É doce e agradável o perfume que o
caderno solta enquanto passo suas páginas. Muitas páginas neste diário são
importantes para que a história que conto possa ser compreendida em sua
totalidade.
Deixo aqui mais um relato que Carol fez,
pouco antes de visitar meu quarto a primeira vez, após a morte do meu pai.
“Eu ia ao espetáculo anual da Revenant,
minha antiga companhia de ballet, religiosamente. Em algumas noites, Lucas
levava a mim e Manoela ao Ópera para ver alguma apresentação estrangeiro. Mas
sempre que a Revenant subia ao palco, eu gostava de ir sozinha.
Fora Lucas, minha única companhia diária
era Manoela e aquele jeito insuportável que ela tinha de querer chamar atenção
a qualquer custo. Depois de alguns anos transformada, resolvi procurar Marie.
Ela guardou alguns segredos meus e me ajudou muito quando eu cheguei à Paris.
Era uma grande amiga e isso era exatamente o que eu precisava.
Era inverno e as ruas de Paris estavam
pintadas de branco, mas isso não impediu que o teatro estivesse lotado dos
lugares mais humildes aos camarotes mais luxuosos naquela noite. A Revenant
apresentaria “La Fille mal Gardée", uma das peças que sempre quis em
dançar. Fiz questão de pegar o nosso camarote, que tinha a melhor vista do
teatro, mesmo estando sozinha naquela noite.
Subiram as cortinas e a orquestra
começou. Entre rostos conhecidos e novos, eu procurava Marie. Estranhei sua
ausência, ela era habilidosa e à essa altura já poderia ser até a
primeira-bailarina da compania. O espetáculo estava muito bem ensaiado e
produzido. Não foi Marie, mas Juliette, a protagonista e ela estava
estonteante. A plateia aplaudiu de pé quando o acorde final soou.
Não ter encontrado Marie me deixou
frustrada e preocupada. O que poderia ter acontecido? Por que ela não estava no
palco? Resolvi ir até nosso antigo apartamento e fazer uma visita surpresa. Uma
última tentativa, se não a encontrasse, voltaria para casa. Eu já controlava
melhor meus impulsos, mesmo quando a sede era intensa, mas mesmo assim preferi
esperar na saída do teatro por algum solitário, apenas por garantia.
Fingi estar perdida e em pouco tempo o
rapaz tímido já me acompanhava pelo Centro de Paris. Fomos até uma parte mais
calma do Sena, onde ele percebeu que não seria um encontro romântico um pouco
tarde demais. Joguei seu corpo no rio quando terminei e antes de ir embora e
chutei a neve manchada de vermelho apagando quaisquer rastros.
As memórias me atingiram quando virei a
esquina e procurei pelo número 68 onde morei por tanto tempo. Toda expectativa,
vontade e sorrisos que eu tinha conhecido ali…minha vida antiga e toda a
promessa de felicidade que ela ensaiava ser. Ainda estava tudo ali. Lembrei da
primeira vez que levei Carlos àquela casa, em como ele estava nervoso e
preocupado com o que eu acharia sem nem imaginar que eu já queria devora-lo de
qualquer jeito. Naquele tempo, esse garoto, Pablo, ainda não tinha aparecido e
eu contava para mim mesma que já tinha aceitado tudo que aconteceu. Algumas
vezes até acreditava.
Não essa.
A luz do meu antigo quarto estava acesa
e a ideia de ter outra pessoa ali me incomodou muito. Não havia motivos para
estar nervosa, mas eu estava. Ia pisando na neve que cobria a calçada com tanta
hesitação que meus pés quase não deixavam marcas. Toquei na porta e, apesar da
hora avançada, a resposta não demorou. Uma senhora sexagenária muito magra e
com marcas senis por todo o corpo abriu a porta simpática, por um momento tive
certeza que tinha errado a casa, mas havia um quadro na parede atrás da velha
senhora que eu mesma tinha comprado. Laurine era o seu nome, simpática me
convidou a entrar sem a mínima desconfiança.
