sábado, 6 de fevereiro de 2016

Ver035



É doce e agradável o perfume que o caderno solta enquanto passo suas páginas. Muitas páginas neste diário são importantes para que a história que conto possa ser compreendida em sua totalidade. 

Deixo aqui mais um relato que Carol fez, pouco antes de visitar meu quarto a primeira vez, após a morte do meu pai.

“Eu ia ao espetáculo anual da Revenant, minha antiga companhia de ballet, religiosamente. Em algumas noites, Lucas levava a mim e Manoela ao Ópera para ver alguma apresentação estrangeiro. Mas sempre que a Revenant subia ao palco, eu gostava de ir sozinha. 

Fora Lucas, minha única companhia diária era Manoela e aquele jeito insuportável que ela tinha de querer chamar atenção a qualquer custo. Depois de alguns anos transformada, resolvi procurar Marie. Ela guardou alguns segredos meus e me ajudou muito quando eu cheguei à Paris. Era uma grande amiga e isso era exatamente o que eu precisava. 

Era inverno e as ruas de Paris estavam pintadas de branco, mas isso não impediu que o teatro estivesse lotado dos lugares mais humildes aos camarotes mais luxuosos naquela noite. A Revenant apresentaria “La Fille mal Gardée", uma das peças que sempre quis em dançar. Fiz questão de pegar o nosso camarote, que tinha a melhor vista do teatro, mesmo estando sozinha naquela noite.

Subiram as cortinas e a orquestra começou. Entre rostos conhecidos e novos, eu procurava Marie. Estranhei sua ausência, ela era habilidosa e à essa altura já poderia ser até a primeira-bailarina da compania. O espetáculo estava muito bem ensaiado e produzido. Não foi Marie, mas Juliette, a protagonista e ela estava estonteante. A plateia aplaudiu de pé quando o acorde final soou.

Não ter encontrado Marie me deixou frustrada e preocupada. O que poderia ter acontecido? Por que ela não estava no palco? Resolvi ir até nosso antigo apartamento e fazer uma visita surpresa. Uma última tentativa, se não a encontrasse, voltaria para casa. Eu já controlava melhor meus impulsos, mesmo quando a sede era intensa, mas mesmo assim preferi esperar na saída do teatro por algum solitário, apenas por garantia.

Fingi estar perdida e em pouco tempo o rapaz tímido já me acompanhava pelo Centro de Paris. Fomos até uma parte mais calma do Sena, onde ele percebeu que não seria um encontro romântico um pouco tarde demais. Joguei seu corpo no rio quando terminei e antes de ir embora e chutei a neve manchada de vermelho apagando quaisquer rastros.

As memórias me atingiram quando virei a esquina e procurei pelo número 68 onde morei por tanto tempo. Toda expectativa, vontade e sorrisos que eu tinha conhecido ali…minha vida antiga e toda a promessa de felicidade que ela ensaiava ser. Ainda estava tudo ali. Lembrei da primeira vez que levei Carlos àquela casa, em como ele estava nervoso e preocupado com o que eu acharia sem nem imaginar que eu já queria devora-lo de qualquer jeito. Naquele tempo, esse garoto, Pablo, ainda não tinha aparecido e eu contava para mim mesma que já tinha aceitado tudo que aconteceu. Algumas vezes até acreditava.

Não essa.

A luz do meu antigo quarto estava acesa e a ideia de ter outra pessoa ali me incomodou muito. Não havia motivos para estar nervosa, mas eu estava. Ia pisando na neve que cobria a calçada com tanta hesitação que meus pés quase não deixavam marcas. Toquei na porta e, apesar da hora avançada, a resposta não demorou. Uma senhora sexagenária muito magra e com marcas senis por todo o corpo abriu a porta simpática, por um momento tive certeza que tinha errado a casa, mas havia um quadro na parede atrás da velha senhora que eu mesma tinha comprado. Laurine era o seu nome, simpática me convidou a entrar sem a mínima desconfiança. 

