domingo, 28 de junho de 2015

Ver030



Uma escuridão. Sólida e espessa. Como ser a gravidade fosse diferente no bloco de puro breu onde adentrei. A frágil luz que vinha da rua pela fresta da porta que deixei aberta ao entrar não parecia ter força para combater o peso de todo aquele mar negro e morria poucos passos após a soleira da porta. Passado este ponto, a única coisa que permanecia brilhando ali eram os crucifixos que meus companheiros e eu carregávamos. 

Os gritos da criatura cessaram e de alguma forma isso conseguia ser pior do que quando o lamento era audível. Estava confuso e sem referencia, como se a casa fosse muito maior do que deveria ser quando a via do lado de fora. Deveríamos conter o possuído eu, Victor e Gabriela, nossa falha poderia ser fatal para Vinicius. O silêncio, que era incômodo e quase tátil, foi cortado por uma lâmina de fedor que lembrava bastante o rastro que sentimos algumas horas atras, em frente à velha locadora de esquina. Só que mais forte, a náusea se transformava num prenuncio de refluxo e minha cabeça voltava a doer.

A presença do infernal era mais forte e mais intensa que antes mas, de alguma forma, não me causava tanto mal-estar quanto da primeira vez. Agora era mais fácil combater aquilo, como se a minha própria energia se expandisse criando um escudo ao meu redor. A sensação me era nova, como se eu estivesse maior do que o meu corpo físico, como se não coubesse em mim. Percebi, então, o que me protegia, fosse o que fosse, começava da minha mão esquerda e irradiava para todo o resto de mim. Quente como o beijo dela.

Vinicius voltou a chamar pelo homem estava sob posse do demônio. Ele não estava com seu terço em punho, por isso não conseguia saber exatamente sua posição, mas a sua voz me fazia perceber que ele não estava longe. Do outro lado do que eu acreditava ser a sala de estar, eu conseguia ver o brilho que se enrolava no pulso de Victor tal qual uma serpente, Gabriela era a luz frágil que estava entre nós. Ela tremia.

Semicerrando os olhos afim de me acostumar com o véu negro que nos envolvia, não tive muito resultado positivo em distinguir formas mas percebi com surpresa que eu estava exalando algum tipo de vapor ao respirar, semelhante a quando nossa respiração condensa em um ambiente muito frio. Num primeiro momento descartei a possibilidade, afinal de contas estávamos no coração do Rio de Janeiro, mas ao encostar a mão na parede que estava próxima a mim senti com surpresa que o ambiente parecia estar sob temperaturas negativas. A aura de fé que me envolvia não se estendia pela casa e pensei que seria bom ter isso em mente.

Eu me concentrava na posição de meus companheiros, e começava a me perguntar quando o nosso alvo se mostraria. Notei que não saberia bem o que fazer quando isso acontecesse e percebi o meu próprio rosário esmaecendo. O frio começou a me abraçar e não demorei a pensar em Carol, no fogo dos seus cabelos e ela fez, como sempre faz, tudo voltar ao normal.

Tudo menos aquele som. Mais alto e agora bem mais perto. Algo fora de qualquer escala já pensada, alguma frequencia desconhecida o som de uma alma lamentosa que fazia tremer as estruturas da velha casa onde estávamos. O possuído voltara a gritar e agora estava no mesmo cômodo que nós. Recuei sem perceber, corri para trás até trombar em algo. Em alguém, na verdade, era Vinicius. 

Me assustei ao reconhecê-lo e percebi o quão mal eu tinha colocado meu referencial. Achei que o monstro tinha avançado sobre ele e quando vi que não, vasculhei a sala tentando achar os outros. Procurei por Gabriela, ou pela sua luz e não encontrei. Vinicius tremia, sua fé estava frágil, o frio estava consumindo-o diante dos meus olhos. Passei braço dele pelo meu pescoço e comecei a caminhar para longe dali, com ele. Tentando expandir o escudo que me me envolvia para ele, mas parecia ser pouca energia para nós dois. Comecei a me questionar se realmente passaríamos daquela noite.

Foi quando eu ouvi. Parei de caminhar e perguntei com as sobrancelhas se Vinicius também tinha escutado algo e sua expressão de atenção me confirmou que sim. Começou muito baixo, só podia ser ouvido entre os gritos diabólicos da criatura. Era um sussurro, tão sutil que eu quase acreditava ser uma ilusão. Era um mantra, algo que se repetia em loop, calmo, um contraste com todo aquele barulho que estava sendo feito. Era, e eu só pude perceber quando o volume foi aumentando, uma prece.

Uma oração que pareceu perturbar o nosso alvo. No momento em que eu comecei a reconhecer a voz de quem dizia as palavras, o homem que nos atacava se jogou com força sobre a parede que eu usava como apoio, abandonando o ponto que estava. Enquanto Victor continuava fazendo a reza a escuridão ia cedendo e eu pude ver que o ataque de nosso inimigo havia sido direcionado a Júlio que agora jazia desacordado. Victor agora falava em voz alta:

-  Homo sum lucis. Amo lucem servio lucem. Ego autem in luce. Ego lux lucis, lucis, lucis!

