Todas as referências que eu tinha de filmes ou histórias
fantasiosas sobre possessão não conseguiam dar conta da insanidade que era
aquilo. Uma marionete sem fios, era como se alguma mão invisível e maligna
estivesse escondida sob o véu da escuridão no teto da casa e estivesse fazendo
Júlio dançar.
Começou sem música, os pés batendo com força no chão,
fazendo barulhos propositais. A luz do meu terço erguido me permitia ver muito
pouco além daquela cena, mas minha visão periférica ainda captava a presença de
Victor à minha esquerda. O rosário pendia da sua mão direita que estava levada
à boca, os olhos estavam tão vazios quanto os de nosso inimigo, que não os
tinha. Em algum lugar no interior da casa abandonada uma vitrola arranhou um
disco que começou a tocar uma melodia fúnebre que eu nunca ouvira antes. Era um
piano melancólico e cadenciado que ditava os passos e movimentos de Júlio de
forma artificial e doentia. Pouco a pouco, a música o levava para perto de nós.
E eu observava a tudo, atônito.
Catharina sempre disse que havia em mim uma esperança cega e
injustificada, e que isso era uma qualidade que poderia me matar algum dia.
Atitudes como a que eu tive naquele dia me fazem acreditar que ela estava
certa. Sem pensar eu corri até Júlio para tentar trazê-lo de volta a razão de
algum modo, mesmo sem ter ideia do que faria quando chegasse até ele. Fui
impedido por uma parede de energia que pareceu se formar do nada. Era Victor,
que neste momento era um vulto escuro mergulhado em uma escuridão ainda mais
densa. Poucas vezes na minha carreira eu captei tanto ódio vindo de uma só
pessoa. Ele me tirou do caminho sem olhar para mim, conforme andavam em direção
ao breu, a luz em sua mão ia aumentando de intensidade. Seu terço ia do amarelo
ao laranja, inundando a sala com cores quentes. Às nossas costas, o demônio
ainda falava coisas para perturbar a psique de Victor na voz de sua antiga
mulher:
- O que foi, Victor? Acha que eu estou blefando? A alma dele
é minha. Eu poderia fazer ele quebrar todos os ossos…ou melhor, furar os
próprios olhos. Você acha que ele ficaria bem parecido comigo?
Tamanha crueldade me causou arrepios. Temi pelo que poderia
acontecer com Júlio e com isso, fiz tudo o que o demônio queria: acreditei
nele. Pensei em Carolina e, se algum dia ela teria sido tão vil deste modo com
alguém. Quis acreditar que não.
Victor seguiu em silêncio até Júlio, que ainda dançava. O
pai pôs as mãos nos ombros do filho que imediatamente cessou seus movimentos
não-naturais. Victor emanava uma energia mais agradável, mas igualmente forte.
Passou seus mãos pelos olhos de Júlio e fechou suas pálpebras, encostou a mão
direita em seu peito e com a outra, o trouxe para perto de si.
Pude ver, alguns momentos depois, a expressão de Júlio
relaxando e seu corpo se livrando dos cordões invisíveis, desfaleceu. Depois de
um longo abraço, Victor encostou Júlio em um sofá sem encostos que havia no
centro daquela sala. Os abajures voltaram a se acender, dessa vez com uma luz muito maior do que eu
achava que abajures seriam capazes de produzir. Em silêncio pela primeira vez
desde que começamos aquilo, o inimigo nos observava.
Agora que o quarto estava iluminado, pude dar mais uma
olhada rápida no estado dos outros. Vinícius permanecia desacordado, mas
Gabriela me surpreendeu estando desperta. Ela lidar com tudo aquilo de maneira
menos surpresa do que eu achei que estivesse. Primeiro achei que ela olhava pra
mim, mas quando ela soltou um gemido de exclamação, percebi que olhava por cima
do meu ombro, que olhava para o monstro.
Ele arqueara o corpo sobre o encosto da cadeira onde estava
preso e forçou tanto a coluna para trás que eu pude ouvir umas vértebras se
partindo. Victor disse sem olhar para mim:
- Aí vem o último estágio, o conflito. Prepare-se.
Grande parte dos móveis da sala estava coberta por panos com
manchas e cheiro de mofo. Enquanto o possuído trazia seu corpo novamente para a
posição normal, percebi que alguns destes móveis se moviam sozinhos em
diferentes pontos da sala, parecendo acompanhar seu movimento. Pode parecer
estranho, mas ver objetos se movendo sozinhos atraiu mais a minha atenção do
que aquele meio-cadáver infeliz que estava à minha frente.