A casa ainda mantinha o mesmo aspecto acolhedor e quente, apesar da decoração estar um tanto diferente. Agora que me via acolhida do inverno duro, Laurine perguntou se eu precisava de algo, perguntei por Marie dizendo que era uma amiga antiga. A anfitriã pediu que eu sentasse à mesa antes de responder. Sentou ao meu lado e não sei importou com a temperatura da minha pele quando pôs a mão na minha e disse que minha amiga havia falecido pouco menos de um ano atrás, mas que tinha lutado bravamente por meses antes de ceder à tuberculose. Ela era uma tia antiga de Marie e estava tomando conta da casa, ajustando os últimos detalhes antes de pô-la à venda. O olhar piedoso de Laurine não facilitou nenhum pouco as coisas, sentia como se toda a qualquer pessoa que um dia fora importante para mim tivesse ido embora. De repente eu percebi que, fora o meu clã, não havia mais ninguém em quem eu pudesse me abrir. Eu tinha perdido o último laço que ainda me prendia ao que eu tinha sido um dia.

Voltei para nossa casa cabisbaixa naquela madrugada. Ao abrir a porta, encontrei Lucas e duas dançarinas do Moulin Rouge no chão da sala, deitados em meio à garrafas de vinho vazias. Resolvi me juntar porque parecia ser uma diversão melhor do que ficar sozinha com meus pensamentos.

Manoela estava fora. Desde que as crises de ciúmes dela haviam se tornado mais frequentes, ela estava agindo de modo estranho. Ela nunca foi um bastião da sanidade mental, mas agora mostrava um comportamento passivo-agressivo causado pela preferência que Lucas tinha por mim e nunca fez questão de esconder. Manoela era obcecada por ele desde a sua transformação. Diferente de mim, ela pediu para ser transformada. Praticamente o obrigou a fazê-lo. Nunca soube muito bem o que ela fazia antes, mas de algum jeito descobriu quem…o que eu e o Lucas éramos.

É impossível esquecer a noite em que ele eu lia à luz da lareira quando o vi entrar em casa mantendo sua frieza de costume, mas um tanto quanto preocupado. Sentou em uma das poltronas e, como se não me visse, mergulhou em seus pensamentos. Perguntei o que havia acontecido e ele respondeu com um sorriso amarelo e os olhos frios que alguém havia nos descoberto, uma mulher. Começou a me explicar as consequências daquilo, e o assunto me pareceu realmente sério. “Eu já vi alguns clãs importantes ruírem da noite para o dia por terem sido descuidados e deixado um mortal descobrir seus segredos. Essa mulher sabe onde eu moro e está nos chantageando. Precisamos agir." – ele disse distante.

Para mim parecia muito óbvia a solução: nos livraríamos da mulher. Matar não era mais um problema para mim e Lucas fazia isso como exercício matinal. Mas era um pouco mais complexo que isso, Manoela não era exatamente burra e tinha tomado cuidado para que seu plano seguisse exatamente do modo que ela queria. Quando sugeri que emboscássemos a emboscássemos, ele disse que ela era filha de um antigo sacerdo francês que tinha abandonado o ofício para viver com uma mulher, por coincidência brasileira também. O pai havia morrido há alguns anos, mas ela tinha escrito uma carta à Ordem de Notre Dame contando onde estávamos e quem éramos, se a atacássemos essa carta iria parar nas mãos deles e poderia ser nosso fim. Claro, poderia ser um blefe mas Lucas, covarde, não queria arriscar. 

Perguntei o que faríamos então e fui pega de surpresa quando ele me disse que a convidaríamos para casa naquela mesma noite. Eu achei ser uma ameaça, mas a verdade é que Manoela tinha feito tudo aquilo por apenas um motivo: ela queria ser transformada. Por ter sido filha de um sacerdo tenho certeza que sabia o tipo de criatura que se tornaria mas, ao invés de sentir repulsa, ansiava por aquilo. E conseguiu o que queria. Victor a trouxe para casa e sentamos os três à mesa no que mais parecia ser uma reunião de negócios. Ele explicou para ela todos os termos, ela concordava com a cabeça sem objeções. 

Foi burocrático. Por Manoela não ter mais parentes próximos vivos em Paris, tudo pôde ser realizado ali mesmo. Após concordar em ser submissa às decisões do líder do clã e jurar não fazer nada que comprometesse nossa segurança, Lucas cravou os dentes em seu pescoço e pude ver o rubor abandonando seu corpo e enquanto a transformação acontecia. Eu só conseguia pensar em como alguém em sã consciência trocaria sua vida por aquilo que nós tínhamos. Se ela não soubesse, eu entenderia, mas ela tinha consciência do que a esperava e mesmo assim, literalmente, bateu à nossa porta. Eu daria tudo para que a minha vida tivesse tomado outro rumo naquela noite há tanto tempo atrás, e ver Manoela tomando aquela decisão me causou nojo. Talvez esse tenha sido o motivo de nossa relação nunca ter passado do suportável.

