Mas você…calma, eu estou um pouco perdida...você não é uma upyr também?

Máira gargalhou.

- Eu? Garota, eu sou o contrário de vocês! Sabe aqueles problemas todos que vocês tem com luz, crucifixo, alho, blá blá blá? Acontece algo semelhante comigo se eu vir sangue. Acho que o único ponto em comum aqui é que eu e você seduzimos os mortais antes de acabarmos com eles.
- Existem…outros?
- Típico de vocês acharem que são tão especiais. Sim floquinho de neve, tem demônios para caralho espalhados aqui nesse plano e mais de nós lá embaixo, mas nem se preocupe em descer lá, a diversão está toda aqui em cima. Engraçado, em cem anos acho que você já deveria saber disso.
- É…acho que eu tenho vivido um pouco reclusa. – sorri sem jeito.
- Sabe de uma coisa? Acho que aquele palhaço do Rogério fez algo de útil na vida pela primeira vez. – pensou um pouco e disse - Por que não esperamos ele voltar e damos o que ele tanto quer? Eu tive uma ideia.
- Sou toda ouvidos. 

Rogério voltou e não conseguiu conter a felicidade por eu e Mária “termos nos dado tão bem”. Rapidamente pediu que a garçonete fechasse a conta, mas não sem antes perguntar se eu não queria uma garrafa daquele Bordeaux para viagem, já que eu mal tinha tocado minha taça. Disse que não era necessário, mas ele comprou assim mesmo. De braços dados à nos duas, nos conduziu até o seu carro e disse que daríamos um passeio. O Fleetmaster era caro e novo, mas pintado num verde de muito mau gosto. Imaginei que ele fosse pedir um quarto ali mesmo no estabelecimento onde estávamos, mas Rogério nos levou até um lugar mais chique, em frente à praia de Botafogo. Depois eu soube que o bordel era ideia da Máira, ela sempre marcava com as vítimas lá pois o lugar não levantava muitas suspeitas.

O recepcionista o chamou pelo nome quando lhe entregou as chaves do nosso quarto, o que poderia complicar um pouco a situação. O quarto 248 seria nosso por seis horas e o plano era bem simples: levaríamos o Rogério para cama, onde Máira o prenderia com o par de algemas que tinha levado em sua bolsa. Ela me revelou ser uma Aaba, um tipo de infernal que se alimentava dos desejos luxuriosos de mortais. Quanto mais ela seduzia, mais envolvia a vítima e fazia que ele tivesse sentimentos mundanos; mais se satisfazia. Acontece que, ao estar satisfeita, Máira era obrigada a mostrar sua verdadeira forma e consequentemente a matar o pobre coitado. Ou enlouquece-lo, o que ela me disse fazer quando estava entediada também. Uma vez nossa vítima impossibilitada de fugir, ela iria primeiro enquanto minha tarefa seria cuidar para que o homem não gritasse durante o processo, quando estivesse saciada, seria a minha vez, ela sairia do quarto e eu teria Rogério totalmente para mim. Eu estava excitada, mal podia esperar para ver a forma real de Máira. Eu havia sido transformada, mas ela havia nascido no próprio Inferno. Havia tanta coisa que ela podia me revelar, tantas perguntas que eu queria fazer.

Começamos, Rogério ofereceu certa resistência quando Máira sugeriu as algemas, mas aceitou sem pestanejar quando eu disse que era um desejo antigo. Eu mesma prendi seus braços entre as grades de metal da cama e quando tive certeza de que ele não se soltaria, acenei para que minha nova amiga seguir com o plano. Ela se despiu, eu fiz o mesmo. Na época seus cabelos lisos eram castanhos e batiam na altura dos ombros num corte reto e sem muitas curvas, mas não fazia falta, todas as curvas que ela precisava estavam no seu corpo. Nua ela chamava ainda mais atenção que vestida, era alta, mas sua presença era imposta por muito mais que só altura. Seus seios eram o que mais chamava atenção à primeira vista, sem dúvidas grandes. Mas se fosse visto com calma, seu corpo tinha formatos e volumes específicos nos lugares certos. Sem exageros, ela era toda torneada. Tinha o corpo de uma pin-up da época. Só que, apesar de tudo isso, era a expressão no seu rosto, com seus olhos grandes e redondos, além de um sorriso confiante que dava à Máira ares de dona do lugar.