A casa ainda mantinha o mesmo aspecto acolhedor
e quente, apesar da decoração estar um tanto diferente. Agora que me via
acolhida do inverno duro, Laurine perguntou se eu precisava de algo, perguntei
por Marie dizendo que era uma amiga antiga. A anfitriã pediu que eu sentasse à
mesa antes de responder. Sentou ao meu lado e não sei importou com a
temperatura da minha pele quando pôs a mão na minha e disse que minha amiga
havia falecido pouco menos de um ano atrás, mas que tinha lutado bravamente por
meses antes de ceder à tuberculose. Ela era uma tia antiga de Marie e estava
tomando conta da casa, ajustando os últimos detalhes antes de pô-la à venda. O
olhar piedoso de Laurine não facilitou nenhum pouco as coisas, sentia como se
toda a qualquer pessoa que um dia fora importante para mim tivesse ido embora.
De repente eu percebi que, fora o meu clã, não havia mais ninguém em quem eu
pudesse me abrir. Eu tinha perdido o último laço que ainda me prendia ao que eu
tinha sido um dia.
Voltei para nossa casa cabisbaixa
naquela madrugada. Ao abrir a porta, encontrei Lucas e duas dançarinas do
Moulin Rouge no chão da sala, deitados em meio à garrafas de vinho vazias. Resolvi
me juntar porque parecia ser uma diversão melhor do que ficar sozinha com meus
pensamentos.
Manoela estava fora. Desde que as crises
de ciúmes dela haviam se tornado mais frequentes, ela estava agindo de modo
estranho. Ela nunca foi um bastião da sanidade mental, mas agora mostrava um
comportamento passivo-agressivo causado pela preferência que Lucas tinha por
mim e nunca fez questão de esconder. Manoela era obcecada por ele desde a sua
transformação. Diferente de mim, ela pediu para ser transformada. Praticamente
o obrigou a fazê-lo. Nunca soube muito bem o que ela fazia antes, mas de algum
jeito descobriu quem…o que eu e o Lucas éramos.
É impossível esquecer a noite em que ele
eu lia à luz da lareira quando o vi entrar em casa mantendo sua frieza de
costume, mas um tanto quanto preocupado. Sentou em uma das poltronas e, como se
não me visse, mergulhou em seus pensamentos. Perguntei o que havia acontecido e
ele respondeu com um sorriso amarelo e os olhos frios que alguém havia nos
descoberto, uma mulher. Começou a me explicar as consequências daquilo, e o
assunto me pareceu realmente sério. “Eu já vi alguns clãs importantes ruírem
da noite para o dia por terem sido descuidados e deixado um mortal descobrir
seus segredos. Essa mulher sabe onde eu moro e está nos chantageando. Precisamos
agir." – ele disse distante.
Para mim parecia muito óbvia a solução:
nos livraríamos da mulher. Matar não era mais um problema para mim e Lucas fazia
isso como exercício matinal. Mas era um pouco mais complexo que isso, Manoela
não era exatamente burra e tinha tomado cuidado para que seu plano seguisse
exatamente do modo que ela queria. Quando sugeri que emboscássemos a emboscássemos,
ele disse que ela era filha de um antigo sacerdo francês que tinha abandonado o
ofício para viver com uma mulher, por coincidência brasileira também. O pai
havia morrido há alguns anos, mas ela tinha escrito uma carta à Ordem de Notre
Dame contando onde estávamos e quem éramos, se a atacássemos essa carta iria
parar nas mãos deles e poderia ser nosso fim. Claro, poderia ser um blefe mas
Lucas, covarde, não queria arriscar.
