Eu não pude me conter.
Avancei sobre Catharina e dei-lhe um abraço tão forte que senti as
minhas próprias costelas doerem. Carol estava viva, agora os
ferimentos não doíam mais.
- E depois?
- Como assim, depois?
- Depois…depois que
ela falou com você sobre não me deixar mais sozinho, o que
aconteceu?
- Nada. Ela foi embora,
e eu entrei. Não tinha mais nada para acontecer.
- É que eu pensei
que...
- Não é como se eu
fosse chamá-la para entrar e tomar um chá enquanto esperávamos
vocês voltarem.
- Eu sei, mas ela não
disse mais nada? - meus pés começavam a voltar ao chão agora -
Aonde ela tem ficado ou quando faria uma visita, algo do tipo.
- Pablo, eu vou ser um
pouco dura agora, mas é para o seu bem. Ela sabe onde você mora,
sabe até onde você estava essa noite. Se ela quisesse mesmo, se ela
ao menos se importasse, você não acha que ela já teria aparecido?
- ela estava certa, foi algo duro de se ouvir, como eu não tive o
que responder, ela continuou - Carolina prejudica e tira sua vida dos
eixos há séculos. Depois do último “encontro” de vocês,
talvez ela finalmente tenha percebido o quanto é perigosa estando
perto de você, e agora quer deixar você seguir a sua vida. Pelo
menos esta.
Eu me afastei, não
queria continuar aquela conversa. Não queria mesmo ficar perto de
Catharina naquele momento. Eu estava confuso, conseguia sentir que
havia algo errado. Alguma coisa não batia, não faria sentido
Carolina ter ido até a Candelária atrás da minha protetora cobrar
um serviço mais presente se ela não se importasse mais comigo.
Catharina passou a mão pelos cabelos e me devolveu um daqueles
olhares preocupados que eu não suportava. Não voltei para a cadeira
que ela sugeria que me sentasse novamente. Fui até a minha valise,
que graças à luta agora estava bastante arranhada, quando ela
segurou a minha o meu pulso. Catharina não aparentava estar fazendo
força, mas eu tentava desvencilhar o braço dos seus dedos com tudo
que tinha e eles não cederam.
- O pior de tudo isso é
que ela realmente tinha razão. Eu não posso ser mais tão
descuidada com você assim. O que teria acontecido se ela não
tivesse parado naquele dia? Como eu conseguiria olhar para você
morto outra vez por ter sido mais sua amiga que sua protetora? Não,
Pablo - a porta do apartamento se fechou delicadamente e eu consegui
ouvir seu tranco passando - dessa vez não.
- Você não pode fazer
isso. Me deixa ir! - puxei o braço e dessa vez ela soltou.
- Ir aonde? Atrás
dela? Você pode fazer a loucura que quiser, Pablo, mas não ferido
depois dessa confusão toda.
- Abre a porta,
Catharina, agora! Você não está indo contra tudo aquilo que você
me disse? Contra o meu direito de escolha, livre-arbítrio e tudo
mais?
- Talvez eu esteja.
Tive uma ideia, se você está tão incomodado, por que não chamamos
Ganthen aqui e contamos o quanto você quer sair por aí nesse estado
pra ir encontrar sua vampirinha? Aí a gente vê quem tem razão.
- Ah, você aprendeu a
ser irônica agora, é? Para, porque não te cai bem.
Bati a porta do quarto
com força e abri a janela. Três andares e uma parede lisa que não
tinha nada pra me ajudar a descer, eu não sobreviveria à queda.
Percebendo que não tinha nada a ser feito fechei a janela e sentei
na cama. Eu nunca tive tanta raiva de Catharina quanto naquela
madrugada. Olhei para o chão, ainda com resquícios do giz que eu
usei nas marcas daquele ritual improvisado para chamar Carol, e
tentei entender algum motivo lógico por ela estar bem e não ter me
procurado. Acho que muito da minha raiva, na verdade era medo. Medo
de Catharina estar certa e nunca mais ver Carol de novo. Resolvi
tentar dormir para afastar este pensamento mas antes me levantei
outra vez.
Caso ela aparecesse, a
janela deveria estar aberta.
+++
Apesar de estar
exausto, não dormi aquela noite. Carol não apareceu. Por volta das
10am, Catharina bateu gentilmente na porta. Ela estava arrumada,
Catharina sempre se produz quando está incomodada com algo, acho que
é o jeito dela sentir que está dando o melhor de si naquela
questão. Se até os anjos podem ser vaidosos, acredito que este é
um pecado bem perdoável.
