segunda-feira, 27 de abril de 2015

Ver027



Eu parei no meio de um dos passos de Vinicius e quase o fiz cair. Favrashis são anjos que tem a função específica de guiar e proteger aspirantes a sacerdos, disso eu já sabia. Mas nunca tinha atentado ao fato de que eles são imortais e nós não. Até Vinicius me falar isso, eu achava que cada Favrashi estaria ligado a somente um de nós, quando sua missão aqui estivesse concluída, por bem ou por mal, restaria a eles apenas subir e aguardar que voltássemos a este plano. Só agora eu via que fazia sentido o mesmo anjo proteger incontáveis mortais durante os seu dias infinitos.

E Reint, o Favrashi amargurado, tinha sido o guia de Victor, nosso também amargurado orientador. Preciso confessar que, desde o breve embate que os dois tinham tido antes de entrarmos no carro, minha simpatia pelo exorcista havia crescido sensivelmente. Não gostava do jeito superior e distante que o Reint parecia impor com a sua presença. Não que Victor tambem não o fizesse mas, sendo mortal, ele fazia de um modo diferente.

- Júlio não me disse o que houve, e acredito que ele também não saiba. - Vinicius, que tinha dificuldades para caminhar e falar, ofegava - Eu até perguntei pra Olyver, ele disse conhecia Reint há pouco mais de dois séculos, mas ainda assim sabia muito pouco sobre ele. O cara é muito fechado.
- Percebeu como é estranha a interação dele com o Júlio? Quer dizer não é como a relação que eu tenho com a Catharina ou você e o Olyver. As vezes parece algo mais...doutrinador.
- É, nao sei bem o que acontece entre aqueles dois. - se pudesse, Vinicius teria dado de ombros - Só sei que não queria estar na pele ele.

Vinicius indicou nosso colega com a cabeça, ele ainda caminhava ao lado da hiperativa Gabriela. Júlio era o mais peculiar de nós. Não digo pela aparência, quanto a isso meu amigo era bastante básico: pele morena, cabelos cortados à maquina e um nariz que indicava alguns antepassados judeus. A coisa mais diferente que Júlio apresentava à primeira vista era seu sotaque, ele era nascido em Macaé.

Mas isso mudava quando voce prestava mais atenção nele, e naquele dia eu prestei. A verdade era que Júlio era o mais preparado de nós para fazer o que faríamos. 

Observei, alguns passos atrás, que ele e Victor caminhavam da mesma maneira. Marchando. No momento que eu acompanhava os pés de Victor ele parou. Girou nos calcanhares para nós e disse:

- O que vocês estão sentindo?

Estávamos numa rua estreita do Flamengo, havia um supermercado à nossa direita. O número de pessoas com seus sentimentos, suas dúvidas e intenções atraiu minha atenção para lá. Mais do que isso,  atraiu meu rosto, instintivamente eu virei naquela direção.

- Ali…depois daquela locadora. É pra lá que estamos indo, não é? - Júlio apontava para uma esquina que dobrava sobre uma locadora antiga, daquelas que pareciam ter mais pornôs do que filmes de Hollywood.

Eu, e percebi que Vinicius também, que olhávamos para o supermercado agora começávamos a notar alguma coisa ali, logo atras da velha locadora. 

- É mais fácil ver alguma coisa depois que sabemos que ela está lá. Vocês dois - Victor vinha caminhado até onde eu e Vinicius estávamos - olharam para o mercado porque ele grita, e o que grita costuma querer atenção. O que procuramos é um sussurro no meio de tudo isso. Procuramos alguém que não quer ser achado.

Parou, olhou para mim e para Vinicius por mais um momento e se encaminhou de volta para a posição de batedor do grupo. Mas ao passar por Júlio, disse:

- Bom trabalho rapaz, é mesmo pra lá que nós vamos.

Não houve um sorriso, uma mão no ombro ou mesmo um contato visual, mas aquela foi a primeira vez que Victor disse algo proximo a um elogio para qualquer um de nós. Júlio, se tivesse a pele branca como a de Catharina, teria ficado vermelho.

Quando viramos a esquina da locadora Vinicius pediu um para descansar um pouco mas Victor disse que não havia tempo. O que Júlio havia sentindo ali tinha sido um rastro da presença recente do infernal, e precisávamos encontrá-lo enquanto o rasto estava fresco.