Mas como eu disse, nas últimas semanas a coisa havia se tornado pior. A predileção de Lucas não que isso fazia alguma diferença para mim, eu continuava fazendo as coisas que eu queria e quando eu queria. Mas parecia ser algo muito importante para Manoela. Ela era uma mulher bonita, disso eu nunca tive dúvidas. Os cabelos castanho-claros caíam como uma cascata sobre os seus ombros e seguiam até o meio das costas. Ela tinha feições doces e delicadas que contrastavam bem com seus olhos cor de mel sedutores, mais voluptuosa, tinha um corpo que agradava mais o senso comum dos homens e devia estar acostumada a chamar atenção, coisa que ela parecia gostar. Acontece que, desde a sua transformação ela conseguia atenção de todos os homens, e até algumas mulheres, que queria. Exceto de Lucas. E eu conseguir sem nem ao menos tentar deixava-a fora de si.

Coisas bobas como escolher me levar de acompanhante à um certo baile onde só tínhamos dois convites, ou me chamar para brincar com alguma presa antes de chamar a ela poderiam ser motivos de discussões homéricas. A leve sugestão de que Lucas sentia mais atração física por mim do que por ela bastava para que a casa ficasse em chamas. Manoela se descontrolava facilmente, e isso estava começando a ficar perigoso. Seu último surto até aquele dia tinha ocorrido porque Lucas tinha comprara uma pintura de Lilith para pôr na parede de nossa sala e ela, por ignorância ou ciúmes, achou que fosse eu. Os cabelos são semelhantes sim, e a pele pálida, mas fora isso era uma mulher ruiva como outra qualquer. Saí do meu quarto alarmada com os gritos, a tempo de ver Manoela quebrando a moldura com as próprias mãos e dizendo, com o dedo em riste para Lucas que não aceitaria ser “a segunda” por muito tempo. Encostada no umbral da porta eu perguntei irônica se aquilo era uma ameaça, ela se limitou a  me responder com um olhar fuzilante e saiu batendo a porta.

Alguns dias depois da apresentação de ballet que fui, haveria uma exposição no Louvre a qual também fomos convidados, mas somente um par de convites. Naquela época o museu ainda era recente e não tinha todo o glamour nem a tradição de hoje em dia, de modo que recebia obras de artistas menos conhecidos esporadicamente. Normalmente, apesar da insistência de Lucas, eu recusava e Manoela acabava indo com ele a este tipo de evento. Lembro que houve um programa parecido alguns meses antes e eu pude ouvir os dois se divertindo quando voltaram, mesmo com a porta fechada do meu quarto. Parecia que Manoela precisava marcar um território que eu nunca me importei em possuir. 

Eu costumava recusar, no entanto, Lucas disse que um conhecido meu estava relacionado entre os artistas convidados a expor. Era verdade, reconheci o nome de um ex-namorado de Marie que por um tempo frequentou a nossa casa, pensei que poderia ter mais detalhes com ele sobre os últimos dias dela e aquilo serviu de alento para melhorar minimamente uma noite que tinha sido horrível. Comentei que tinha mudado de ideia e que dessa vez iria acompanha-lo.

Quando acabamos com as dançarinas, eu fui para o meu quarto. Manoela ainda não tinha retornado.

A exposição estava marcada para a noite seguinte e, depois que criei coragem para levantar do caixão, fui pegar o jornal que a nova entregadora trouxera na noite anterior. No caminho até a sala eu ouvi Manoela cantarolando em seu quarto e presumi que ela estivesse de bom humor. O que era ótimo, porque eu não estava com o mínimo pique para uma outra briga daquelas. 

Voltei para o meu quarto com o jornal e acendi o abajur. Apesar de ser o final da tarde, as nuvens de dezembro nos davam noites precoces em Paris, mas eu preferia cobrir minhas janelas mesmo assim.

No meio da minha leitura, Lucas abriu a minha porta sem bater, coisa que eu odiava, perguntando curioso: “Foi você que se livrou dos corpos das meninas ontem?” e do quarto de Manoela veio a resposta: “Fui eu. Cheguei ontem bem tarde e vi a sujeira que vocês deixaram.” - ouvi os passos dela atravessando o corredor - “Mas não tem problema, hoje à noite você ‘lava a louça’.” e roubou um beijo de Lucas. Respirei fundo e perguntei “Hoje à noite?”, Manoela ainda abraçada nele desse com um sorriso largo: “É, acho que podemos nos divertir um pouco depois daquela recepção chata, não é? Afinal de contas quem acha que aquele museu vai dar em alguma coisa mesmo?"