Percebendo que eu a observava, ela me olhou de volta. Sempre fomos diferentes fisicamente em todos os aspectos, e acredito que foi isso que naquela noite despertou esse interesse mútuo entre nós duas. Não saberia dizer se foi ela quem se aproximou primeiro ou eu. O primeiro registro que tenho é de estarmos de frente uma para outra, bem de perto. Lembro também da forma que seus lábios se abriram num sorriso torto quando percebeu a surpresa que tive ao sentir suas mãos me abraçando por trás. Abraçando e apertando, as duas mão apertavam bem forte a minha bunda. Não me importei e deixei que ela me trouxesse para si. Meu rosto ficou enterrado entre aqueles seios tão maiores que os meus e, com vontade eu me dediquei a eles dois enquanto era estimulada por baixo pelos dedos dela. Apesar de ser menor, consegui empurra-la até a beirada da cama, de pernas abertas, e agora era eu quem usava os dedos enquanto ela passeava com as mãos pela minha cintura e subia até os meus peitos. Eu me arrepiei, mas não parei. Minha pele se marcou fácil com os dedos dela cada vez mais fortes conforme eu aumentava a frequência e força dos meus movimentos. Quando ela relaxou, levei os dedos da mão esquerda à boca, ao tira-los, ela pegou meu pulso e mordeu com força.

- Essa marca aí é pra você lembrar de quem mordeu você, vampira - ela levantou e falou ao meu ouvido - Vamos ao prato principal?

Durante todo aquele momento eu havia esquecido totalmente do homem que prendi à cama. Enquanto Máira o despia, e negava todos os pedidos para que ele fosse solto, eu percebi que seu pau já estava latejando depois de tudo aquilo. Apesar de ser bonito para um homem de meia-idade, pensei que Rogério nunca deveria ter tido uma experiência como esta. 

Ela subiu de quatro na cama, e foi engatinhando até ficar sobre o corpo dele, sustentada sobre seus braços e pernas à uma altura onde ele não conseguia tocar nela, por mais que tentasse. Os grandes seios chegavam a milímetros de onde sua língua esticada não conseguia alcançar; suas unhas passavam por suas pernas, mas nunca no meio delas e quando ela lambia o rosto do homem eu sabia que o que ela estava provando na verdade era seu desejo. Ele se contorcia de prazer e ela estava chegando cada vez mais ao seu ápice. Sentada ao lado deles, eu tapava a boca de Rogério com a minha mão e esporadicamente arranhava seu pescoço com o cuidado de não abrir nenhum corte exposto. Ainda.

De súbito as luzes começaram a falhar, o homem não percebeu e nem poderia em seu estado, mas eu soube que estava acontecendo. Mantive sua boca fechada, agora com mais força e senti ele reclamando da dor com sons abafados. Máira estava sorrindo e, no meio deste sorriso, sua voz começou a entrar num tipo de metamorfose sinistra onde os sons iam se entrecortando. Arqueou o corpo para trás quando chifres começaram a brotar das laterais de sua testa, curvando-se para cima. Seu corpo tremia e gradativamente eu percebi suas unhas crescendo nos pés e nas mãos; até mesmo suas feições, principalmente os olhos, agora estavam diferentes. Uma sombra se alongava sobre os seus olhos e suas sobrancelhas. Suas íris apresentavam um laranja muito vivo no lugar do castanho escuro. Todo esse laranja se focou nos olhos azuis do homem atado a cama que parecia não acreditar no que via. Ele olhava para mim em busca de ajuda e eu gostava de ver o seu desespero.