Perguntei o que faríamos então e fui
pega de surpresa quando ele me disse que a convidaríamos para casa naquela
mesma noite. Eu achei ser uma ameaça, mas a verdade é que Manoela tinha feito
tudo aquilo por apenas um motivo: ela queria ser transformada. Por ter sido
filha de um sacerdo tenho certeza que sabia o tipo de criatura que se tornaria
mas, ao invés de sentir repulsa, ansiava por aquilo. E conseguiu o que queria.
Victor a trouxe para casa e sentamos os três à mesa no que mais parecia ser uma
reunião de negócios. Ele explicou para ela todos os termos, ela concordava com
a cabeça sem objeções.
Foi burocrático. Por Manoela não ter mais
parentes próximos vivos em Paris, tudo pôde ser realizado ali mesmo. Após
concordar em ser submissa às decisões do líder do clã e jurar não fazer nada
que comprometesse nossa segurança, Lucas cravou os dentes em seu pescoço e pude
ver o rubor abandonando seu corpo e enquanto a transformação acontecia. Eu só
conseguia pensar em como alguém em sã consciência trocaria sua vida por aquilo
que nós tínhamos. Se ela não soubesse, eu entenderia, mas ela tinha consciência
do que a esperava e mesmo assim, literalmente, bateu à nossa porta. Eu daria
tudo para que a minha vida tivesse tomado outro rumo naquela noite há tanto
tempo atrás, e ver Manoela tomando aquela decisão me causou nojo. Talvez esse
tenha sido o motivo de nossa relação nunca ter passado do suportável.
Mas como eu disse, nas últimas semanas a
coisa havia se tornado pior. A predileção de Lucas não que isso fazia alguma
diferença para mim, eu continuava fazendo as coisas que eu queria e quando eu
queria. Mas parecia ser algo muito importante para Manoela. Ela era uma mulher
bonita, disso eu nunca tive dúvidas. Os cabelos castanho-claros caíam como uma
cascata sobre os seus ombros e seguiam até o meio das costas. Ela tinha feições
doces e delicadas que contrastavam bem com seus olhos cor de mel sedutores,
mais voluptuosa, tinha um corpo que agradava mais o senso comum dos homens e
devia estar acostumada a chamar atenção, coisa que ela parecia gostar. Acontece
que, desde a sua transformação ela conseguia atenção de todos os homens, e até
algumas mulheres, que queria. Exceto de Lucas. E eu conseguir sem nem ao menos
tentar deixava-a fora de si.
Coisas bobas como escolher me levar de
acompanhante à um certo baile onde só tínhamos dois convites, ou me chamar para
brincar com alguma presa antes de chamar a ela poderiam ser motivos de
discussões homéricas. A leve sugestão de que Lucas sentia mais atração física por
mim do que por ela bastava para que a casa ficasse em chamas. Manoela se
descontrolava facilmente, e isso estava começando a ficar perigoso. Seu último
surto até aquele dia tinha ocorrido porque Lucas tinha comprara uma pintura de
Lilith para pôr na parede de nossa sala e ela, por ignorância ou ciúmes, achou
que fosse eu. Os cabelos são semelhantes sim, e a pele pálida, mas fora isso
era uma mulher ruiva como outra qualquer. Saí do meu quarto alarmada com os
gritos, a tempo de ver Manoela quebrando a moldura com as próprias mãos e
dizendo, com o dedo em riste para Lucas que não aceitaria ser “a segunda” por
muito tempo. Encostada no umbral da porta eu perguntei irônica se aquilo era
uma ameaça, ela se limitou a me responder com um olhar fuzilante e saiu
batendo a porta.
Alguns dias depois da apresentação de
ballet que fui, haveria uma exposição no Louvre a qual também fomos convidados,
mas somente um par de convites. Naquela época o museu ainda era recente e não
tinha todo o glamour nem a tradição de hoje em dia, de modo que recebia obras
de artistas menos conhecidos esporadicamente. Normalmente, apesar da
insistência de Lucas, eu recusava e Manoela acabava indo com ele a este tipo de
evento. Lembro que houve um programa parecido alguns meses antes e eu pude
ouvir os dois se divertindo quando voltaram, mesmo com a porta fechada do meu
quarto. Parecia que Manoela precisava marcar um território que eu nunca me importei
em possuir.