Pareciam fantasmas tremulando seus lençóis velhos,
acompanhando o movimento deles, vi que formavam um círculo que mantinha eu,
Victor e os outros dentro. No centro estava aquele que os controlava. Todos os
móveis cobertos pararam ao mesmo tempo. Eu acreditava que havíamos prendido
nosso inimigo firme na cadeira, mas a facilidade com a qual ele se livrou das
amarras e se pôs de pé diante de nós me fez perguntar há quanto tempo ele
poderia ter se soltado antes disso. Como uma coreografia, os móveis pararam no
exato momento em que nosso oponente se punha de pé. Os panos caíram,
revelando uma coisa em comum aos móveis-fantasma: eram todos espelhos. As
molduras e os tamanhos eram diferentes e parecia haver algo de errado com eles,
algo que me incomodava.
- Espelhos, ein? Você está deixando isso mais fácil para
mim. - Victor disse após olhar a cena - Pablo, preste atenção, agora você vai
ver como se manda um lixo desse de volta para o Inferno.
Ele retomou o ritual. na parte de dentro da casa uma agulha
começou a riscar freneticamente o vinil que ainda tocava, o ruído ia crescendo
cada vez mais a ponto de já abafar as palavras que Victor dizia, tornando
difícil para mim acompanhar com as respostas. O barulho se tornou perturbador
sem muita demora e nosso adversário, que estava só a alguns passos de mim,
abriu a boca e puxou todo ar que podia com seus pulmões. Foi tão forte que
criou uma corrente de ar violenta, me fazendo dar passos involuntários para
frente, quase me desequilibrando.
Com os pulmões cheios de ar, a figura era ainda mais
grotesca. Era como se o seu tronco fosse muito mais pesado que a parte inferior
do corpo poderia sustentar. O monstro subitamente despejou em nós tudo que
guardava de uma vez.
Vidraças e vigas de madeira que protegiam as janelas se
quebraram com a pressão. Parecia que o monstro tinha uma turbina dentro de si e
ela estava ligada na nossa direção. Alguns estilhaços arranharam o braço que eu
levantei para proteger o rosto. Victor tinha tido mais sorte e saído ileso do
ataque e, ainda tomado de ódio disparou em direção ao demônio.
Não houve embate físico dos dois, mas as duas energias se
colidiram com tanta força que era quase possível ver o ponto onde elas estavam
em contato. Meu instrutor pressionava, o outro empurrava. Percebi que não
precisava mais seguir com o ritual, as palavras já tinham sido todas ditas,
agora dependia da vontade do Victor. Ela precisava sobrepujar a energia que
envolvia o monstro como um escudo.
- Desista, padre! Você é fraco! Eu vou tomar o corpo do seu
filho e matar você com as mãos dele.
- Não. Não, você não vai, Dybbuk. - a menção deste nome fez
a energia do adversário diminuir vertiginosamente - Já passou da hora de você
sumir deste plano de existência. Me atrasei para acabar com você da última vez,
mas dessa vez eu vou te traumatizar tanto que você vai preferir ficar do outro
lado e não voltar. Sim. Sim, eu sei seu nome, procurei você por anos. O Dybbuk
que havia chegado antes de mim e atacado ela anos atrás. Sabe, você deu azar,
monstro. Nem todos nós que usamos batina somos bons, alguns só fazem isso pra
ter em quem descontar suas frustrações e olha, meu amigo, eu tenho muitas.
Agora, batendo com a cruz que carregava no peito do inimigo,
Victor gritava:
- VADE RETRO SATANAS! VADE RETRO SATANAS!
Uma sombra gasosa e espectral se formou com o que saía de
todas as feridas no corpo do velho e se acumulou numa nuvem alguns metros acima
dele. A sombra pairou por cima de nós por alguns segundos depois avançou sobre
um dos espelhos que formavam o círculo ao nosso redor e o atravessou. De
súbito, todos os espelhos se estilhaçaram ao mesmo tempo. Tudo estava acabado.
O primeiro objetivo de um exorcismo é mandar o demônio
novamente para as profundezas, os segundo é salvar a vítima enquanto conclui-se
o primeiro. Fomos bem sucedidos no primeiro, entretanto falhamos no
segundo. O velho senhor não havia resistido, mas pelo estado em que o corpo se
encontrava depois de tudo aquilo, acredito que tenha sido melhor assim.
