quinta-feira, 17 de março de 2016

Ver036



Quando me deu este caderno, Carol disse que era importante que eu o lesse inteiro, sem pular nenhuma página sequer, por mais que a leitura se mostrasse difícil em algumas partes.

Não imaginava como isso poderia ser possível, até chegar nesta página. Exigiu muito de mim continuar lendo depois disso e eu só continuei porque Carol e seus olhos persuasivos estavam me observando durante a leitura. Ela poupou os detalhes, mas a minha mente não. Ele passeando pelo corpo dela, os dedos se enrolando pelos seus cabelos e a boca nos lábios dela me fizeram jurar para mim mesmo que mataria aquele filho da puta com as minhas próprias mãos.

A próxima parte do que eu vou transcrever aqui, são fragmentos da vida de Carol algumas décadas depois de já estabelecida de volta ao Rio de Janeiro:

“Parecia ter esquecido o que era o calor. Quando desci no porto do Rio de Janeiro, o abraço quente do ar me embalou como um parente que eu não via há muito tempo. Eu tinha mesmo saudades dessa cidade. Pude ver, ano após ano, a arquitetura mudar, mas o espírito ainda era o mesmo que eu conhecia desde antes de sair daqui para ir à Europa. O Rio de Janeiro, em muitos aspectos pode ser chamado de uma cidade vampira.

Logo que chegamos, Lucas me levou à casa de um clã que ele conhecia e estava estabelecido no Rio há séculos. Era um clã grande, pude contar mais de dez membros, sua líder era uma mulher de aparente meia idade, pele de um bronzeado pálido um tanto quanto engraçado e cabelos castanhos. Ela disse a Lucas que tudo ai estava calmo, os sacerdos da Ordem de Paris ainda não haviam feito contato com os do Rio e, quando perguntada se indicava um bom lugar para morarmos sem chamar atenção naquele Rio de Janeiro dos anos quarenta, ela sem hesitar respondeu o bairro do Catete. “Muito movimentado e perigoso” - ela disse - “Pessoas desaparecem com certa frequência sem explicação por ali."

Viver à base dos pequenos animais que encontrávamos nos depósitos da embarcação já era deprimente, mas o tédio contava como maior ponto à favor de um suicídio que voltou a pairar na minha cabeça vez ou outra. Passei a tolerar a presença de Lucas durante a viagem, senão enlouqueceria. Perguntei para ele, ao sairmos da suntuosa casa do clã que visitamos como aquela mulher podia saber tanta coisa, ele me disse que Madame Fernanda passou sua vida toda cuidando da vida de outras pessoas, e não era diferente no seu pós vida, e que, se eu precisasse de alguma informação, era só procura-la.

Encontramos uma bonita casa próxima ao Palácio do Catete, um pouco menor em altura, então, quando o sol incidia sobre o palácio ele próprio fazia sombra sobre ela. O que obviamente era muito conveniente para nós. Quando fomos avaliar o imóvel, o vendedor nos tratou com tanta bajulação após ver nossos francos que acreditei que ele estivesse se convidando quando disse que talvez aquela casa fosse um pouco grande demais apenas para eu e Lucas, mas pensando bem, ele tinha certa razão. Quando levantei essa questão mais tarde, em particular, Lucas me disse que tinha planos para aqueles quartos vazios.

Os primeiros dias na casa foram tranquilos. Contínhamos nossos ataques até saber exatamente como a população da local se comportava, chegando a ficar semanas sem beber nada. Logo a cidade entrou em carnaval, confesso que eu nunca fui muito afeita à esta época do ano mas toda a liberdade foi dada às ruas nos alimentou bem pela primeira vez desde que tínhamos saído da França.

Na quarta-feira de cinzas eu resolvi que não sairia. Me dediquei a conhecer todos os cantos da casa pela primeira vez desde que a tínhamos comprado. Era um casarão com sete cômodos grandes. Eu escolhi o quarto mais distante da sala de estar pois, naquele momento mais do que nunca, eu queria minha privacidade, os outros entretanto não diferiam muito dele. O pé direito era igualmente alto e tinha imensas janelas retangulares que acompanhavam a longitude da construção cobertas por grossas cortinas que pareciam vedar a passagem de qualquer luz. Todos os aposentos eram parecidos, apenas variações singelas de dimensão diferiam um do outro. Isso, e o fato de estarem pouco mobiliados, apenas com restos de móveis de madeira antigos que outros inquilinos haviam abandonado. Tirando o meu quarto e o de Lucas, todos os outros eram um amontoado de poeira e móveis esquecidos.

