sábado, 16 de maio de 2015

Ver028



Me deixe explicar isso na melhor forma possível. Existiam algumas peculiaridades no nosso ramo de trabalho. Alguns de nós poderiam ter certas…habilidades mais desenvolvidas que outros. Não sei quantas vidas Júlio já havia vivido em serviço mas com certeza, durante elas, sua habilidade como rastreador fora desenvolvida.

O rastreamento não era uma habilidade restrita a ele, na verdade. Todos nós tínhamos e isso nos fazia sentir e conseguir assimilar a presença de um infernal que estejamos perseguindo. Ou sendo perseguidos. Mas, chamamos de rastreador quem tem esta habilidade tão desenvolvida que passa da média.

Júlio era um rastreador nato. Já faz muito tempo que não tenho notícias de Vinicius e, soube por Catharina que Gabriela morreu em combate em uma das visitas que ela me fez. Mas mesmo no último contato que tive com eles, nenhum tinha chegado perto do nível de Júlio como rastreador.

Tanto tempo depois, eu também não.

Não sei dizer ao certo se Victor já sabia que tínhamos um rastreador no grupo, ou se nos colocou naquela situação para moldar um. Quaisquer que fossem suas intenções, elas deram certo. Júlio estava descontraído, a pressão da energia negativa que o demônio havia deixado não pareceu aborrece-lo em nenhum momento. 

Víctor nos explicou qual era a função de um rastreador e enfatizou como este aspecto do nosso treinamento era algo importante, principalmente nos momentos em que estivéssemos sozinhos.

Seguimos as direções que Júlio apontava, cortando as ruas do bairro do Flamengo, sempre indo para o interior do bairro. Num determinado momento, em uma bifurcação, Júlio que agora era a dianteira do grupo, parou. Em dúvida se o caminho certo seria esquerda ou direita, fechou os olhos e inspirou lentamente. O rastro havia ficado frio.

Nenhum de nós havia dito nada desde que começamos a andar, ainda estávamos nos recuperando dos efeitos. Por isso foi quase um susto ouvir a voz de Vinicius, que agora caminhava sozinho, atrás de nós afirmando:

- Direita. - ele disse como se fosse óbvio.
- Você também está percebendo alguma coisa? - Victor materializou a dúvida de todos.
- Não, mas eles têm um bar ali. E bares são sempre bons lugares para pensarmos sobre um problema.

Pode ter sido a perna de Vinicius que o fez sugerir darmos uma parada no bar, mas eu chutaria que foi seu gosto pela bebida. Havia uma tradição, entre eu e ele, sempre após uma caçada (como depois fui saber que era o nome do que estávamos fazendo) ou um exorcismo solicitado, nós íamos ao Caneco 70, um botequim carioca tradicional, com uma fachada grande, dois andares e clientes cativos que conhecem os garçons pelo nome.

Essa tradição foi iniciada naquele dia.

Confesso ter ficado surpreso ao ver o quão prontamente Victor aceitou a ideia. Na época, eu tinha na cabeça que padres não poderiam beber nada alem de vinho. Devia ter estudado melhor as atitudes de meu instrutor, tomar uma cerveja não deveria ser nenhum problema para um homem que brigava com anjos e não usava batina. Sentamos todos em uma mesa circular do lado de fora do bar, que estava relativamente cheio para aquela hora da tarde. Depois de alguns minutos um garoto mais novo que eu e com uma barba por fazer que disputava lugar com algumas espinhas veio nos atender

- Boa tarde, ja escolheram?
- Voce tem Original? - Victor perguntou ao rapaz casualmente
- Tenho sim, uma so para todos vocês?
- Eu não vou beber. - Julio ainda parecia concentrado em achar o rastro perdido.
- Então somos so três. - o garoto ia se retirando para dentro do bar quando Victor o chamou novamente - E qual e o seu nome?
- Fabio, senhor.
- Pega uma das geladas, Fabio.
- E pra ja.

Enquanto Fabio ia em direção ao balcão nós, na mesa circular de madeira estávamos perplexos com a naturalidade com a qual Victor levara aquela conversa. Não parecia mais nosso instrutor. Nos entreolhamos enquanto ele tirava do bolso da calça uma carteira de couro e um moleskine sem pauta. Ao levantar levantar a cabeça entendeu a expressão de nós três e disse:

- Vinicius estava certo, este pode ser sim um bom lugar para conseguirmos informações. Nosso trabalho, ouçam bem, não é muito diferente do de um investigador de polícia muitas vezes. E bem como um policial tentando resolver um caso, precisamos conseguir a confiança antes de conseguir a informação.