Estávamos exaustos, debrucei sobre meus joelhos para
recuperar o fôlego e o sangue que saía do meu braço cortado pintou o rosário
branco de vermelho. Victor foi correndo em direção aos outros, abriu sua mala e
de lá tirou uma caixa de curativos. Gabriela, a única em condições, o ajudou a
cuidar dos outros dois. Vinicius, apesar da perna, tinha apenas ferimentos
leves e logo se recuperou do choque, Júlio que havia sofrido o maior trauma.
Nós cremamos o corpo e saímos da velha casa amarela. Eu
achei que haveria uma multidão ali nos esperando, mas parecia que nossa luta
tinha acontecido somente no universo interior daquele velho casarão.
- Quem como você descobriu a identidade do demônio
possuidor, afinal? - Gabriela perguntou enquanto me ajudava a carregar Júlio
ainda desacordado de volta para o carro.
- Usar a voz dela foi um erro, mas mesmo assim não podia ter
certeza que era ele. Muitos demônios usam nossos entes queridos contra nós para
acabar com a nossa vontade. - ele olhou para Júlio que descansava no banco
detrás do carro e suspirou - Acho que é um bom momento para vocês saberem. Eu
nunca tive muito apreço pelas regras e condições que a ordem impõe à nós.
Durante meu treinamento briguei com Reint inúmeras vezes por ele tentar tolir
minhas ações por causa dessas malditas regras. Acredito que teria sido expulso
há muito tempo se eu não tivesse sido o que se mostrou ter maior habilidade em
exorcismo da minha turma. - ele riu um sorriso irônico - Minha dádiva foi a
minha maldição. Eu mantive uma namorada em segredo durante todo o meu
treinamento. Nunca tive o interesse real de ficar na ordem, estava interessado
no conhecimento e nas habilidades que poderia conseguir lá. Depois disso meu
plano era seguir sozinho. Vocês sabem, existem alguns sacerdos renegados por
aí, agindo por conta própria, e ele costumam
ser menos hipócritas que o resto de nós...
- E o que aconteceu? - Vinicius, havia despertado enquanto
íamos para o carro.
- Ela engravidou. Eu já tinha algum tempo ordenado, era um
pouco mais velho que vocês e conhecia bem esse sentimento de invencibilidade
que vocês sentem nessa idade. Resolvi que abandonaria a ordem e viveria com ela
e nosso filho.
- Qual era o nome dela? – Gabriela perguntou.
- Bárbara. Não tem um só dia que eu não acorde e sinta a
falta dela.
Silêncio.
- Eu não contei a ninguém. Haveria um baile de bodas na
família dela naquela noite, combinei que me encontraria com ela para uma dança,
nosso filho havia nascido há pouco tempo e eu queria estar dedicado
integralmente a eles o quanto antes. No dia de minha partida, Reint descobriu o
que eu faria e me prendeu na Candelária.
- Prendeu? - Gabriela disse surpresa - Hoan nunca me obrigou
a fazer algo que eu não quisesse.
- Ela nunca tentou. Se tentasse você veria que uma luta com
um anjo não pode nem ser chamada de luta. Reint fechou todas as portas da
Candelária e ficou tentando me convencer a não abandonar a causa. À despeito
dos pedidos de Pedro, ele só permitiu que eu saísse quando outro membro de
nossa ordem disse que estava havendo um ataque em uma reunião de família. Era o
mesmo lugar da festa de bodas dos pais da Bárbara. Quando chegamos lá, já
estava tudo acabado. Toda família dela estava naquela festa. Nosso filho
recém-nascido também estaria lá se tivesse mais idade. Tomei a decisão de que o
melhor para ele - indicou Júlio com a cabeça - seria crescer num lar que
estivesse longe de qualquer envolvimento com essas nossas…questões. Eu o deixei
na porta de um orfanato na Gávea naquela mesma noite. Me dediquei a estudar
aquele ataque nos mínimos detalhes e torcer para que o infeliz cruzasse meu
caminho novamente. Algo que me intrigou era que, apesar do salão estar
destruído, todos os espelhos estavam intactos.
- Você disse que ele estava tornando as coisas fáceis para
você quando os espelhos começaram a andar sozinhos lá dentro. O que isso tem a
ver?