Em um deles, encontrei uma penteadeira com escrivaninha embutida. Sentei sobre a frágil cadeira que compunha a decoração do cômodo. O espelho onde eu não me via tinha uma moldura bonita, apesar de estar manchado pelo tempo, resolvi que ia bota-lo no meu quarto. Eu já tinha aceitado o fato de ser vampira há décadas neste momento, passara a gostar inclusive, mas se tinha algo de que eu ainda sentia falta, era de poder me ver novamente.

De volta ao meu quarto, coloquei o móvel na parede que ficava oposta à porta e comecei a pentear meus cabelos até sentir dedos gelados tocarem meus ombros. O perfume característico denunciou que era Lucas antes mesmo de eu precisar me virar. Seus beijos subiam pelo meu pescoço, os arrepios também. Ele parou na base do meu ouvido, sussurrou que tinha um presente e pediu que eu o acompanhasse.

Na sala, havia uma garota em prantos, amordaçada e amarrada nos pulsos e tornozelos. A visão me chocou menos do que deveria. Na verdade, tive uma pontada de prazer em ver uma presa tão indefesa daquele modo. Devido ao pano que torcia em sua boca, seus lamentos eram ininteligíveis e baixos, a voz de Lucas falando comigo os abafou ainda mais. Como quem apresentava a atração de um circo, ele disse que achava que eu estava pronta para o que era “o próximo passo” da vida de um vampiro. Matar poderia ser difícil no início, mas agora eu já não tinha problemas neste ponto. O que eu deveria aprender agora era como não matar, ou nas palavras dele “enganar a morte”.

Era necessário - continuou - que um vampiro soubesse perpetuar a espécie. Ele inventava cenários onde ele poderia ser capturado ou morto e, para me proteger, eu precisaria de aliados. Eu nunca tinha pensado em transformar alguém, por mais que agora veja isso com normalidade, mas dei razão a ele. Lembrei da situação com Manoela em Paris e no caso de eu não ter conseguido chegar à sacerda a tempo. Se algo daquele género acontecesse novamente, seria bom ter a habilidade de transformar outros. Sobrevivência resumia a questão.

Perguntei como deveria fazer, e isso despertou um novo nível de desespero na presa. Lucas foi didático, o primeiro passo era o mais difícil: me manter focada depois que começasse a beber o sangue dela. Deveria prestar atenção, ouvir as batidas do coração da minha vítima e continuar bebendo até levar sua vida ao limite. “É preciso ter a sensibilidade de perceber o momento anterior ao coração da vítima dar sua última batida, e parar ali”, ele disse, “Feito isso, ela deve beber um pouco do seu sangue.” Lembro de ficar um pouco nervosa, mesmo sem motivo algum. Lucas falou mais de uma vez que era normal que não se conseguisse fazer uma transformação logo na primeira tentativa.

Minha atenção era toda da moça amarrada à nossa frente. Cabelos pesados muito lisos e escuros eram caíam até seu quadril. As lágrimas borraram a maquiagem, mas não escondiam seus bonitos traços orientais. Senti a garganta começando a secar. Lucas ia saindo do foco da minha consciência. Nada importava muito agora, o frenesi já havia começado no momento em que resolvi que ia transformar aquela mulher, ou a mataria tentando. 

Caminhei lentamente até ela, enquanto tirava minhas luvas curtas de renda e as jogava no chão. Avaliei, então, como começaria. Ela estava deitada de bruços, então abri as pernas uma em cada lado de seu corpo e ajoelhei. Com enrolei seu longo cabelo nos meus dedos e puxei para trás, para que ela fosse obrigada a me oferecer seu pescoço. Lucas me observava como um técnico dedicado, mas ciente de que eu não ouviria mais suas instruções, permaneceu calado.

Uma vez, não muito tempo depois de eu ter tirado a virgindade de Carlos, eu me arrumava para um ensaio atrasada, enquanto ele me esperava pacientemente. Na espera, ele achou um caderno, parecido com este, onde eu costumava escrever. Já faz tanto tempo…eu sequer lembro o que havia escrito naquelas páginas, mas lembro da reação dele ao ler. Ele olhou para mim com aquele misto de admiração e felicidade cega que em quase cem anos eu nunca consegui entender o motivo, e disse 'Carol, tem alguma coisa que você não possa fazer? Quer dizer, olha estes poemas! Você dança, escreve, entende de artes… Eu não sei como, mas você tem esse toque especial de conseguir ser impecável em tudo que se propõe a fazer. Eu tenho certeza que não tem uma coisa sequer nesse mundo que Carolina LeBion não consiga dar conta.'. 

Não, eu não focava minha atenção nas batidas cada vez mais descompassadas do coração da minha presa. Eu as ouvia. Mas minha atenção estava na voz dele que eu me permiti buscar na parte mais escondida da minha memória depois de tanto tempo, me dizendo que eu conseguiria.