Ela sentou na cama. Eu
recolhi as pernas e me sentei também. Depois de um tempo ela quebrou
o silêncio dizendo:
- Eu esqueci de limpar
o giz no chão.
- Não precisa, aquilo
pode ficar.
Precisei de mais dois
dias até estar totalmente recuperado e poder me apresentar novamente
à ordem. Catharina passou estes dois dias comigo, mas na maioria do
tempo em algum cômodo onde eu não estava.
Ao retornar, meu
treinamento continuou, mas acredito que este seja um bom ponto para
pausar a narrativa. É hora de contar algo importante antes de seguir
com a história. Na época eu estava perdido em dúvidas e
insegurança. A saudade dela só não era maior que o medo de não
ver Carol de novo, mas no fim das contas eu estava certo. Havia sim
um motivo para sua ausência que eu só descobri algum tempo depois,
quando ela me mostrou um caderno que usava como diário e relatou
tudo o que pensava durante os dias que tentou me deixar.
Como tudo que ela
deixou aqui, este caderno é extremamente valioso, e não só pela
capa de couro levemente rosea, decorada com um mosaico geométrico de
padrões elegantes, daqueles que a gente vê princesas carregando em
filmes de época. Ele é valioso, porque é em suas páginas que eu
encontro as palavras dela e, se eu fechar os olhos, até consigo
ouvi-la falando comigo. O que vai ser relatado a seguir faz parte dos
relatos que ela escreveu:
“Rio de Janeiro,
28/04/2015
Não consigo me lembrar
quando foi a última vez que usei este caderno. Folheando algumas
páginas de seu início, encontrei alguns escritos que eu fiz onde
pontuo a data, mas com o tempo elas vão desaparecendo. Quando se tem
séculos de vida, datas parecem não ter importância. São
desprezíveis.
‘Desprezível’, eu
sempre odiei essa palavra. Entendo que desprezível é algo tão
baixo que não é capaz nem mesmo de causar incômodo. Algo que não
se registra e não se sente falta. Alguma coisa que, mesmo estando
ali, não se nota. Odeio esta palavra e tudo que ela representa, mas
era exatamente assim que eu me sentia durante boa parte do último
século. Desprezível.
Lucas é sádico,
calculista e não confiável. Narcisista, ele transformou a mim,
Manoela e Biatriz apenas por vaidade. Se bem que, no meu caso, acho
que houve certo teor de vingança também. Muitas vezes eu o odiei,
no inicio principalmente. Ele queria manter nós três para ele, é
difícil se encontrar depois da transformação. Tudo muito novo,
amedrontador. Éramos reféns de seu conhecimento e ele queria manter
as coisas assim.
Cortar relações com
meus pais foi o mais difícil. Via as cartas da minha mãe acumulando
no meu quarto em pilhas e todas as suas preocupações que machucavam
mais do que sede que eu sentia. Eu estava em frangalhos naqueles
primeiros meses após a transformação. Tudo que eu queria era
responder a minha mãe, contar a coisa horrível que havia acontecido
comigo. Só que Lucas me alertou para não fazer aquilo, que um único
raio de sol seria fatal para mim e que, ainda que encontrasse meus
pais à noite, avançaria sobre eles como um animal. Assim como fiz
com Carlos.
Lembro da sensação de
angústia que senti, alguns dias após ter escrito uma carta para
minha mãe simulando um agente funerário que relatava minha morte,
ao ver um retrato meu na primeira página do Le Figaro, ilustrando
uma matéria paga pela companhia de ballet que eu trabalhava.
"Primeira-Bailarina desaparecida há semanas", era o que
dizia, e em seguida relatos de algumas de minhas colegas e até da
diretora da companhia, que eu achava nunca ter gostado de mim.
Lagrimas molharam o jornal quando li que Marie dizendo que eu era a
melhor colega de quarto que alguém poderia ter, ou mesmo Juliette,
de quem peguei o papel principal no último espetáculo, dizendo que
eu era a alma da companhia. Aquelas pessoas eram minhas amigas, foram
minha família desde que eu cheguei em Paris, e apesar de à essa
altura Manoela já ter sido transformada e estando ao meu lado todas
as noites, eu me sentia sozinha.
Na maior parte do tempo
eu evitava pensar nele e até tinha algum sucesso, mas as noites eram
longas e cedo ou tarde ele voltava aos meus pensamentos. Carlos foi a
melhor pessoa que eu conheci, sempre fui relutante em me abrir ou
confiar em outras pessoas, mas com ele isso era tão natural que eu
não pude evitar. Eu conheci muitos homens, homens que enxergavam o
meu corpo, e eu nunca achei isso um problema. Até acho que alguns
deles estavam realmente interessamos em mim. Mas Carlos era
diferente, apesar de ter flagrado dois ou três olhares discretos
quando eu passava, sabia que isso era o que menos importava para ele.
