domingo, 4 de outubro de 2015

Ver032

Bob Dylan - The Ballad of a Thin Man from Vasco Cavalcante on Vimeo.




Já não sei precisar há quanto tempo estou escrevendo. Desde que…aquilo aconteceu, eu não tenho tido apetite, por isso a pausa para as refeições é desnecessária. Exceto o cappuccino. A pausa para o cappuccino é quase religiosa e não por sono, já que este também foi embora junto com o apetite. 

Algum tempo atrás, em uma das visitas que me fez, Catharina me disse que eu deveria cortar todas as coisas que me prendem à Carol se eu quisesse seguir em frente. Seguir em frente. Qual é o sentido disso? Por que seguir em frente quando toda a felicidade que eu conheci está atrás. Não. Minhas memórias, ou devo dizer, nossas memórias são a minha melhor companhia. Não preciso de mais nada.
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O sistema digestório dos upyres rejeita qualquer coisa que não seja sangue, por isso desde a sua transformação, Carol não podia mais provar seus vinhos favoritos ou aqueles pratos refinados franceses que eu nunca soube dizer o nome. Ela não se queixava, já estava transformada há muito tempo e parecia acostumada à condição. Menos seu cappuccino, dele ela ainda sentia muita falta. Acho que a única coisa de valor desse apartamento, sem contar a calcinha dela que eu encontrei no armário, é a máquina de cappuccino que ela mesma trouxe. 

Sempre que eu acordava, Carol já de pé, preparava duas xícaras do melhor cappuccino que já provei. Uma para mim, outra para ela. Dizia que queria que eu estivesse disposto durante o dia. À noite, ela repetia o ritual. Duas xícaras e, maliciosa, dizia que queria que eu estivesse disposto durante a noite também. Quando eu perguntava sobre a xícara dela, que sempre ficava intocada, ela respondia:

- É que ninguém deve tomar cappuccino sozinho.

Hoje, meus dias se resumem em escrever estes relatos. Sempre que a saudade e falta dela me acertam como um soco eu faço uma pausa e preparo duas xícaras de cappuccino. Duas, e se você me perguntasse o motivo, eu responderia que ninguém deve tomar cappuccino sozinho.

A lembrança do que o possuído disse naquela noite, dentro da velha casa amarela no Catete, me fez precisar parar. Victor havia me alertado, tinha dito que o demônio iria se valer dos meus pontos mais vulneráveis, que iria olhar e atacar nas rachaduras da minha alma. Eu sabia, mas isso não impediu que o medo se instalasse em mim. Nunca tinha contemplado a ideia da morte de Carol, eu nem mesmo sabia se ela poderia morrer. A revelação do meu envolvimento com ela para Victor parecia sem importância agora que eu começava a me perguntar se era realmente este o motivo que a fez ficar tanto tempo sem dar notícias.

Deixo as xícaras sobre a mesa e sei que o calor da bebida vai marcar a madeira gasta, mas não me importo. Aprendi a valorizar as marcas que ficam. Após alguns goles retorno às teclas da Olivetti. 

Eu não tinha condições de rebater o que fora dito pelo velho sem olhos. Não conseguia falar, piscar ou me mover. Mesmo respirar era uma tarefa difícil. Victor dava instruções que eu não ouvia, o demônio tecia comentários que eu não registrava. Minha mão esquerda cedeu e o crucifixo foi ao chão.

Carol estava morta?

Uma pressão no meu peito me trás de volta. Não interna, mas externa, um impacto. Victor devolvia meu terço com a força de quem devolve um empurrão de bar.

- Nunca mais deixe isso cair. Aquilo não é humano, ele vai fazer de tudo para desmontar você. Vai usar mentiras e verdades, e eu não me importo se você estava comendo uma vampira ou não. Mas preciso que você tenha foco, porra! Não fale com ele, não ouça ele.

Victor pôs as mãos nos meus ombros e me puxou para perto.

- Nós vamos começar agora. Preciso de alguém para ler as respostas ou seguir com o exorcismo se algo acontecer comigo. O ritual tem cinco estágios: presença, presunção, ruptura, conflito e acabamos com a expulsão. O frio, o mal-estar, náusea, dor de cabeça…tudo isso foi o primeiro estágio, a presença dele. Não se deixe abater por ela! Precisamos ser mais fortes.