Eu costumava recusar, no entanto, Lucas
disse que um conhecido meu estava relacionado entre os artistas convidados a
expor. Era verdade, reconheci o nome de um ex-namorado de Marie que por um
tempo frequentou a nossa casa, pensei que poderia ter mais detalhes com ele
sobre os últimos dias dela e aquilo serviu de alento para melhorar minimamente
uma noite que tinha sido horrível. Comentei que tinha mudado de ideia e que
dessa vez iria acompanha-lo.
Quando acabamos com as dançarinas, eu
fui para o meu quarto. Manoela ainda não tinha retornado.
A exposição estava marcada para a noite
seguinte e, depois que criei coragem para levantar do caixão, fui pegar o jornal
que a nova entregadora trouxera na noite anterior. No caminho até a sala eu
ouvi Manoela cantarolando em seu quarto e presumi que ela estivesse de bom
humor. O que era ótimo, porque eu não estava com o mínimo pique para uma outra
briga daquelas.
Voltei para o meu quarto com o jornal e
acendi o abajur. Apesar de ser o final da tarde, as nuvens de dezembro nos
davam noites precoces em Paris, mas eu preferia cobrir minhas janelas mesmo
assim.
No meio da minha leitura, Lucas abriu a
minha porta sem bater, coisa que eu odiava, perguntando curioso: “Foi você que
se livrou dos corpos das meninas ontem?” e do quarto de Manoela veio a
resposta: “Fui eu. Cheguei ontem bem tarde e vi a sujeira que vocês deixaram.”
- ouvi os passos dela atravessando o corredor - “Mas não tem problema, hoje à
noite você ‘lava a louça’.” e roubou um beijo de Lucas. Respirei fundo e
perguntei “Hoje à noite?”, Manoela ainda abraçada nele desse com um sorriso
largo: “É, acho que podemos nos divertir um pouco depois daquela recepção
chata, não é? Afinal de contas quem acha que aquele museu vai dar em alguma
coisa mesmo?"
Lucas não tinha contado a ela, e nem
contou naquele momento. Fui eu quem falou “Não, Manoela. Eu é que vou ao Louvre
com Lucas hoje. Você nunca ligou pra arte mesmo, é melhor que eu vá. Resolvi
aceitar o convite.”. Ela olhou para mim confusa, depois para Lucas e seus olhos
sem expressão. Tirou os braços do e começou a botar para fora tudo aquilo que
só dizia em indiretas.
Enquanto esbravejava aos quatro ventos
que eu era uma cobra, que jogava Lucas contra ela, que aproveitava as saídas
dela para seduzir o seu homem, seu tom de voz ia aumentando e me incomodava
cada vez mais. Pedi calmamente que ela saísse do meu quarto. Três vezes. Ela
continuou esbravejando e não só recuou, como avançou em minha direção. Manoela
era maior do que eu, em qualquer medida, mas eu estava transformada há mais
tempo e conhecia melhor minha força. A peguei pelos braços e usei seu próprio
impulso para joga-la em minha estante de livros. Rapidamente olhei para Lucas
esperando que ele me ajudasse a conter Manoela, mas o filho da puta estava
gostando de ver nós duas brigando pela sua companhia e apenas sorriu.
Enquanto Manoela tentava se livrar dos
livros que caíram em cima dela com o impacto, eu sentei em suas pernas e a
mantive no chão com as unhas fincadas em sua garganta. Meu stiletto foi tão
fundo que ela chegou a sangrar. Só quando vi calma de novo em seus olhos foi
que saí de cima dela e mandei os dois para fora enquanto lambia meus
dedos.
