domingo, 23 de agosto de 2015

Ver031



Meu primeiro reflexo foi pegar Vinicius como pude e correr para perto de Victor. Gabriela, estava na parede oposta ao monstro que urrava de dor. A coruja, ainda pousada no busto de Athena parecia fazer parte do concreto que formava a estátua. Imóvel.

Tive pouco tempo para olhar a ave, mas por ter facilidade em identificar detalhes me foi o suficiente. A plumagem era marrom-acinzentada, o tamanho era o mesmo de um dos meus braços. Duas sobrancelhas que poderiam ser confundidas com cifres emolduravam os olhos que eram de um azul-piscina antigo. Suas pupilas eram dilatadas, grandes e escuras. Davam a impressão de conseguir olhar a minha alma. Como Carol também conseguia.

O possuído, agora de quatro, continuava fazendo bastante barulho, mas a coruja permanecia ali empedrada, me analisando. Victor percebeu que eu era o único em condições de ajudá-lo a se aproveitar do momento de vulnerabilidade do inimigo e caminhou em direção a ele me dando um leve empurrão com os ombros. Olhei para a coruja pela última vez. No bico ainda manchado de sangue, pedaços de tecido dos olhos que ele arrancara para me salvar. Foi ele quem desviou os olhos grandes primeiro, mas não sem antes me analisar de cima abaixo. Parecia ter tido ordens para só sair de lá se tivesse certeza absoluta que eu estava bem. Quando se convenceu, levantou voo e saiu pelo mesmo lugar que entrou.

- Traga aquela cadeira até aqui e tranque a porta. - Victor disse enquanto passava o polegar úmido de agua-benta na própria testa - Sem demora!

Trouxe uma cadeira de madeira maciça que jazia tombada num dos cantos do aposento. O assento de veludo grená estava bem castigado pelo tempo e havia marcas de mofo, mas julguei que as pernas seriam fortes o bastante para aguentar o peso de um idoso. Victor passou uma espécie de fita-adesiva resistente que tinha em sua mala algumas vezes pelo tronco do velho desacordado. Eu o ajudei fazendo o mesmo com seus braços.

Quando terminamos, fui em direçao aos meus companheiros. É verdade dizer que eu estava preocupado com o estado deles, mas meu desejo maior naquele momento era sair de perto do que eu já acreditava ser um cadáver. Certo de que toda a luta tinha acabado e que não seria preciso um exorcismo, dei-lhe as costas. E com uma surpresa enorme eu escuto:

- Já está de saída, filhão?

Tudo se deu no espaço-tempo de um passo. Eu ouvi, mas não registrei de imediato. A voz. Tinha algo de familiar naquela voz, algo nostálgico. Acessei minhas memórias. Primeiro lembrei, depois me questionei. 

- Pai?

Não, não era o meu pai. O não-homem agora fixava ar órbitas vazias em mim. Preso à cadeira, com os dedos como garras fincados nela, ele ainda mantinha um sorriso no rosto. Um sorriso desproporcional, como se a sua boca tivesse sido deslocada e os lábios rasgados por uma navalha. Veias começavam a irradiar dos olhos ausentes e se estendiam até as orelhas e pescoço. Meu pai falou através dele outra vez:

- Ah, agora você lembra do papai, não é, seu merdinha?! 
- Pai? - eu repeti ainda perplexo.

Ele emitiu um som que era difícil identificar se como uma risada ou um grito. Só quando Victor passou por mim, com a mão do terço em riste, na direção do demônio, eu entendi o motivo do som. 

Ergo! - Victor dizia à plenos pulmões - Draco maledicte et omnis legio diabolica, adjuramus te per Deum! Vivum, per Deum! Verum, per Deum!

Cada fim de frase era marcado por uma rajada de água-benta que era respondida com caretas que expunham sua língua branca em nossa direção. Voltei a sentir frio e desconforto. Comecei a notar outra vez o cheiro nauseante, a dor de cabeça que martelava mais forte à cada pulso de sangue enviado ao cérebro. No havia parede para eu buscar apoio agora, eu teria tombado sobre meus joelhos, mas senti uma pressão se fazer no meu pescoço.