No último estágio da transformação, Maíra jogou todo o seu corpo para frente e eu vi suas omoplatas rachando com um barulho seco. Pouco à pouco asas de dragão iam emergindo da sua pele com a facilidade de uma borboleta que rasga seu casulo, mas sem nenhum sangue escorrer. E da mesma forma, um rabo de animal despontou do seu quadril e se enrolou no pé direito de Rogério. Pude ouvir nitidamente quando o rabo quebrou seu pé num estalo. Ele teria gritado por causa da dor, mas eu não permiti.

Máira levantou de cima do homem, ficou de pé ao lado da cama e deu uma voltinha se exibindo. 

- E então? O que acha.

Ela ainda tinha o corpo que tinha como mulher, mas toda aquela mudança a fazia uma criatura única, pelo menos aos meus olhos. Acho que a reação de Rogério foi plausível, para mortais ela devia realmente parecer um monstro, mas para mim era admirável. Vendo que eu não responderia, ela voltou a atenção para a nossa vítima que derrubava lágrimas mudas à essa altura.

- Aaah, coitadinho. Cuidei para que ele não fugisse, mesmo se as algemas falharem - apontou para o pé dobrado num angulo errado - Acha que você consegue dar conta dele sozinha? Ótimo. Te contei que não suporto ver toda essa sujeira né? Eu vou te esperar lá fora, mas leve o tempo que precisar. 

A luz começou a voltar no quarto e eu vi seus traços demoníacos recuando enquanto ela juntava as roupas e se vestia. 

- Ah! Vê se se lava depois. Vou dar um jeito no recepcionista enquanto você se diverte. Te encontro lá embaixo.

Esperei ela fechar a porta e olhei para a minha presa daquela noite. Eu não precisava me alimentar, estava cheia. Mas estava tão animada que lembro daquele homem até hoje como uma das minhas refeições mais satisfatórias. Não foi uma mordida, nem duas. Eu o mordi em todos os lugares que consegui pensar e só bem depois lembrei que eu só saí de casa para conseguir algo que saciasse a sede de Beatriz, agora eu teria que levar outra vítima para ela. 

Durante o banho, refleti sobre a montanha-russa que havia sido aquela noite. O relógio ainda não marcava quatro da manhã e eu já havia tido mais agitação do que poderia lembrar ter em anos.

Sempre tive uma facilidade grande para ler pessoas, mesmo antes de ser transformada. Para mim é simples perceber uma atitude dissimulada, uma mentira, ou alguma intenção espúria de outrem muito antes que notassem que eu já sabia, o que tornava algumas situações bastante interessantes. Lembro que Carlos costumava dizer em muitas ocasiões que eu conseguia ler a mente dele, e realmente isso parecia ser verdade. Mas nesse caso não era por alguma intenção obscura que ele tivesse para comigo ou algo do tipo. Carlos era uma dessas raras pessoas com o coração bom, realmente bom. Até ingênuo muitas vezes, eu diria, e a bondade em sua essência não tem manchas. Ela é transparente como vidro.

Máira definitivamente não era boa, isso eu conseguia afirmar sem maiores problemas também. Só que, com surpresa, me dei conta de que confiava nela, o que poderia ser muito arriscado. Depois de me vestir, senti em mim um impulso enorme de sair pela varanda do hotel e não ver Máira nunca mais. Esse é o problema em ser boa percebendo a falsidade nos outros: você custa a acreditar em alguém realmente confiável quando aparece. Refleti um pouco mais e senti os dentes que ela deixou no meu pulso minutos antes. Ela sabia tudo de mim, da minha espécie pelo menos. Nossos pontos fracos, modo de agir… e ainda assim ofereceu parceria ao invés de usar tudo isso contra mim. Ainda me contou a sua fraqueza sem nem pensar em alguma atitude minha! 