- Bom saber que você estava ouvindo Pablo, talvez da próxima
vez além de ouvir, você possa me acompanhar propriamente com o ritual. Como eu
disse, usar voz e características de outros é uma habilidade até certo ponto
comum entre demônios. Mas só um Dybbuk conseguiria fazer isso e transitar entre
os mundos de modo etéreo.
- Eu estava desacordado durante tudo o que aconteceu na
casa, o que é um Dybbuk? - Vinicius estava realmente à parte de toda aquela
conversa.
- Um dos tipos de demônio mais traiçoeiros que vocês
poderiam encontrar. Já foi humano. É uma alma que foi impedida de entrar no céu
por ter sido muito impura durante a vida, mas que se recusa a entrar no inferno
também. Este tipo de espírito fica numa espécie de plano intermediário paralelo
ao nosso, sempre em busca de um corpo para voltar aqui e continuar fazendo suas
atrocidades. O Dybbuk precisa de certos portais para sair deste plano paralelo
e entrar no nosso. E esses portais são espelhos. O espelho é incapaz de
refleti-los porque não tem o que se refletir, eles não deveriam estar nesse
mundo. Por esse motivo, qualquer tipo de demônio que já foi humano não pode ser
refletido numa superfície espelhada - ele olhou para mim - upyres, por
exemplo.
- Então você associou um possuidor de corpos com monstro que
não poderia ser refletido e achou que era um Dybbuk. - Gabriela estava muito
curiosa sobre o caso.
- Não um. Mas o mesmo que possuíra Bárbara anos atrás.
- Bom, isso não foi sorte?
- Não acredito em sorte, mas é bom saber se ela existisse,
ainda poderia estar do nosso lado. Agora vamos. Precisamos cuidar desses
ferimentos.
+++
Voltamos para Candelária pela entrada lateral. Pudemos
descer direto para o Grande Salão onde todos ainda esperavam. Catharina estava
na sua forma humana, mas eu poderia dizer que ela voou em minha direção quando
me viu. Hoan fez o mesmo com Gabriela, que pareceu um pouco desconfortável com
tanta efusividade. Victor, que trazia Júlio nos braços, o entregou para Reint
sem dizer uma palavra. e desceu para a enfermaria. Padre Pedro checou todos nós
um por um antes de nos dispensar e dar os próximos dias de folga.
Parecia ter passado uma eternidade desde que havia estado em
casa pela última vez. Estava tudo limpo e organizado. Catharina, que insistira
em passar a noite comigo, disse que voltava ao meu apartamento diariamente para
manter as coisas em ordem.
Eu só queria descansar, mas Catharina me fez contar tudo o
que tinha acontecido e não escapei dos sermões também. Já que estava acordado,
resolvi me abrir com ela e contar algo que não saía da minha cabeça desde o
início daquela noite:
- Você acha que ela realmente está morta? Quer dizer, isso
explicaria tanto tempo sem notícias.
- Minha função é proteger você, Pablo - disse ela hesitante
- e por isso eu não deveria te contar isso...
- Contar o que? - é incrível a quantidade de coisas que a
gente consegue pensar no espaço de um segundo.
- Não, ela não está morta. Esse Dybbuk mentiu ao dizer isso.
- Como você sabe?
- Eu queria poder mentir pra você...
- Catharina, me conta por favor.
- No meio da noite, alguém…um pássaro bicou o vitral
principal da igreja. Estávamos lá embaixo esperando vocês e torcendo pelo
melhor, mas as batidas eram sistemáticas e inconvenientes. Depois de algum
tempo passaram a irritar até mesmo Pedro. Fui até a nave principal para ver o
que estava acontecendo. Ao abrir a porta principal eu a vi esperando exatamente
onde acabava o terreno da igreja.
- Carol? Você viu a Carol?!
- Sim, Pablo - ela disse incomodada - era Carolina. Ela não
estava muito contente.
- Por que?
- Bom, tivemos uma conversa nada amigável sobre o fato de eu
ter ido você lutar contra um demônio sozinho. E o pior é que eu nem pude dizer
muita coisa, porque ela estava certa.
Tentei ficar tempo calado, mas não consegui muito mais que
cinco minutos. Enquanto ela fazia um curativo meu supercílio, eu perguntei:
- E…ela falou mais alguma coisa de mim?
- Sim. Ela falou que você era um idiota. Mas um idiota que
ela se importava, então era bom que eu fizesse meu trabalho direito.
Ao terminar o curativo e checar meu rosto, Catharina falou:
- Você podia pelo menos disfarçar esse sorriso bobo.