A sensação foi parecida com a que tive mais cedo, quando sentia Carol através do terço na minha mão. Protetora, quase que como um escudo. O mal-estar foi embora do mesmo jeito que veio e meus sentidos foram se ajustando sem muita demora. O rosto que estava na minha frente foi entrando em foco como se  eu estivesse acordando de um longo sono, era Gabriela. Ela já tinha se recuperado do baque, mas isso lhe custou um grande esforço, e apesar de sua aparência ainda parecer horrível, ela parecia satisfeita.

- Victor me avisou para te dar isso, caso voce precisasse.

Ao olhar para baixo vi, pendendo de meu pescoço, havia uma batina branca de tecido trançado e bordado preto dando forma aos detalhes em sua ponta. Apesar da aparência delicada e de sua espessura fina, ela parecia pesar sobre meus ombros. 

Olhei para Gabriela com a intenção de agradece-la, mas sua fisionomia já nao se esforçava para parecer tranquila. Ao contrário, seus olhos me atravessavam e as maos levadas à boca serviam de anúncio para o horror que estava refletido neles. Girei os calcanhares rápido, como quem arranca um curativo. De uma vez, para que não perdesse a coragem no meio do caminho.

Recuei alguns passos com a cena à minha frente. Victor traspassava as pernas traseiras da cadeira onde tínhamos prendido o pobre senhor com placas de metal formando um ângulo agudo, pregando-as no chão. As dianteiras levantavam e retornavam ao piso desgastado da casa em intervalos irregulares causados pela agitação do monstro, bem agitado.

Eu, observando aquela cena, voltei a tremer apesar de não sentir mais frio. Todas as minhas articulações pareciam instáveis e doloridas. O demônio, quem quer que fosse, parara de se agitar na cadeira. Estava placidamente sentado com os olhos vazios me fitando. Lentamente ele abriu a boca e um som contínuo e monofrequente que parecia sair das profundezas do próprio Inferno começou a ser expelido. Víctor continuou seu trabalho, agora nas pernas dianteiras da cadeira, e pareceu não se importar muito. Eu mesmo ouvia o som, que era desagradável mas não chegava a incomodar só que, ao olhar pra trás, vi que Gabriela e Vinicius haviam desfalecido. Como se o som lhes tivesse tirado a vitalidade.

Me envergonho da minha atuação neste primeiro exorcismo, mas minha apatia se justificava. A voz do meu pai saindo daquele maxilar deslocado ainda ecoava na minha cabeça e eu precisei fechar a mão esquerda bem forte para me manter ali. Quando teve certeza de que as quatro pernas da cadeira estavam bem presas ao chão, Victor caminhou até onde eu estava, tirou de um de seus bolsos internos uma bíblia não muito diferente da que eu tinha em minha própria mala. 

Victor disse com seu jeito frio e firme:

- Preciso que você se imponha. Eu só tinha uma batina reserva, e ela está com você. Não pude proteger os outros, e agora eles precisam de cuidados. Só posso ajudá-los se você parar de ser tão sensível. Acorda, Pablo! Não é o seu pai ali. Seu pai está morto, você sabe disso então não tem motivos para se deixar enganar pela criatura. Quero que vá até lá e comece o ritual, logo me juntarei a você.

Urgente, Victor ajoelhou e começou a procurar algo em sua valise. Eu ainda segurava a bíblia que ele tinha acabado de me dar sem saber muito bem o que fazer com ela. Ele levanta e traz nas mãos uma pequena caixa retangular. 

- A página está marcada. - ele disse secamente e indicou o possuído preso à cadeira.

Andei até meu adversário com os pés pesados como chumbo. Abri a página onde o marcador estava, o texto vinha em latim. Inseguro, olhei para trás para buscar alguma ajuda ou apoio de meu instrutor, mas ele não prestava atenção em mim. Agora estava focado nos meus companheiros. Dentro da caixa, eu vi quando ele abriu, havia uma quantidade considerável de hóstias imaculadas. Sem nervosismo, mas com certa pressa, ele pegou um punhado delas e começou a tritura-las em suas mãos, caminhando ao redor do meu grupo de companheiros enquanto entoava uma prece baixa. 