Consegui ouvir gritos de raiva e alguns
socos na parede do corredor mesmo com a porta fechada e me diverti. Ouvi também
a porta de casa batendo num baque seco e preciso. Manoela saíra como ela fazia
sempre que as coisas não iam de acordo com a sua vontade de menina mimada. Eu
precisei refazer as unhas depois da briga, e talvez por nostalgia ou por
saudade, escolhi o esmalte preto que só usava em ocasiões importantes e separei
meu vestido favorito do armário. Era o mesmo que eu usava quando conheci
Carlos. Ele disse que viu minha apresentação cinco vezes antes de tomar coragem
e esperar duas horas na chuva só para falar comigo na saída do theatro. O
vestido era um pouco curto para o inverno, por isso também resolvi colocar
botas três oitavos e luvas que cobriam até o cotovelo. E um batom russo,
vermelho.
Perto da hora marcada para que o cabriolet
chegasse, peguei um casaco de inverno também preto e fui até a sala. Lucas já
me esperava lá de smoking e gravata borboleta. Nunca houve competição entre eu
e Manoela, mas se tivesse havido uma, ela sequer teria tido uma chance. O
cocheiro tocou a campainha fomos para uma noite que não sairia como o esperado.
Fiquei em silêncio a maior parte da
viagem, observando a neve que caía e batia no meu lado da janela. Mesmo estando
alheia ao caminho, percebi o cabriolet reduzindo a velocidade conforme nos
aproximávamos do museu. Depois de alguns minutos, o cocheiro parou, desceu de
seu posto e veio nos avisar na cabine que a polícia havia feito um cordão de
isolamento no lugar. Algo tinha acontecido. Realmente, o caminho desde a Place
du Carrousel até a pirâmide estava obstruído. Lucas, polido, agradeceu o senhor
enquanto dava-lhe o pagamento da corrida quando descemos e seguimos a pé.
Pude ver a praça apinhada de gente e
Lucas foi abrindo espaço entre as pessoas que pareciam não conseguir negar
passagem. Procurei o policial mais próximo de mim e perguntei o que havia
acontecido. Mesmo insistindo ser informação confidencial, ele não pareceu se
importar em contar após eu pedir uma segunda vez e me disse que um dos artistas
convidados havia sido atacado por uma criminosa. Estrangeira, ele disse.
Provavelmente inglesa, porque só os britânicos poderiam ser tão cruéis ao ponto
de atacar daquele jeito alguém. “Mas é preciso dar um crédito à moça também.” -
ele dizia ainda um pouco atônito - “Derrubar alguém tão forte quanto aquele
homem somente com mordidas não era algo que muitos homens fariam, uma mulher
então…”. No meio da frase o homem foi atraído pelo inconfundível som de uma
luta. Pediu que eu esperasse onde estava enquanto ele ia checar, mas cheguei à
multidão antes dele de muitos de seus companheiros.
A cenário não era bom. Lucas tentava
conter Manoela que tinha voltado à cena e agora armava um escândalo. Todos os
mortais que estavam presentes ali, desde os de posse que haviam sido convidados
para a exposição até os mendigos que apareciam curiosos estavam vendo
aquilo. Manoela estava com os lábios, dentes e pescoço reluzindo de sangue
fresco. Suas roupas estavam manchadas e rasgadas, os olhos assassinos estavam
vermelhos como rubis. Não temos reflexos, então eu nunca pude saber, mas se for
assim que nos parecemos sempre que estamos em ataque, o horror das vítimas é
justificado.
Lucas tem uma frieza e impassividade à
frente de problemas que faz a maioria das pessoas achar que ele está seguro e
tem a situação sob controle, mas eu o conheço o bastante para saber quando ele
sabe que as coisas não estão indo bem. As pupilas dilatadas e sobrancelhas
cerradas me davam pistas de que estávamos em apuros. Manoela avançava sobre ele
cegamente, que se esquivava sem revidar. Um homem maltrapilho ao meu lado disse
“Ele está tentando tirar ela da multidão.” e ele estava certo! Lucas não estava
se esquivando apenas, ele estava recuando em direção à área que estava isolada.