Resolvi, então, que daria uma chance. Máira não era transparente mas sua nebulosidade não me incomodava. Desci e a encontrei no lobby do hotel misturada à uma pequena fila que começava a se formar no balcão de recepção, que estava vazio. Dois homens disputavam a atenção dela que fingia uma indignação bastante caricata pela ausência do funcionário. Ao me ver ao pé da escada, piscou pra mim e veio em minha direção:

- Carolina, você demorou demais no banheiro! Acredita que o recepcionista do hotel ainda não me atendeu? - piscou discretamente para mim - Acho melhor procurarmos vaga em outro lugar.

Fui incapaz de não rir com aquela atuação ruim e tive que ser dura com os dois homens que insistam que não fossemos embora para que saíssem do nosso pé. Máira parecia estar muito animada apesar do avanço da hora, o que me ajudou ainda mais com a simpatia que já sentia por ela.

- Você está com sono?
- Sono? Não, eu não durmo. –  eu respondi sorrindo.
- Aquela historia toda dos caixões então é mentira.
- Não, temos caixões sim. Mas servem mais para proteção da luz durante o dia ou viagens longas do que para dormir.
- Você são estranhos. - e fez uma careta - De qualquer forma, se você não dorme então não está com sono agora, e se não está com sono agora talvez tope ir comigo até a minha confeitaria favorita. Nada melhor que um doce de sobremesa depois de um banquete, não acha? Não se preocupe com a hora - ela acrescentou ao me ver checando meu relógio - eu conheço o segurança e ele sempre “esquece" a porta dos fundos aberta para mim.
- Bom, não é isso…é que logo logo vai nascer o sol...
- Não se preocupe Cinderela, eu te levo para casa na hora. Confia em mim?
- Confio. – e confiava.
- Ótimo, porque você não teria muita opção mesmo já que eu te sequestraria. – brincou - Agora vamos pensar, estamos em Botafogo e precisamos chegar rápido ao Centro já que a senhorita tem hora pra voltar pra casa. Como faremos? - outra vez a atuação dissimulada - JÁ SEI! Por que não pegamos o carro daquele nosso amigo do hotel? Acho que ele não vai precisar mais, não é mesmo? Se pelo menos tivéssemos pensado nisso antes… 

Máira tirou uma chave prateada do meio do decote e começou a roda-la em seu indicador. De novo, não pude segurar o riso e pensar no quanto aquela noite estava sendo agradável. Entramos no carro de cor estranha de Rogério e Máira foi dirigindo pela orla de Botafogo até o Centro. No caminho contei para ela a história de como fui transformada, todo o caso com Manoela e do recente evento no qual eu transformei Beatriz e ela estava em casa me esperando. Contei até mesmo do meu romance com Carlos e notei que aquela foi a primeira vez desde que eu havia conversado com alguém sobre isso desde o ocorrido. Era bom me abrir um pouco, eu já não fazia isso há muito tempo.

Paramos o carro na Rua da Carioca e seguimos à pé até a confeitaria, pois Máira não queria chamar atenção. Caminhamos conversando distraídas quando de repente eu senti outra presença daquele tipo diferenciado. Só que me incomodou bastante. Eu a senti antes de Máira que deu ainda dois passos adiante antes de notar que algo estava errado. Do outro lado da rua estreita vinham passos tão leves que pareciam não tocar o chão, e veio também a voz mais insuportável que eu já ouvira na vida.

- Quanto tempo faz, Carolina? Vinte anos? - ela disse com nojo.
- Vinte e quatro. Você costumava ser mais generosa com esses intervalos - devolvi com a mesma cortesia.
- Eu estou em missão, e quem veio para este continente foi você. Vejo que você fez uma amizade. Pelo menos agora você sabe o tipo de gente com o qual deve se misturar, não é?
- Catharina?! - Máira estava surpresa - Você se conhecem?
- Infelizmente.
- Lembra do que eu te contei no carro? Então, Catharina era a protetora dele.