Quando olhei novamente para o rosto sem olhos à minha frente, percebi que ele já não fazia mais aquele ruído sujo pela boca, ela agora estava fechada. Sua arcada superior fincada sobre o lábio inferior com força, causando vazamento de sangue que escorria pelo seu pescoço. Pareceu não notar a minha presença ali à sua frente até que eu, desajeitado, comecei:

Er…ergo, draco maledicte et omnis legio diabolica….

Eu não tinha familiaridade alguma com a língua ou o ritual, entoar aquelas palavras não parecia ter efeito algum. Sentindo a minha insegurança crescer, o monstro começou a gargalhar a plenos pulmões. Continuei.

Adjuramus te... per Deum vivum, per Deum verum, per Deum...
- Garoto tolo - falava novamente com a voz do meu pai.
- Per Deum qui sic dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret!
- Você está sozinho, garotinho. Ela não vai vir pra te salvar dessa vez.

A bíblia acabou caindo da minha mão e o demônio lambeu os lábios sangrentos com satisfação. 

- Você é fraco! Não conseguiu salvar o seu pai. Quer saber porque ela sumiu? Quer saber onde ela está?
- UT OMNES QUI CREDIT IN EUM NON PEREAT! - Victor veio com a próxima linha decorada em meu resgate - CESSA! CESSA DECIPERE HUMANAS CRIATURAS! 

Com ele surtiu efeito. O corpo do velho se retraiu, e mesmo os braços atados à cadeira pareceram se enrijecer num sofrimento mudo. Victor ofereceu a mão para que eu levantasse. Abri novamente bíblia e estava pronto pra seguir o ritual quando o possuído recomeçou:

- Ela não vem, ela não vem…. - baixo, como que pra si mesmo - ela não vem, nem aquele pássaro. Você está sozinho. Sozinho no escuro.
- Me diga seu nome, infernal! - Victor ordenou.
- Ela não vem.
- SEU NOME! - e lançou um jorro de agua-benta no preso que gritou de dor - EXIJO SABER SEU NOME!

A fumaça causada pelo contato da agua-benta na pele do monstro se dissipou e pudemos perceber o grito de dor se vertendo num sorriso diabólico. Seus dedos indicadores apontados pra mim.

- Você quer saber o meu nome, padre? Porque não se preocupa com os segredos dos seus preciosos…alunos primeiro? HAHAHAH
- Não precisamos de nenhum Favrashi aqui para te mandar de volta para o inferno, sujo! Não importa se Catharina vem em nossa ajuda ou não.
- Catharina? Não, bom padre, eu não estava falando de nenhum anjo. - mesmo sem olhos era possível definir sua expressão irônica - Quem não se chama Carolina.

Eu empedreci. Victor desviou os olhos do inimigo pela primeira vez desde que começamos o ritual, olhando para mim em dúvida, pedindo por uma resposta com as sobrancelhas questionadoras.

- Ah, “filho”. O que foi? Você não contou ao professorzinho da sua amante vampira? Deve ter sido dificil inventar uma desculpa para essas cicatrizes, não?
- Calado. - Victor disse sem tirar os olhos de mim.
- Ah, padre. Você sequer suspeitou?
- CALADO DEMÔNIO!

Outra rajada de água-benta. Eu já não tinha forças para segurar a bíblia ou a cruz. Minhas pernas estavam bambas e eu me sentia sem nenhuma gota de sangue no corpo. Esse é o sentimento de quanto descobrem um de nossos segredos.

- Calma, calma. Não há motivos para tanto, padre. - disse o velho que já não usava mais a voz do meu pai - Não fique triste pois seu aprendiz não vai ver sua putinha vampira em um bom tempo.

E com um sorriso insano ele disse:

- Carolina LeBion está morta.