Lucas não tinha contado a ela, e nem contou naquele momento. Fui eu quem falou “Não, Manoela. Eu é que vou ao Louvre com Lucas hoje. Você nunca ligou pra arte mesmo, é melhor que eu vá. Resolvi aceitar o convite.”. Ela olhou para mim confusa, depois para Lucas e seus olhos sem expressão. Tirou os braços do e começou a botar para fora tudo aquilo que só dizia em indiretas. 

Enquanto esbravejava aos quatro ventos que eu era uma cobra, que jogava Lucas contra ela, que aproveitava as saídas dela para seduzir o seu homem, seu tom de voz ia aumentando e me incomodava cada vez mais. Pedi calmamente que ela saísse do meu quarto. Três vezes. Ela continuou esbravejando e não só recuou, como avançou em minha direção. Manoela era maior do que eu, em qualquer medida, mas eu estava transformada há mais tempo e conhecia melhor minha força. A peguei pelos braços e usei seu próprio impulso para joga-la em minha estante de livros. Rapidamente olhei para Lucas esperando que ele me ajudasse a conter Manoela, mas o filho da puta estava gostando de ver nós duas brigando pela sua companhia e apenas sorriu.

Enquanto Manoela tentava se livrar dos livros que caíram em cima dela com o impacto, eu sentei em suas pernas e a mantive no chão com as unhas fincadas em sua garganta. Meu stiletto foi tão fundo que ela chegou a sangrar. Só quando vi calma de novo em seus olhos foi que saí de cima dela e mandei os dois para fora enquanto lambia meus dedos. 

Consegui ouvir gritos de raiva e alguns socos na parede do corredor mesmo com a porta fechada e me diverti. Ouvi também a porta de casa batendo num baque seco e preciso. Manoela saíra como ela fazia sempre que as coisas não iam de acordo com a sua vontade de menina mimada. Eu precisei refazer as unhas depois da briga, e talvez por nostalgia ou por saudade, escolhi o esmalte preto que só usava em ocasiões importantes e separei meu vestido favorito do armário. Era o mesmo que eu usava quando conheci Carlos. Ele disse que viu minha apresentação cinco vezes antes de tomar coragem e esperar duas horas na chuva só para falar comigo na saída do theatro. O vestido era um pouco curto para o inverno, por isso também resolvi colocar botas três oitavos e luvas que cobriam até o cotovelo. E um batom russo, vermelho.

Perto da hora marcada para que o cabriolet chegasse, peguei um casaco de inverno também preto e fui até a sala. Lucas já me esperava lá de smoking e gravata borboleta. Nunca houve competição entre eu e Manoela, mas se tivesse havido uma, ela sequer teria tido uma chance. O cocheiro tocou a campainha fomos para uma noite que não sairia como o esperado.

Fiquei em silêncio a maior parte da viagem, observando a neve que caía e batia no meu lado da janela. Mesmo estando alheia ao caminho, percebi o cabriolet reduzindo a velocidade conforme nos aproximávamos do museu. Depois de alguns minutos, o cocheiro parou, desceu de seu posto e veio nos avisar na cabine que a polícia havia feito um cordão de isolamento no lugar. Algo tinha acontecido. Realmente, o caminho desde a Place du Carrousel até a pirâmide estava obstruído. Lucas, polido, agradeceu o senhor enquanto dava-lhe o pagamento da corrida quando descemos e seguimos a pé.

Pude ver a praça apinhada de gente e Lucas foi abrindo espaço entre as pessoas que pareciam não conseguir negar passagem. Procurei o policial mais próximo de mim e perguntei o que havia acontecido. Mesmo insistindo ser informação confidencial, ele não pareceu se importar em contar após eu pedir uma segunda vez e me disse que um dos artistas convidados havia sido atacado por uma criminosa. Estrangeira, ele disse. Provavelmente inglesa, porque só os britânicos poderiam ser tão cruéis ao ponto de atacar daquele jeito alguém. “Mas é preciso dar um crédito à moça também.” - ele dizia ainda um pouco atônito - “Derrubar alguém tão forte quanto aquele homem somente com mordidas não era algo que muitos homens fariam, uma mulher então…”. No meio da frase o homem foi atraído pelo inconfundível som de uma luta. Pediu que eu esperasse onde estava enquanto ele ia checar, mas cheguei à multidão antes dele de muitos de seus companheiros.