Com os sentidos velados, eu tentava me ater a realidade. Beatriz perdera a cor, o calor e a consciência, mas eu ainda podia sentir seu coração forte se agarrando ao fino fio de vida que ainda lhe restava. Desde antes de ser transformada ela já mostrava força memorável, mas depois de algum tempo finalmente eu senti que ela estava cedendo.

Minha garganta reclamou quando eu usei toda a minha concentração para me afastar de seu pescoço. À primeira vista no entanto, achei que havia passado do ponto. Lucas que observava imóvel desde o momento que eu começara, pegou meu polegar direito e forçou a minha própria unha contra o pulso esquerdo que facilmente se abriu numa pequena e constante fonte de sangue. Levei meu pulso até os lábios moribundos e ressequidos de Beatriz que mesmo desmaiada ingeriu o que saía de lá.

Lucas a tomou nos braços e pôs confortavelmente no sofá. Por algum tempo esperamos até que ela acordasse. Achei que seria melhor me apresentar sem estar coberta de sangue e fui ao banheiro tomar um banho enquanto Beatriz dava sinais de resposta.

Já estava vestida e limpava meu pulso ferido na pia quando ouvi um grito muito agudo vindo da sala, seguido de um baque seco. Chegando de volta à sala, encontrei Lucas imobilizando os punhos contra a parede. Ela estava furiosa.

Manoela havia sido a única transformação que eu presenciei antes de Beatriz e talvez pela reação dela à tudo aquilo ter sido tão tranquila, me surpreendi com a revolta da recém-transformada que mais parecia um demônio encarnado. Chamei sua atenção ao me aproximar dela e esse foi o momento de distração que Lucas precisou para desacorda-la. 

Perguntei o motivo da reação agressiva e Lucas contou que a primeira coisa que Beatriz fez ao acordar foi perguntar da família e ele prontamente respondeu que ela não deveria mais se preocupar com eles, já que ele os havia matado. Conversamos sobre o que faríamos com ela por algum tempo. “Era um teste, apenas um exercício para você. E você o fez muito bem, devo dizer. Mas ela não tem mais utilidade agora e já que está causando problemas, eu acabaria com isso agora mesmo.” - ele disse. Olhei para Beatriz, percebi que ela era apenas um pouco mais nova que eu era quando fui transformada. Discordei e disse para Lucas que ela iria ficar conosco. Ele desaprovou em silêncio, pegou as chaves do carro que tínhamos comprado poucos dias antes do carnaval começar e disse que iria se divertir um pouco. “Eu não vou bancar a babá de ninguém, só evite causar problemas. Manoela obrigou a mudarmos de continente e eu não estou com vontade de fazer isso outra vez."

Não quis amarara-la, até porque, sei que ela se livraria das amarras como se elas fossem papel. Deixei que acordasse sem incômodos e que ficasse à vontade comigo ali. Lucas deve ter batido forte, pois sua primeira reação após acordar foi levar a mão à nuca. Demorou alguns segundos para se situar mas me reconheceu e levantou de uma vez. Só que por decorrência da pancada, acredito, Beatriz pareceu estar tonta e logo se sentou novamente. Nosso primeiro contato começou um pouco estranho:

- Quem é você?
- Meu nome é Carolina. E eu sei que essa é uma situação bastante delicada, mas eu realmente estou querendo te ajudar.
- Ajudar? AJUDAR? Seu namorado matou os meus pais e irmãos! Não, acredito que vocês já ajudaram demais. - Beatriz me fitou com olhos de gelo
- Ele não é meu namorado, Beatriz. É Beatriz, não é? Aquele homem, o nome dele é Lucas e...
- Você já teve família? Sabe o que é ver um a um dos seus entes queridos ser atacado por…caralho seja lá o que vocês sejam e não poder fazer nada além de gritar?
- Sim e não.
- Que porra isso quer dizer?!
- Eu tive família sim, e tive que abdicar dela há muitos anos. E não, não os vi sendo atacados por nenhum demônio. Mas eu sei o que você passou, e acredite quando eu digo que é muito mais complicado passar por isso sozinha.
- Ah é? E aposto que estar com você seria muito mais fácil, não é? Bancar a amiguinha das pessoas que tiraram tudo que eu tinha seria muito mais fácil! Me poupe, Carolina! - Ela percebeu que estava gritando e se recompôs - Por que você parou?
- Eu também perdi tudo, sabia? E também não pedi por essa vida. Entendo a sua revolta, ela é justificada. Eu estou aqui para te ajudar se você quiser, - caminhei até a porta - mas caso contrário, fique à vontade para ir embora. Só cuidado, eu passei pelo que você passou hoje há cem anos e ainda não sei tudo que há pra saber sobre nós.

Beatriz se encolheu no sofá e desistiu de conter as lágrimas.