Vejam, o que eu chamo de "rastro" é uma espécie de ectoplasma rançoso e invisível que, agora que estávamos mais perto, parecia inexplicável eu não ter notado antes. 

O ar era pegajoso. Olhei e vi meus colegas com a mesma sensação de desconforto que eu tinha, Victor entretanto, era uma estátua que nos observava. Eram quase três da tarde e o sol estava forte no céu. Isso não ajudava no incomodo. 

- Então, era sobre isso que a Eduarda estava falando outro dia, - ouvi Gabriela surpresa a minha direita - essa é a tal “presença”.
- Exatamente. E é este tipo de pegada que vocês devem estar atentos daqui para frente. Percebam como é uma energia diferente das que estavam lá no mercado da outra rua, e diferente das que nós emanamos também.

Muitas coisas na vida seguem a lógica da bebida e essa é uma delas. Após tanto tempo em contato direto com este tipo de experiência, seus efeitos já são mínimos para mim, mas confesso que neste início de carreira era algo bastante desconfortável, física e psiquicamente. Minha alma parecia ser arranhada, meus ouvidos pareciam ter subido a Serra, e minhas pernas tremiam.

Eu, que servia de muleta para Vinicius, de repente tombei sobre ele e ambos caímos. Do chão eu vi que Gabriela buscou apoio no vidro empoeirado da velha locadora. Encostada ali, aos poucos ela também ia escorregando. 

Fora Victor, Júlio era o único que conseguira ficar de pé. 

Quando olhei para ele, seus olhos estava fechados, como se lendo aquela energia, estudando cada pormenor, cada partícula invisível que nos impelia daquela forma. Victor veio até nós e nos deu a mão para levantar.

Não pude esconder a minha surpresa, ele ignorou.

- Agora, fechem os olhos, todos vocês - apesar da confusão que passávamos internamente, para os passantes na rua, acredito que não éramos mais de garotos reunidos tomando sermão de um dos pais porque exageraram na hora na noite anterior. Victor continuou:

 - No seu primeiro contato com seus Favrashi tenho certeza que todos vocês se sentiram inundados por uma energia acolhedora inédita, isso facilita muito o trabalho deles. Nos faz sentir acolhidos e confiar no que eles dizem. Este caso é o oposto, esses caras querem afastar a gente, e aqueles de vocês que já tiveram experiências com demônios podem confirmar isso.

Ao ouvir isso me lembrei do meu primeiro contato com Máira, e do o berne que exorcizei mesmo antes de saber ministrar um exorcismo formalmente aceito pela Igreja. De fato, esses seres emanavam ondas de energia escura tão poluídas que era perturbador estar em sua presença. 

Mas meu pensamento voou para a outra experiência de contato que eu tive com um ser do plano inferior. Com a Carol este tipo de coisa não acontecia. Não falei para Víctor, mas sua afirmativa era errada. O oposto  disso era o que Carol fazia. Estar com ela era agradavelmente perturbador sim, mas era o seu par de pernas o responsável por isso, não algum tipo de ectoplasma negativo.

Se Carol tivesse deixado algum tipo de "rastro" eu já teria ido atrás dela.

Enquanto o pensamento nela tornava um pouco mais agradável os meus primeiros goles desse drink amargo, Victor continuava nos instruindo:

- Concentração, garotos! Contra-ataquem, vocês tem o poder de sobrepor essa energia escura com a sua própria. Empurrem, empurrem ela de volta, pra longe. 

Foi literalmente isso: empurrar. Só que a força que eu fazia não era física. Foi difícil no início, mas pouco a pouco percebi que nós três fazíamos a pressão diminuir. Após alguns minutos ela ainda estava lá, mas bastante enfraquecida. Agora eu sentia, no máximo, uma dor de cabeça de fim de ressaca. Tirei os óculos para massagear os olhos doloridos, depois que o mundo entrou em foco novamente eu vi dei uma olhada geral no meu grupo: Vinicius se encostava em um carro por culpa da perna ruim e Gabriela estava sendo levantada por Victor num gesto semelhante ao que ele fez comigo minutos antes.

Júlio permanecia de pé.

Desde que tudo aquilo começou ele abriu os olhos e, após ter um panorama geral da situação disse, sorrindo, com seu peculiar sotaque de Macaé:

- Eu sei aonde ele está.
- Senhoras e senhores, - disse Victor, orgulhoso - encontramos o nosso rastreador.




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