Fábio voltou trazendo uma cerveja tao gelada que o vidro da garrafa parecia estar empoeirado. Pôs os copos na nossa mesa e serviu a bebida. Victor foi o último a ter seu copo cheio. Fábio, que era menos experiente do que no dia em que comecei a escrever este relato, perguntou se gostaríamos de mais alguma coisa do bar e Victor disse:

- Não. Do bar não. Mas eu gostaria de fazer algumas perguntas se voce não se incomodar. - Victor ainda esta travestido de sujeito amigável e isso parecia fisgar o pobre Fábio.
- Pois não, senhor. 
- Veja, achar o seu bar aqui foi uma sorte danada. Meu nome é Victor. Detetive Victor, - e ao ouvir este título Gabriela se engasgou com o que saía de seu copo. Pude ver a expressão de Fábio ir de despreocupada para apreensiva e sua mão, num ato involuntário, buscar uma cadeira vazia e se sentar conosco.
- Senhor detetive, se isso é por causa do problema na cozinha eu tenho certeza de que o Seu Luiz já acertou tudo e...
- Não Fabio, vigilância sanitária não é bem o meu foco neste trabalho. Sou um detetive policial somos, na verdade - agora ele indicava a nós -, ainda que meus colegas estejam em treinamento. E, como eu disse, gostaria de te fazer umas perguntas, se isso não for atrapalhar suas atividades no bar, claro.

As palavras eram sérias, mas o sorriso despretensioso permaneceu em seu rosto todo o tempo. Eu observava aquilo como quem vai ao teatro pela primeira vez. Fábio havia sido fisgado por ele e, agora mais tranquilo sobre quaisquer que fossem os problemas na cozinha do Caneco 70, parecia mais disposto a conversar:

- Não vai atrapalhar não, senhor. Já atendi as mesas lá de dentro e, ah, qualquer coisa eles me gritam.
- Que ótimo então. - Victor estava saindo do personagem e voltando à seriedade habitual - Fabio, eu e meus companheiros aqui estamos investigando um caso um tanto quanto...peculiar. Acredito que voce tenha ouvido rumores de ataques aqui pelas redondezas.
- Ah, a gente sempre ouve, né? Outro dia mesmo no jornal saiu de um grupo de pivetes que usam faca para assaltar ali no Aterro...
- Acredito que eu não tenha sido claro, desculpe. Veja, o caso que estamos investigando aqui é REALMENTE peculiar. Assaltos no Rio de Janeiro, infelizmente, ja fazem parte do nosso cotidiano, não é? Mas eu quero saber se voce viu ou ouviu alto realmente fora do comum.

Fabio vacilou, parecia ser algo de que ele não queria falar mas o homem de preto à sua frente lhe intinimidava. 

- Bom, tem esses rumores, - falou cautelosamente - eu nem sei se eu acredito, na verdade. Acho que não. Mas é que muitos dos clientes aqui já a algum tempo tem evitado passar por aquela casa amarela ali no fim da rua. - apontou para o lado direito da bifurcação que tinhamos encontrado mais cedo - Um deles, um senhor que vem vem aqui quase toda terça-feira, disse que seu filho foi perseguido por um fantasma que ronda a casa durante a noite. Claro que todo mundo deu risada, mas eu não.
- E porque você não riu?
- Eu acredito que todos temos nossos fantasmas, seu Victor, e que não é bom zombar deles.

Victor assentiu.

- Sábia decisão, garoto.

Eu terminava o meu segundo copo quando um dos clientes no balcão chamou Fabio para pedir algo e ficamos sozinhos à mesa. Gabriela fitava Victor com a expectativa de  saber qual seria o nosso proximo passo. Vinicius esvaziava a garrafa que tínhamos pedido e eu tive certeza de que ele iria pedir uma saideira se Júlio não tivesse nos avisado que talvez a pista estivesse mesmo certa. 

Victor se levantou para pagar a conta e fui surpreendido quando ele me chamou para acompanha-lo. Não eram muitos passos da mesa onde estávamos até o balcão, mas parecia mais do que o suficiente para ele me jogar uma bomba:

- No ritual que estamos prestes a performar, quero que voce seja meu diácono.

“Diácono”, eu tinha lido no anexo que vinha junto à minha bíblia, é um cargo da hierarquia de sacerdotes com algumas atribuições, e uma das mais importantes é seguir com o exorcismo se o padre que o começou não puder continuar.