Para ele, eu não precisava ter o cabelo mais bonito ou os maiores
peitos do mundo, eu só precisava ser eu, Carolina, e isso bastava.
Não acho que alguem já tenha sentido ser o bastante para alguem,
como eu era para ele. Eu não acredito no amor, mas se ele existir,
era bem parecido com o que Carlos sentia por mim. Ele foi me
contaminando com esse sentimento de modo que, quando eu vi, já não
tinha mais volta.
Eu, Carolina LeBion,
moradora do bairro mais boêmio de Paris, apaixonada por um padre.
Seria cômico se não fosse a culpa. Eu o convenci a largar a batina
sem dificuldades. Sabia que ele aceitaria a ideia de fugirmos juntos
no momento que eu a fizesse. Seu único pedido foi algumas semanas
para se resolver com a igreja e não sair fugido. Se eu não tivesse
me precipitado e comprado as passagens para Londres num trem noturno
para dali a dois dias ele ainda estaria vivo.
Eu não tinha mais
necessidade de dormir, e mesmo assim esse pensamento me vinha algumas
vezes ao deitar. O pior tipo de pesadelo é aquele que temos enquanto
estamos acordados. Toda vez que esse pensamento me afligia, somado ao
sentimento profundo de solidão e tristeza que toda aquela situação
causava, eu pensava em suicídio. Cheguei a tentar algumas vezes. Mas
facas não perfuravam minha pele, nem fogo queimava. Nem mesmo um
revólver foi capaz de ferir. Eu poderia me jogar ao sol, mas por não
confiar em Lucas, não poderia ter certeza do seu efeito fatal. Não
queria que restasse nada de mim para sofrer as retaliações por ter
exposto o clã. Sim, era disso que eles nos chamava, "o seu
clã". Então optei por tentar uma forma de suicídio mais
discreta e silenciosa: a inanição.
No ato da minha
transformação, eu suguei Carlos até a última gota, por isso a
sede demorou algum tempo até se tornar insuportável. Foram semanas
até sentir a garganta queimar de novo. Mesmo assim eu resisti,
pensar no seu corpo, estirado na chuva e o meu por cima dele fazia eu
perder o apetite. Mas as vezes, mesmo sem apetite, seu organismo
grita por alimento e, em nós isso toma contornos irracionais.
Seis semanas depois de
transformada, eu fiz minha primeira vítima.
Lucas gostava de se
manter informado e, como éramos impossibilitados de sair durante o
dia, ele fez um acordo com uma funcionaria da edição do Le Figaro,
provavelmente seduzindo-a. Todas as noites a campainha de nosso
apartamento tocava religiosamente às 22h trazendo edição que
sairia apenas no dia seguinte para o resto de Paris. "Um dos
muitos privilégios que a nossa classe deveria gozar", segundo
Lucas. Por ser reclusa, passava a maior parte do meu tempo no quarto,
onde tentava fazer qualquer coisa para não pensar na minha condição.
Geralmente o próprio Lucas atendia a porta, e depois de alguns
minutos mandava a pobre mulher embora. Nas vezes que ele estava
ausente, Manoela fazia este serviço, de forma muito menos cordial,
devo dizer.
Neste dia específico
houve uma festa em Montmartre. Não consigo lembrar ao certo sobre o
que era, mas Montmartre por si só já era uma festa, então não faz
diferença. Lucas e Manoela foram, eu não quis ir, a Sacre Coeur era
logo ali em cima, não aguentaria mais chegar sequer perto daquelas
escadas sem que pensasse em Carlos. Ainda hoje o efeito é o mesmo.
Estando em casa, restou
a mim receber a mulher dos jornais. Como sempre, ela bateu à porta
pontualmente. Até então, só tinha ouvido sua voz abafada através
das paredes. Ao olhar para ela, achei que Lucas nem teria precisado
ser um vampiro para seduzir aquela pobre mulher. Gorda, atarracada,
de feições grossas, e com um sinal que os irmãos Grimm botariam em
suas bruxas, aquela mulher era certeiramente uma das coisas menos
atraentes que eu já vira na vida, mas algo nela me atraía. "Joulie
Anne", ela se apresentou, e perguntou por Lucas. Parecia
nervosa, quando eu disse que ele não estava, mas perguntei se ela
não queria se sentar e descansar um pouco da caminhada. Antes que
ela pudesse responder, a trouxe para dentro do apartamento com um dos
braços, enquanto fechava a porta com o pé. Me surpreendi com a
facilidade que eu movi aquela mulher certeiramente quatro vezes mais
pesada que eu.