Catharina parecia brilhar no meio da noite usando somente um vestido de cetim azul claro e sapatos baixos. Os cabelos dourados estavam mais curtos do que da última vez que a tinha visto, mais parecidos com o corte que ela usava na época que nos conhecemos. Eu não suportava encontrar Catharina por muitos motivos, mas o principal era a culpa que ela me fazia sentir sobre o que aconteceu com ele. Ela passou entre nós duas calada e só quando estava alguns passos de nós parou e disse.

- Você ainda sente falta dele? - sorriu para si mesma - Ótimo…ótimo.

E sumiu pela escuridão que eu tinha vindo.

- Essa mulher é insuportável! Você acredita que uns duzentos anos atrás ela e um desses padres virgenzinhos quase me deixaram em encrenca e…Carolina, você está me ouvindo?
- Estou, estou…desculpe. São lembranças demais, eu acho. Só isso. – meu coração ainda disparava.
- Sabe do que você precisa?
- Sei, de cappuccino quente.
- Eu ia dizer “uma vingança bem dolorosa em cima daquela puta angelical” mas tudo bem, fazemos do seu jeito. Deve ter cappuccino lá dentro. Vamos.

A Confeitaria Colombo já tinha seu nome na época, mas eu nem imaginava que ela se tornaria a mais tradicional da cidade décadas depois. Entramos pelos fundos, e me deparei com um salão enorme, mais largo do que longo, onde muitas mesas cobertas com lençóis se enfileiravam bordeando um móvel de carvalho sobre o qual ficavam mostruários de vidro adornados com metal cravejado nas laterais. Atrás deste balcão uma escada em espiral dava acesso ao segundo andar que eu não conseguia ver. O padrão do piso lembra muito a capa deste caderno onde deixo minhas memórias, um desenho abstrato e contínuo bonito e intrigante, de certa forma me fazia lembrar os cafés de rua franceses. No escuro, ela deixava de lado o brilho dourado que tinha durante o dia e se vestia de prata. A luz da lua invadia o ambiente, atravessando a grandes janelas e também claraboia alongada à nossa direita tornando as mesas, que eram pretas, naquela noite prateadas, bem como os talheres e prataria expostos no balcão onde Máira procurava o bule e o moedor de grãos.

- Já adianto que meu café não é grande coisa. Mas, enquanto eu preparo aqui, por que você não me conta mais sobre esse seu problema com a Catharina? Quer dizer, ela já tentou me mandar de volta pro Inferno umas três vezes e nem eu tenho tanta tensão assim com ela. O que realmente houve?

Sentei numa das cadeiras de prata e tirei minhas luvas passando os dedos pelo alto relevo do metal que circundava a mesa. 

- Ele era o protegido dela. Carlos, o homem sobre o qual eu falei com você no carro.
- Você não faz o mínimo tipo de que se envolveria com um padre, sabia? Engraçado, se me perguntassem, eu diria que você teria comido o coraçãozinho apaixonado dele no café da manhã. - disse enquanto derramava o café já moído na maquina.
- Padre ou não, eu me envolvi. - meu polegar encontrou uma cruz entalhada no beiral da mesa e de propósito o forcei sobre ela - E ele se envolveu comigo. Catharina parece levar muito a sério o serviço dela. Me culpa por ter perdido seu protegido e está convencida de que eu o tornei vulnerável e distraído. O pior de tudo é que eu realmente talvez tenha culpa nisso.
- Eu discordo. O cara quis ficar com você e largar toda aquela baboseira de igreja, o que na minha opinião foi muito esperto da parte dele. Sei que deve ser difícil pra você acreditar, mas nem tudo gira ao seu redor. A decisão foi dele.
- É legal da sua parte tentar tirar esse peso de mim, mas eu estou convencida. Quando me transformei, cheguei a pedir para Catharina me matar porque achava que não aguentaria isso. Ela se negou, e agora parece fazer questão de abrir minha ferida todas as vezes que nos encontramos.
- Aquela vadia é bem cruel para alguém que se diz do lado dos bonzinhos, ne? 
- É, é sim. - esbocei um sorriso - Mas e você? Qual é a sua história?
- Bom – ela suspirou - você sabe da guerra, imagino não é? Estrela da Manhã aprontou para cima do cara lá de cima e acabou perdendo. Caiu, e com ele um terço do céu.
- Estrela da manhã? - perguntei
- Lúcifer, Diabo, Satan, Rei das Mentiras…ele tem vários nomes.
- Ah, sim. Desculpe, não fomos apresentados formalmente. E você estava nessa luta?
- Claro que não! Está me chamando de velha, vadia? Minha “mãe" estava. Triskelle, uma súcubo, a “rainha das súcubos”, como gosta de ser chamada. Não é a coisa mais linda de se ver: imagine uma serpente de ossos enorme e com rabo afiado como uma espada. Eu nunca vi seu rosto, mas acredito que seja bem feio, ela arrancou o rosto e o escalpo de um serafim muito poderoso chamado Daniel, um dos grandes pelo que eu ouvi falar, durante a guerra e deste então o usa como máscara. Fora ele, ela matou mais 99 serafins na luta e por isso, Lúcifer permitiu que ela criasse uma linha inteira de demônios com a forma e habilidade que quisesse. E que bom que ela não nos criou à sua imagem e semelhança, senão seduzir alguém ia ser bem difícil. Aqui, seu cappuccino está pronto.