Tirar Manoela dos olhos dos mortais era sua prioridade. Entendi o que ele
estava fazendo e resolvi me aproximar, apesar de ainda estar no meio da multidão,
para quando tivesse a melhor oportunidade, imobiliza-la e minimizar maiores
problemas.
Foi então que eu ouvi.
Muito discreta, propositalmente baixa.
Audível o suficiente para me incomodar como uma agulha que é enfiada lentamente
por baixo das unhas, mas não para que eu pudesse perceber de onde vinha. Era
uma oração. Minha sede começou a piorar repentinamente e minha concentração
ficou comprometida. Percebi que apesar de estar sofrendo seus efeitos, eles
estavam sendo piores em Manoela e Lucas. Eu era apenas um alvo indireto.
Foquei toda concentração que tinha
naquela voz que reconheci ser de uma
mulher. Ela não tinha me percebido, e essa foi a nossa sorte. A moça era boa, a
melhor que eu já vi. Boa e corajosa, pois estava sozinha, mas estava confiante
de que não teria problemas. Enquanto tentava fazer contato visual, vi Manoela
levar as mãos aos ouvidos como se quisesse causar uma surdez momentânea cair
sobre seus joelhos. Lucas foi em sua direção à passos largos. Rápida como uma
flecha naquela cena quase estática, nossa caçadora saiu da multidão com um
crucifixo na mão erguida acima da cabeça. Foi a primeira vez que vi o efeito
que aquela coisa tem sobre nós. Lucas, quando explicou, não fez jus ao que
era.
Da arma da saiu uma luz tão brilhante
quanto eu me lembrava ser a luz do sol. Lucas tentou proteger os olhos com os
braços mas começou a queimar e pelo que eu vi, ficou momentaneamente cego. Se a
mulher continuasse a insistir nele, talvez só restassem as cinzas, mas seu foco
de ataque mudou para Manoela. Numa sequencia de movimentos que parecia ter sido
ensaiada, vi a sacerda enrolar um cordão de dentes de alho no pescoço de
Manoela que ainda estava ajoelhada à sua frente, cruzá-lo sobre as mãos e puxar
as pontas. Lentamente a corda de alhos ia afundando em sua pele e, em não muito
tempo, Manoela não teria mais a cabeça sobre os ombros.
Eu não pensei, quando percebi já estava
abrindo caminho pela multidão com toda a velocidade que tinha até parar atrás da
mulher que quase acabou conosco. Eu podia perceber as pessoas ao meu redor me
olhando com o mesmo terror que olharam para Manoela, mas isso não me impediu. A
mulher era rápida e visivelmente bem treinada, mas não conseguiu travar a sua
ação quando me percebeu. Atacando pelas costas, agarrei seus antebraços e puxei
para baixo de uma vez, sentindo suas escápulas deslocarem. Manoela tombou
quando a pressão sob o cordão de alhos cedeu e, ainda no chão, segurou as
pernas da mulher enquanto eu chupava seu pescoço depois de tê-lo quebrado.
A maioria dos mortais correu da praça em
polvorosa e os poucos policiais que restaram atiravam balas que não nos feriam.
Lucas, já recuperado me tirou do frenesi arrancando a mulher de mim sem
dificuldades. Ajudou Manoela a levantar com uma mão estendida e desprezo nos
olhos. Dizendo cada palavra como se lhe custasse toda calma que tinha, ele
mandou que voltássemos para nossa casa imediatamente.