O demônio olhava para um ponto fixo no teto do casarão e ignorava nossa presença solenemente. Tive vontade de partir para cima dele, exigir que ele me contasse a verdade, que me desse detalhes do paradeiro de Carol. Mas Victor estava certo, ele apenas queria me desestabilizar. Carol estava bem, nada teria acontecido à ela.

Certo?

- Se atenha ao livro, - ele trouxe meu olhar de volta - leia as respostas e faça somente o que eu disser. Ok?
- Ok.
- Muito bem, vamos começar.

Victor caminhou até ele. De um jeito calmo, mas imperativo. Eu me mantinha alguns passos atrás, bíblia aberta nas mãos exatamente na página que começava o ritual. Ele esmagou uma hóstia nas mãos antes de começar. Beijou a cruz bordada nem sua batina sobriamente e começou uma prece tão baixa que tive dificuldades para acompanhar na bíblia. O demônio seguia olhando para o teto. Segui, seu olhar vazio mas nada vi além da escuridão e me perguntei se era isso que nos esperava no fim de tudo.

O inimigo grita de dor e atrai minha atenção. Victor esta com a mão com os farelos de hóstia em sua cabeça, pressionando forte. Entoa uma oração que termina numa ordem. Conforme o tom de a agressividade da voz do meu instrutor aumenta, marcas e sulcos vão se fazendo na pele do corpo que já fora de um homem. Em pouco tempo, sua pele já estava tomada de símbolos que eu não conhecia, mas que de certa forma me eram familiares.

A cena tomou toda minha atenção. Existia um prazer sádico da minha parte em ver o vincos aparecendo na pele do monstro que ousou anunciar, mesmo que fosse mentira, a morte de Carol com tanto desdém. Achei que estávamos ganhando, baixei a guarda, meu pensamento voou para ela. Distraído, não percebi a deixa que Victor deu, onde eu deveria ter respondido de acordo com a escritura.

- Príncipe glorioso da milícia celestial, São Miguel Arcanjo, defendei-nos neste conflito contra as regras deste mundo de trevas contra os espíritos do mal nas alturas.

Eu não prestei atenção, ele repetiu.

- ...defendei-nos neste conflito contra as regras deste mundo de trevas contra os espíritos do mal nas alturas. MERDA, PABLO! VOCÊ PRECISA RESPONDER!

Caí em mim e procurei a resposta que viria à fala dele, mas me perdi nas entrelinhas apertadas da bíblia. Victor já tinha recuado até onde eu estava e tomou o livro das minhas mãos, acertando a página e me indicando a linha com rispidez. Tentei ler mas a pouca luminosidade que entrava pelas frestas das placas de madeira que tinham sido pregadas às janelas esmaeceu de uma vez. Como se o mundo lá fora fosse iluminado por uma lâmpada e alguém, sem aviso, tivesse desligado o interruptor.

Quatro barulhos. Barulhos metálicos, metal se chocando violentamente contra paredes e chão. A única fonte de luz que tínhamos eram nossos terços, o de Victor mais intenso que o meu. Ele me instruiu para ficarmos próximos e fui seguindo-o no meio da escuridão. Ele estava indo em direção ao nosso inimigo, mas eu só percebi isso quando chegamos ao lugar onde sua cadeira estava pregada ao chão e vimos apenas os buracos das placas que a prendiam.

- Merda… ONDE VOCÊ ESTÁ?! EM NOME DE YAWEH ORDENO QUE SE REVELE!

A resposta não foi imediata, mas ele não precisou perguntar uma segunda vez. Após alguns segundos ouvimos uma risada naquela voz gutural outra vez. Ela não vinha de um ponto específico, parecia reverberar por toda a sala. Até que, um a um, os velhos abajures empoeirados foram se acendendo. Alguns, mesmo sem ter uma lâmpada.

A luz era débil, mas servia para termos mais noção do cenário. Meus três colegas ainda permaneciam desacordados no mesmo lugar e as quatro placas de metal reluziam espalhadas. Examinei os quatro cantos do cômodo e, numa das quinas, rodopiando como se estivesse numa caixinha de música infernal, estava a figura amarrada em sua cadeira. Victor o viu ao mesmo tempo que eu, suspirou e disse:

- O segundo estágio: a presunção. Ele vai drenar nossa confiança. Pela última vez, Pablo, fique atento ao ritual, e limpe esse medo da sua cara. Ele vai farejar isso.