Então percebi, era seu
cheiro. Seu cheiro que me atraía daquele jeito. Não como um
perfume, era um cheiro mais profundo. Minha garganta começou a
queimar e a dor do meu estômago aumentava. Por um breve momento
pensei em manda-la sair do apartamento, mas logo em seguida a joguei
contra a porta fazendo certo barulho. Eu estava consciente do que
estava fazendo, mas não controlava meus atos. Tudo que meu corpo
sabia era que precisava do sangue de Joulie Anne. Ela tentou me
empurrar de volta com seu corpanzil enquanto gritava por ajuda. Vetei
seus lábios com a minha mão esquerda enquanto dei um chute em seu
joelho para que seu pescoço ficasse na minha altura. Eu ouvi o osso
quebrar e senti a fina camada de pele cedendo aos meus dentes sem
resistência. Joulie Anne se debatia, mas minhas mãos eram chumbo,
mesmo eu não acreditava na facilidade daquilo tudo. Seu sangue saía
da jugular com pressão e eu puxava ainda mais com o vácuo que
criara com meus lábios.
Não sei dizer quanto
tempo demorei até me dar por satisfeita, mas quando terminei me
sentia cruelmente bem. A sede acalmara, meu estômago não incomodava
mais e mesmo meus pensamentos pareciam estar mais claros agora. O que
não foi exatamente bom, pois eu tinha acabado de assassinar alguem
pela primeira vez. Eu, sentada ao seu lado do corpo de Joulie Anne,
ainda tentava processar tudo aquilo enquanto sentia o sangue dela
ressecando nos meus lábios e pescoço, mas não queria tirá-lo
dali. Eu queria seu gosto na minha boca o quanto pudesse deixar.
Lembrei que Lucas, após
ter me transformado, disse que meus conceitos iriam se moldar à
minha nova vida, que a sede seria mais forte e que eu ia acabar me
acostumando à isso. Era isso que eu era agora e eu deveria aceitar.
Eu estava aterrorizada naquela noite, era tudo muito diferente! Mesmo
sendo noite e estando debaixo de uma chuva covarde, meu olhos viam
cores que eu não saberia nomear. Pude ouvir nitidamente, mesmo
estando ruas distante, o maquinista do trem fazendo a última chamada
do embarque para Londres. O nosso trem.
Os cachos de Carlos
encharcados numa poça que misturava agua e seu próprio sangue foram
a última coisa que eu registrei antes de avançar para o corpo dele.
Eu ouvi a voz de Lucas me incentivando com um prazer quase sexual,
sabia que ele estava olhando e sabia que ele estava gostando.
Continuei até que não sobrasse nada. As lágrimas vieram quase que
automaticamente. “O que está acontecendo comigo?”, lembro de ter
perguntado enquanto me afastava do homem que me observava satisfeito.
Não precisava de luz para analisar suas feições. Os cabelos pretos
e escuros não pareciam ter mudado muito com a agua, tinha
sobrancelhas marcantes e olhos sedutores. O nariz era um tanto quanto
largo mas combinava com seu sorriso descompromissado. Lucas era
atraente, mesmo no estado em que me encontrava consegui notar isso.
Ele se aproximou de mim
em silêncio, e eu só percebi que estava recuando quando bati com as
costas numa parede da rua. Desviei o olhar por um segundo e ele já
estava diante de mim, suas mãos nos meus pulsos manchados de sangue.
Ele levantou meus braços até acima da minha cabeça com facilidade
e senti sua língua passando pelo lugar ainda sensível onde ele me
mordera. Era fria como neve, mas me deixava excitada. Como?! Como eu
poderia pensar nesse tipo de coisa depois da cena que acabara de
acontecer?
“É bom, não é?”,
por um momento eu não soube do que ele estava falando, mas
concordei, “O sangue descendo pela garganta. A vida daquela pobre
criatura passando para você.”. Durante os anos eu fiz a mesma
coisa com muitas as minhas vítimas, mas naquela noite, era eu que
estava sendo seduzida. Ele me soltou e me deu as costas. Ao passar
por Carlos, chutou-o com um movimento leve, mas que fez o corpo voar
alguns metros na rua.
“O que aconteceu?”
perguntei entre soluços, “O que eu fiz?”. A resposta de Lucas,
foi uma espada: “Eu só lhe dei um pequeno presente. E você foi
muito bem, devo dizer. Fez exatamente o que deveria fazer à essa
escória mortal. Agora venha comigo, vou te levar para casa."