- Como foi que você conseguiu? Eu sempre fui muito ligada à minha família. Agora me sinto tão…desamparada. – olhou para as mãos muito mais opacas que antes – Eu nem sei mais o que eu sou agora...

- Olha, talvez eu não saiba realmente o que você está passando por ter perdido seus pais e irmãos de forma tão cruel. Mas como disse, eu tive perdas que tornaram minha transformação muito traumática também. E posso te garantir, pode parecer impossível, mas você vai aprender a viver de novo.
- Quem…quem você perdeu? - soluçou.

Minhas lágrimas também vieram, só que de forma desavisada.

- A esperança. Por algum tempo, eu perdi a esperança. Você perguntou porque eu parei? Foi por precisar acreditar que criaturas como eu e você ainda podem ser felizes apesar de tudo. 

Beatriz e eu enxugamos nossos rostos e ficamos um momento em silêncio.

- Eu estou com fome...
- Não, você está com sede. É fácil confundir no início. Olha, temos três quartos vagos nessa casa enorme, por que você não escolhe um pra você enquanto eu te trago um lanchinho? Depois eu conto tudo que você precisa saber.

Beatriz me olhou enquanto passava pelo umbral do corredor.

- Carolina, por que você está sendo tão gentil?
- Gentil? Não se iluda, eu não sou nada gentil. Só estou cuidando de você, Bia. Não é isso que faz uma família?

Na época, eu não estava tão familiarizada com as ruas do Rio e demorei algum tempo até achar um lugar que pudesse encontrar uma vítima. Estava cansada depois de todo o stress da noite e pretendia fazer aquilo rápido. Infelizmente, devido ao avanço da hora, não era mais possível encontrar algum desavisado vagando pela rua. No Flamengo, até hoje existe um bar/bordel que na época era bem movimentado. E foi lá que eu fui surpreendida naquela noite.

O ambiente era majoritariamente masculino. Claro, existiam as moças que trabalhavam no local e eram de fácil identificação por causa do código de vestimenta do seu ramo de trabalho. Mas também era possível ver algumas poucas mulheres que estavam ali só para tomar um drink ou, quem sabe, conhecer pessoas novas. O sugar fedia a álcool e suor.

Sentei numa mesa sozinha num dos cantos do estabelecimento, no outro extremo do palco onde duas mulheres performavam um número sensual. Da minha mesa, eu tinha visão geral do primeiro andar do bordel e comecei a examinar os clientes, buscando algum alvo em potencial. Vi um rapaz solitário umas duas mesas à minha esquerda mas ele não parecia muito limpo e com certeza tinha alguma doença de pele. Pedi uma taça de bordeaux por aparência e aguardei mais um pouco.

Alguns minutos depois, um cavalheiro usando um terno bem cortado e um chapéu, ambos cinza, entrou e se pôs na mesa à frente da minha. Tirou seu paletó devido ao calor e dobrou os pulsos da camisa até a altura dos cotovelos. O homem era bastante atraente e com certeza diferia de todas as outras pessoas daquele lugar. Achei que Beatriz fosse gostar dele. 

Percebi que a cada dez minutos, o homem olhava seu relógio. Ele estava esperando alguém e resolvi agir antes que sua companhia chegasse. Derrubei a minha taça de vinho propositalmente no paletó que ele deixou na cadeira mais próxima da minha mesa. Minha tentativa foi bem sucedida, depois de um breve segundo de raiva, ele me olhou e aceitou as minhas desculpas por ser “Tão desastrada."

Fui convidada a sentar à sua mesa, afinal uma dama não deveria estar sozinha num ambiente como aquele e de bom grado aceitei. O homem não tirava os olhos do meu decote e para piorar, tirei o meu casaco. Sabia que era só questão de tempo, mas como falei antes, estava cansada. Enquanto conversávamos senti que alguém havia parado de pé atrás de mim, não dei muita atenção pois achei que era somente uma das mulheres que trabalhavam na casa. O meu alvo pareceu não notar também até, depois de algum tempo, sermos interrompidos.

- Achei que essa noite seria só nossa, Rogério.

Me virei e vi uma mulher que aparentava ter a minha idade ou pouca diferença, mais alta que eu, tinha a pele morena característica da maioria dos cariocas e os olhos escuros bastante sedutores. Sua roupa era de bons tecidos, mas ligeiramente vulgar e o decote cavado evidenciava ainda mais os seios, que chamavam atenção por si só.

- Meu bem, era exatamente este o meu intento esta noite, - o homem respondeu um tanto quanto nervoso - mas veja, Carolina aqui estava sozinha. Não vejo mal em levarmos ela para se divertir conosco essa noite também, você permite não é? À propósito, - disse Rogério voltando-se para mim - Carolina, esta é Máira."