Não sei dizer quantas vezes essas palavras foram repetidas, mas cada palavra era pronunciada mais alto e tinha tom mais imperativo que a ultima. Victor caminhava calmamente em nossa direção com o braço direito levantado e o terço brilhando acima da cabeça. Parou por um momento e disse:

- AGORA, GABRIELA!

Do outro lado do salão, eu e Vinicius vimos perplexos Gabriela que estava com os cabelos castanhos suados e colados ao seu rosto acompanhou Vinicius na prece, mas de um jeito menos controlado. De onde estávamos ela não parecia humana, os olhos sem íris olhavam para o nada, mesmo não sendo pálida suas veias eram visíveis por baixo da pele. O nariz sangrava e sua voz, enquanto repetia aquelas palavras em latim, a voz não lembrava em nada seu timbre normal.

Ela ergueu as duas mãos até a linha da cintura, as palmas para cima, e todas as luzes da velha casa amarela acenderam, mesmo um abajur que estava à nossa esquerda, fora da tomada. Em algum momento que eu não saberia precisar, as Victor parou de acompanhar Gabriela na oração e estava agora checando os sinais vitais de Júlio, que continuava desacordado.

Vinicius atraiu a minha atenção para o possuído que agora parecia esmagado contra a parede por uma força invisível que o pressionava mais forte cada vez que Gabriela recomeçava a falar a oração. Só então, com as luzes plenamente acesas, eu pude vê-lo melhor. Era um homem idoso, por volta dos 70 anos, tinha os braços finos e lânguidos, poluídos por manchas senis. As pernas se abriam num angulo inexplicável e com certeza estavam quebradas. Seus olhos insanos emoldurados por olheiras profundas e escuras não pareciam atentar para mais nada além de Gabriela que estava no canto diametralmente oposto do cômodo. A boca, com uma língua desproporcionalmente maior que o normal fazia movimentos obscenos e tinha cor de morte.

Ao correr os olhos pela sala eu vi o corpo de Júlio todos os arranhões severos que ele tinha. Pensei que talvez não sobrevivesse àquela noite. Me senti sozinho e reconheci que precisava de ajuda, mas não foi em Catharina que pensei. Queria que Carol estivesse ali comigo, mais que só como uma lembrança. Queria sentir seu hálito doce, sua pele gelada tocando na minha quente. Temi nunca mas poder ver seus olhos tão cheios de malícia e mistério. Fraquejei.   

Falta de fé. Era tudo que o possuído precisava. Seu olhar focou em mim e seus olhos quase saíram das órbitas. Com um sorriso débil e ele passou a língua enorme pelos dentes que lhes restavam e começou a empurrar a parede a qual estava encostado. Os braços e pernas pareceram ter novamente força para sustentar o corpo e, depois de três passos dados ele fez um gesto vigoroso com as mãos. Do outro lado do salão, Gabriela foi atingida por uma lufada de ar e bateu com as costas na pilastra que adornava a escada. As luzes começaram a falhar e a temperatura pareceu baixar 10 graus no espaço de um segundo. 

Na penumbra, vi que que a entidade se aproximava de nós com seus olhos assassinos e não muito depois senti as garras do monstro fazerem dois rasgos em toda a extensão das minhas costas. Meu terço brilhava com uma intensidade muito frágil mas consegui ver, que um segundo golpe seria desferido contra o meu pescoço e desviei a tempo do pior rolando para o lado. No reflexo, levantei e corri para perto da escada enquanto ainda estava visível mas depois lembrei que Vinicius estava impossibilitado de correr. Quando olhei para ele, vi o possuído guinchar e unir as duas mãos com os punhos fechados acima da cabeça, ele iria desferir um golpe contra o tórax de Vinicius que se protegia como podia. Victor se manifestou em algum lugar atrás de mim e eu podia ouvir seus passos correndo, mas eu sabia que estava mais perto e sem pensar muito me joguei sobre o meu amigo que não podia se mexer. Me pus como escudo para o golpe e esperei que viesse.

Mas não foi isso que aconteceu. Por uma das janelas superiores houve um rasante que mesmo de costas eu pude sentir passando por cima de mim e logo após isso o infernal começou a praguejar lamentos de dor verdadeira em muitos idiomas e vozes diferentes. Depois de registrar tudo isso me virei a tempo de ver a cena.

O velho podre estava com as duas mãos cobrindo os olhos, de onde saía muito sangue. Se batendo em móveis e paredes da casa. No ar, ainda próxima de nós dois pairava uma ave que poucos minutos depois alçou voo e se pôs acima de um busto de Athena que ficava no terceiro andar. 


Era uma coruja e seu bico estava vermelho. 

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