A última instrução me foi dada com ele já virando as costas e caminhando em direção ao perigo. Olhei para o meu rosário que àquela luz parecia quase apagado. Eu precisava me agarrar ao que eu tinha de mais forte, e isso era o sentimento que eu tinha por Carol. O problema é que cada vez que eu focava numa recordação dela, a faca gelada do medo espetava meu coração. Eu afastava o pensamento dela e apagava qualquer luz que poderia ter só para tornar menos real a possibilidade de sua morte. Eu me sufocava, cada vez mais naquela escuridão, mas não podia superar a presença da sua ausência nos meus pensamentos.

O demônio seguia nos atormentando. Victor parecia ter notado minha apatia e decidido dar cabo do ritual sozinho. Bradava palavras desconhecida e grandes comandos de ordem para o corpo que rodopiava como uma criança em sua cadeira levitada. Não aprecia estar adiantando até o momento em que, sem aviso, Victor põe as mãos sobre os braços do inimigo, presos à cadeira e com força atrás a cadeira de volta ao chão.

O barulho ecoa por toda a sala.

- Em nome do Criador eu comando: dá-me teu nome! Dá-me teu nome! Dá-me teu nome!

O rosário dele havia se vertido em pura luz. Luz que agora era pressionada contra a testa calva e lacerada do velho sem piedade. Era possível ver uma fumaça escura emanar do monstro e sua boca se escancarou num lamento de dor lancinante, depois, sua cabeça tombou. Quando recuou o terço, era possível ver a marca em forma de cruz queimada em sua testa como uma tatuagem malfeita. Pela segunda vez na noite, achei que tivéssemos vencido.

Victor não. Ele mantinha o rosário iluminado e em posição de ataque. Eu estava prestes a perguntar o motivo quando uma risada me respondeu. Não era agressiva, sequer era exaltada. Um sorriso delicado, feminino e sincero. 

- Mariana Lopes - ela respondeu em voz baixa.

Victor fraquejou. O braço agora pendia ao lado do corpo e seus lábios tremiam.

- Não achei que você esqueceria do meu nome tão rápido, meu bem. Mas faz sentido, é o que se pode esperar de um homem que abandonou sua mulher e seu filho recém-nascido à própria sorte.
- Pare com isso!
- Eu esperei você. Eu esperei você naquele salão a noite inteira. Me diz, qual é a sensação? Como é saber que eu morri por sua culpa?

Aquilo foi inesperado. Uma voz doce saindo daquele corpo era algo bastante perturbador mas o que realmente me surpreendeu foi a reação de Victor. Os nervos dele estavam prestes a explodir. Ele tremia compulsivamente, tateava por algum apoio, mas não havia nenhum perto. Voltou a apontar o terço na direção do demônio, mas ele já não era tão brilhante. O suor, cobria-lhe a face.

Nunca imaginei que algo poderia perturbá-lo deste modo, quem era aquela mulher? Victor estava fazendo o que me alertou para não fazer: dando corda ao demônio. Tentei chamar por ele, trazê-lo de volta à razão, mas ele não me respondia. O monstro sabia que estava ganhando terreno, e continuou:

- Silêncio. Essa foi a minha resposta durante todos esses anos. Eu esperei, mesmo depois de morta eu esperei pela dança que você me prometeu. Agora vai ser impossível comigo, mas acho que nosso filho estaria ansioso para honrar esse compromisso, Victor. Mas acho que é melhor você se apressar. - um sorriso maléfico tomou as feições do velho agora - PORQUE EM BREVE EU VOU TOMÁ-LO PARA MIM TAMBÉM HAHAHAHA

A luz de Victor se apagou totalmente. De repente, meu crucifixo que brilhava de forma tão precária, era a única fonte de luz do cômodo. Pouco a pouco um som tímido ia quebrando o silêncio. Primeiro achei que fossem passos, depois percebi que havia um ritmo entre eles. No escuro era difícil precisar de onde vinha o som mas eu fui caminhando até ele com cautela. 

- Meu Deus… - Victor disse levando a mão à boca quando iluminei a cena. 

Júlio havia se levantado. e ele estava dançando.