A cenário não era bom. Lucas tentava conter Manoela que tinha voltado à cena e agora armava um escândalo. Todos os mortais que estavam presentes ali, desde os de posse que haviam sido convidados para a  exposição até os mendigos que apareciam curiosos estavam vendo aquilo. Manoela estava com os lábios, dentes e pescoço reluzindo de sangue fresco. Suas roupas estavam manchadas e rasgadas, os olhos assassinos estavam vermelhos como rubis. Não temos reflexos, então eu nunca pude saber, mas se for assim que nos parecemos sempre que estamos em ataque, o horror das vítimas é justificado.

Lucas tem uma frieza e impassividade à frente de problemas que faz a maioria das pessoas achar que ele está seguro e tem a situação sob controle, mas eu o conheço o bastante para saber quando ele sabe que as coisas não estão indo bem. As pupilas dilatadas e sobrancelhas cerradas me davam pistas de que estávamos em apuros. Manoela avançava sobre ele cegamente, que se esquivava sem revidar. Um homem maltrapilho ao meu lado disse “Ele está tentando tirar ela da multidão.” e ele estava certo! Lucas não estava se esquivando apenas, ele estava recuando em direção à área que estava isolada. Tirar Manoela dos olhos dos mortais era sua prioridade. Entendi o que ele estava fazendo e resolvi me aproximar, apesar de ainda estar no meio da multidão, para quando tivesse a melhor oportunidade, imobiliza-la e minimizar maiores problemas.

Foi então que eu ouvi.

Muito discreta, propositalmente baixa. Audível o suficiente para me incomodar como uma agulha que é enfiada lentamente por baixo das unhas, mas não para que eu pudesse perceber de onde vinha. Era uma oração. Minha sede começou a piorar repentinamente e minha concentração ficou comprometida. Percebi que apesar de estar sofrendo seus efeitos, eles estavam sendo piores em Manoela e Lucas. Eu era apenas um alvo indireto.

Foquei toda concentração que tinha naquela voz que reconheci  ser de uma mulher. Ela não tinha me percebido, e essa foi a nossa sorte. A moça era boa, a melhor que eu já vi. Boa e corajosa, pois estava sozinha, mas estava confiante de que não teria problemas. Enquanto tentava fazer contato visual, vi Manoela levar as mãos aos ouvidos como se quisesse causar uma surdez momentânea cair sobre seus joelhos. Lucas foi em sua direção à passos largos. Rápida como uma flecha naquela cena quase estática, nossa caçadora saiu da multidão com um crucifixo na mão erguida acima da cabeça. Foi a primeira vez que vi o efeito que aquela coisa tem sobre nós. Lucas, quando explicou, não fez jus ao que era. 

Da arma da saiu uma luz tão brilhante quanto eu me lembrava ser a luz do sol. Lucas tentou proteger os olhos com os braços mas começou a queimar e pelo que eu vi, ficou momentaneamente cego. Se a mulher continuasse a insistir nele, talvez só restassem as cinzas, mas seu foco de ataque mudou para Manoela. Numa sequencia de movimentos que parecia ter sido ensaiada, vi a sacerda enrolar um cordão de dentes de alho no pescoço de Manoela que ainda estava ajoelhada à sua frente, cruzá-lo sobre as mãos e puxar as pontas. Lentamente a corda de alhos ia afundando em sua pele e, em não muito tempo, Manoela não teria mais a cabeça sobre os ombros.

Eu não pensei, quando percebi já estava abrindo caminho pela multidão com toda a velocidade que tinha até parar atrás da mulher que quase acabou conosco. Eu podia perceber as pessoas ao meu redor me olhando com o mesmo terror que olharam para Manoela, mas isso não me impediu. A mulher era rápida e visivelmente bem treinada, mas não conseguiu travar a sua ação quando me percebeu. Atacando pelas costas, agarrei seus antebraços e puxei para baixo de uma vez, sentindo suas escápulas deslocarem. Manoela tombou quando a pressão sob o cordão de alhos cedeu e, ainda no chão, segurou as pernas da mulher enquanto eu chupava seu pescoço depois de tê-lo quebrado.