Eu sabia, mas quis tentar. Lucas tinha me dito que nós não podíamos comer ou beber nada que não fosse sangue. “Vai fazer suas entranhas queimarem como o Inferno”, ele disse. Não me arriscaria a fazer isso na presença dele ou sozinha, mas Máira estava ali. Eu confiava nela. A xícara, de porcelana e tão branca quanto eu, pesou na minha mão. Máira, que puxava uma cadeira para sentar ao meu lado até percebeu a hesitação que eu tive de leva-la aos lábios, mas apenas deu de ombros.

- Eu nunca fui próxima de uma vampira. Já percebeu como eles chamam vocês? “Upyr”, nossa eu acho horrível esse nome. E, estou aprendendo muito sobre vocês hoje. Primeiro o caixão que vocês usam para não dormir, e agora você tomando café. Eu poderia jurar que vocês não podiam tomar nada além de sangue, acredita?

Pareceu descer sem efeito. Percebi que ela falava a verdade, realmente o cappuccino estava bem ruim, mas só sentir qualquer outro gosto que não fosse de sangue já elevou meu ânimo. Infelizmente, por pouco tempo. Em questão de segundos eu senti um enjoo tão forte e crescente que quase não pude responde-la.

- Não podemos. – minha garganta parecia fechar-se sobre si mesma enquanto um refluxo era empurrado do meu estômago apesar das minhas tentativas de contê-lo - Máira, eu vou precisar da sua ajuda.

Ela não acreditou em mim de primeira, mas deve ter visto a expressão no meu rosto e se convenceu de que eu não estava brincando.

- Você sabia que não podia e bebeu mesmo assim? Ai caralho! Você é maluca, garota? E agora, o que a gente faz?
- Catharina me lembrou que eu perdi muitas coisas naquela noite. – as palavras saíam com dificuldade e eu percebi que estava suando - Algumas eu nunca vou poder ter de volta. Mas o cappuccino, pelo menos o cappuccino, eu ainda posso provar. - senti uma pontada no estômago aliada a uma cólica muito forte. - Preciso de sangue para desintoxicar. Traz alguém para cá, qualquer pessoa. Rápido.

Máira me trouxe de volta para a cadeira, foi quando eu percebi que tinha caído no chão com o mal estar. E me deu um beliscão no braço.

- Nunca mais eu faço café pra você! Maluca...eu já volto.

Pus os braços sobre a mesa e deitei a cabeça sobre eles, fechei os olhos e pensei nele. Talvez não fosse ajudar muito, mas eu sempre ouvi dizer que uma dor forte tem o poder de anestesiar uma menor.