A super velocidade ajudou, éramos mais
rápidos que qualquer cabriolet ou carruagem da época. Não houve bate-boca quando
entramos em casa. Manoela afundou numa das poltronas de nossa sala chorando e
se mostrando verdadeiramente arrependida do que fez e Lucas que parecia ter
esquecido todo o ocorrido, consolava-a. Eu estava com muito frio e acendi a
lareira para que pudéssemos ter algum conforto enquanto pensávamos o que
faríamos a seguir. Pude ver Lucas indo até as costas da poltrona onde Manoela
estava sentada soluçando e disse a ela com voz de veludo que tudo estava bem,
enquanto fazia carinho em seus cabelos longos. Calmamente, ele diz que sabe que
ela estava arrependida de tudo o que aconteceu, e que não iria se repetir outra
vez. Manoela concorda com a cabeça, e pude ver seus soluços acalmando e se
tornando mais espaçados. Lucas desceu dos seus cabelos para seu pescoço.
O barulho foi seco. Como um galho de uma
arvore morta que quebra sob o peso do acúmulo de neve. Lucas girou o pescoço
dela tão rápido que eu mal vi seu movimento até ele estar terminado. Manoela
continuou sentada do mesmo modo que estava, só que agora seu rosto fitava o
encosto da poltrona enquanto seus cabelos eram iluminados pelo fogo de nossa
lareira. “Você está arrependida, pena que é tarde demais.”
Seria mentira dizer que senti sua morte,
Manoela nunca foi próxima à mim. Mas tive sim um choque vendo aquela cena. Uma
das coisas que Lucas me dissera logo nos meus primeiros dias como vampira foi
que nossa classe só tem uma lei, a que condena que nos matemos exceto se algo
muito grave for feito. E sim, Manoela tinha feito algo que pôs em risco nossa
segurança. Mas mesmo assim não foi algo fácil de ver. Lucas pôs seu corpo na
varanda onde, quando o sol nascesse, seria banhado pela sua luz e em questão de
minutos não seria nada além de cinzas. Quando voltou, sentou ao meu lado e perguntou
se eu tinha alguma ideia do que poderíamos fazer agora com a mesma naturalidade
de quem pergunta o sabor de pizza que deve pedir ao telefone.
A noite tinha sido longa demais, uma
sequência de acontecimentos inesperados que saiu do controle. Eu estava
exausta, física e mentalmente. Lucas não pediu urgência na resposta, mas seus
olhos inquisidores sim. Pensei em lugares da França que eu já tinha conhecido,
se algum deles seria um bom lugar, mas mesmo a fortaleza murada de Mont
Saint-Michel, o lugar mais seguro que pude me lembrar parecia ser suficiente. E
como uma epifania que se torna óbvia depois que é tida eu percebi: não existe
lugar mais seguro que o nosso lar. Então foi com segurança que eu afirmei: “Vamos
voltar para o Brasil.”
Lucas me olhou intrigado. Vi um sorriso
brotar em seus lábios enquanto seus pensamentos se concatenavam em uma fuga bem
sucedida. “Isso! Vamos até Grenelle, lá tem navios de carga com vinhos que são
enviados para o Novo Mundo diariamente! Os virgenzinhos vão nos procurar pela
França, no máximo pela Europa, mas vão demorar para ir tão longe...Acredito que
devemos deixar tudo como está. Eles vão achar que ainda estamos por perto. Vamos
levar apenas a roupa do corpo e os caixões. Precisamos correr, - olhou o
relógio - acho que tem um carregamento saindo às 3am. Carolina, você é incrível!”
Era irônico ouvir a palavra que Carlos
mais usava para me representar nos lábios de seu assassino com o mesmo
significado. E foi exatamente na ironia que eu pensava enquanto ele tomou meu
rosto nas mãos e beijou um beijo gelado. “Agora não tem mais ninguém para nos
atrapalhar”, ouvi Lucas dizer, quando me derrubou no tapete e rasgou meu
vestido favorito. Da onde eu estava, conseguia olhar para o corpo de Manoela na
varanda.
De fato, era irônico.
E foi assim, por um ataque de ciúmes
imaturo que eu me vi, algumas horas depois, no convés de um navio que cruzava o
Atlântico e me levava de volta para casa."