A maioria dos mortais correu da praça em polvorosa e os poucos policiais que restaram atiravam balas que não nos feriam. Lucas, já recuperado me tirou do frenesi arrancando a mulher de mim sem dificuldades. Ajudou Manoela a levantar com uma mão estendida e desprezo nos olhos. Dizendo cada palavra como se lhe custasse toda calma que tinha, ele mandou que voltássemos para nossa casa imediatamente.

A super velocidade ajudou, éramos mais rápidos que qualquer cabriolet ou carruagem da época. Não houve bate-boca quando entramos em casa. Manoela afundou numa das poltronas de nossa sala chorando e se mostrando verdadeiramente arrependida do que fez e Lucas que parecia ter esquecido todo o ocorrido, consolava-a. Eu estava com muito frio e acendi a lareira para que pudéssemos ter algum conforto enquanto pensávamos o que faríamos a seguir. Pude ver Lucas indo até as costas da poltrona onde Manoela estava sentada soluçando e disse a ela com voz de veludo que tudo estava bem, enquanto fazia carinho em seus cabelos longos. Calmamente, ele diz que sabe que ela estava arrependida de tudo o que aconteceu, e que não iria se repetir outra vez. Manoela concorda com a cabeça, e pude ver seus soluços acalmando e se tornando mais espaçados. Lucas desceu dos seus cabelos para seu pescoço.

O barulho foi seco. Como um galho de uma arvore morta que quebra sob o peso do acúmulo de neve. Lucas girou o pescoço dela tão rápido que eu mal vi seu movimento até ele estar terminado. Manoela continuou sentada do mesmo modo que estava, só que agora seu rosto fitava o encosto da poltrona enquanto seus cabelos eram iluminados pelo fogo de nossa lareira. “Você está arrependida, pena que é tarde demais.”

Seria mentira dizer que senti sua morte, Manoela nunca foi próxima à mim. Mas tive sim um choque vendo aquela cena. Uma das coisas que Lucas me dissera logo nos meus primeiros dias como vampira foi que nossa classe só tem uma lei, a que condena que nos matemos exceto se algo muito grave for feito. E sim, Manoela tinha feito algo que pôs em risco nossa segurança. Mas mesmo assim não foi algo fácil de ver. Lucas pôs seu corpo na varanda onde, quando o sol nascesse, seria banhado pela sua luz e em questão de minutos não seria nada além de cinzas. Quando voltou, sentou ao meu lado e perguntou se eu tinha alguma ideia do que poderíamos fazer agora com a mesma naturalidade de quem pergunta o sabor de pizza que deve pedir ao telefone.

A noite tinha sido longa demais, uma sequência de acontecimentos inesperados que saiu do controle. Eu estava exausta, física e mentalmente. Lucas não pediu urgência na resposta, mas seus olhos inquisidores sim. Pensei em lugares da França que eu já tinha conhecido, se algum deles seria um bom lugar, mas mesmo a fortaleza murada de Mont Saint-Michel, o lugar mais seguro que pude me lembrar parecia ser suficiente. E como uma epifania que se torna óbvia depois que é tida eu percebi: não existe lugar mais seguro que o nosso lar. Então foi com segurança que eu afirmei: “Vamos voltar para o Brasil.”

Lucas me olhou intrigado. Vi um sorriso brotar em seus lábios enquanto seus pensamentos se concatenavam em uma fuga bem sucedida. “Isso! Vamos até Grenelle, lá tem navios de carga com vinhos que são enviados para o Novo Mundo diariamente! Os virgenzinhos vão nos procurar pela França, no máximo pela Europa, mas vão demorar para ir tão longe...Acredito que devemos deixar tudo como está. Eles vão achar que ainda estamos por perto. Vamos levar apenas a roupa do corpo e os caixões. Precisamos correr, - olhou o relógio - acho que tem um carregamento saindo às 3am. Carolina, você é incrível!”

Era irônico ouvir a palavra que Carlos mais usava para me representar nos lábios de seu assassino com o mesmo significado. E foi exatamente na ironia que eu pensava enquanto ele tomou meu rosto nas mãos e beijou um beijo gelado. “Agora não tem mais ninguém para nos atrapalhar”, ouvi Lucas dizer, quando me derrubou no tapete e rasgou meu vestido favorito. Da onde eu estava, conseguia olhar para o corpo de Manoela na varanda.

De fato, era irônico.

E foi assim, por um ataque de ciúmes imaturo que eu me vi, algumas horas depois, no convés de um navio que cruzava o Atlântico e me levava de volta para casa."