O apartamento fedia na
primeira vez que entrei lá. Meu olfato, agora mais sensível,
percebia cheiro de suor, sangue seco e vinho impregnado ao ambiente.
Estava sendo guiada por Lucas ainda tentando me acostumar àquelas
sensações e me convencer de tudo que havia acontecido aquela noite.
Ele mandou que eu tomasse um banho enquanto providenciaria novas
roupas para mim e me levou até o banheiro. Me pus de frente ao
espelho que ficava à esquerda banheira para ver como eu estava e
lembro do choque que tive ao não encontrar nada ali. Depois do
susto, as lágrimas voltaram, tirei meu vestido sujo e encharcado - o
vestido havia sido escolhido propositalmente por ser o favorito de
Carlos - e o atirei do outro lado do banheiro, quando ouvi a porta se
abrir outra vez. Primeiro, estranhei o fato de Lucas já estar de
volta em tão pouco tempo, mas depois lembrei que não conseguia
precisar quanto tempo eu fiquei ali naquele banheiro. Eu não queria
que ele me visse daquele jeito, então recuei até a banheira, mas
antes de conseguir cerrar a cortina a porta se abriu. Demorei alguns
segundos para reconhecer Catharina. Naquele tempo sequer lembrava o
nome dela, mas seu rosto é algo que você não esquece de ter visto.
Contei a ela, aos soluços, tudo que acontecera e repetir toda aquela
noite maldita com palavras deixava tudo ainda mais doloroso. No fim,
concluí que não queria mais viver, não queria ser daquele jeito.
Pedi, implorei, para que ela me matasse. Catharina revelou para mim
quem era realmente e com um certo prazer no olhar decretou que eu
deveria viver com aquilo me atormentando. "É o que uma criatura
baixa como você merece, demônio."
Ela me deixou ali,
coberta em sangue e lágrimas, no chão gelado. Nunca fui religiosa,
apesar dos desejos da minha família, mas esse tipo de atitude é
muito interessante para quem se proclamava ser "do lado da luz".
Durante os anos encontrei Catharina algumas vezes e, apesar de nunca
ter dito isso, eu sinto que ela odeia nossos esbarrões tanto quanto
eu.
Matar Joulie Anne para
me alimentar pesou em mim, mas não tanto quanto Carlos pesava.
Demorei alguns dias para que eu sentisse sede outra vez, e quando
aconteceu, as palavras de Catharina ecoaram em mim e não hesitei em
atacar novamente. A morte seguinte não demorou, nem as outras depois
dela. Com o tempo, passei acompanhar Lucas e Manoela pelas noites de
Paris, Lucas gostava de ver nós duas em ação, como seduzíamos
atraíamos os escolhidos de cada noite. Homens eram alvos mais fáceis
e Lucas não parecia se incomodar que eles fossem nossa preferência.
Manoela e eu costumávamos levar jovens garotos da universidade ou
militares da coroa para casa quase diariamente para o apartamento. Eu
percebia o desejo em seus olhos e a excitação nos seus corpos.
Também o terror em seus olhos quando finalmente percebiam. Confesso
que gosto da sensação de poder, sempre gostei, e passado o primeiro
ano de minha transformação eu já não me importava mais em matar.
Muitas vezes fazia mais por tédio do que por sede realmente.
Por quase duzentos
anos, nunca pensei duas vezes antes de atacar um mortal. Até hoje a
noite. Máira me chamou para dar cabo de um desafeto que ela tinha
arrumado, como já fizemos em muitas outras noites. Deixei que Máira
começasse a se divertir enquanto eu observava, gosto de ver até
onde eles aguentam. Confesso que o garoto me era familiar à
distância, mas não me ative muito a este fato até Catharina
aparecer. Tudo parecia um déjà vu de mal gosto até o garoto
cortar a própria mão. Não tive tempo de entender se por sorte ou
de propósito, sua mão vermelha oferecida me fez entrar em cena sem
pensar muito e foi só quando eu estava sobre ele preparada para
atacar que vi.
Carlos. O garoto não
era só parecido, mas ele era exatamente igual a Carlos! Os cabelos
mais curtos e a barba por fazer, é verdade, mas sem dúvidas era
ele. Não demorei a perceber, demorei a acreditar. Fiquei alheia à
situação; não ouvia mais Maíra ou Catharina. Eu não sei o que
houve essa noite, ele voltou, e eu estava sobre ele enquanto chovia.
Do mesmo jeito que tudo acabou quase duzentos anos atras. Já estou
acostumada à saudade, mas agora que cheguei em casa ainda com a
cabeça girado do que acabei de ver, percebi que também estou
sentindo algo que já tinha esquecido o que significava: esperança.
E medo.”
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