sábado, 18 de abril de 2015

Ver026



É verdade que esta era a parte mais prática do nosso treinamento. E é verdade também que eu havia perdido as duas primeiras sessões que Victor havia ministrado. Mas eu, e todos os outros aspirantes ficamos perplexos quando ele levantou e foi em direção à porta da sala.

Animação não parecia ser algo natural para aquele homem amargo. Júlio de prontidão se pôs atrás do nosso instrutor. Gabriela me olhou sem saber o que fazer eu dei de ombros.

- O que vocês estão esperando? - de braços abertos Victor tentava entender o que nos prendia em nossos lugares - Vamos, levantem! Vamos atrás desse encosto que atacou Vinicius!
- Espera! Você quer que nós…bom, que nós enfrentemos esse monstro assim, sem preparação? - apesar da timidez, a voz de Gabriela falou por todos nós - Professor, isso é muito perigoso, você viu o que aconteceu com Vinic..
- Eu não sou professor, Gabriela. Eu sou um exorcista e meu dever aqui é fazer com que vocês sejam também. - Victor falava firme, mas não tinha a voz exaltada. - Percebam, garotos, eu extermino demônios há anos e falo com propriedade quando digo para vocês: não ganhamos esse tipo de luta só com os livros. A teoria que Marcelo dá pra vocês é importante, Eduarda ajuda a balancear suas habilidades psíquicas mas, o que fazemos, o que vocês vão fazer daqui para frente, é estritamente prático. Por isso, tenham a bondade de me seguir para que possamos aprender um pouco, certo?

Havia faíscas em seus olhos. Não como os de Haniel, que incidiam uma luz vazia e sem alma. Mas da mesa que eu estava, percebi o que Victor tinha o olhar de um soldado dedicado que se iluminava sempre que uma nova missão lhe era entregue e, na verdade, ele não era mesmo muito diferente disso. 

Júlio foi o primeiro a levantar e ir em direção à porta. Gabriela esperou enquanto eu ajudava Vinicius a levantar para seguirmos. A confiança que Victor passava naquele momento contagiava todos na sala, mas parecia que ela não vinha sozinha. Eu senti satisfação quando passei por ele. Ouvi a porta fechando e subimos para o piso principal do Templo.

Os quatro Favrashi e Padre Pedro conversavam quando aparecemos nos primeiros degraus da escada e se espantaram com a nossa movimentação. Victor fez sinal para pararmos e seguiu sozinho para conversar com o grupo de celestes e o velho padre.

Foi uma discussão acalorada, nos entreolhávamos com certo constrangimento quando algum deles levantava a voz. É estranho ver anjos gritando quando mortais ficam calmos. Sentei Vinicius num dos bancos da igreja e Gabriela fez menção de ir até o pequeno grupo que discutia à nossa frente, mas Júlio a manteve no lugar. 

Obedecemos e ficamos observando de longe uma discussão que começava. Quando ela cessou, Catharina veio pisando firme em minha direção, seus pares fizeram o mesmo, exceto por Reint que chamou Júlio para ir ao seu encontro. Acompanhei meu colega indo conversar com seu anjo protetor com os olhos e o contato visual foi cortado por um estalo dos longos dedos de Catharina.

- Você está ouvindo o que eu falei?! Isso é loucura! Esse homem é maluco! Depois do que aconteceu, deixar vocês sozinhos, até parece! - a última frase foi dita em direção a Victor sem a menor tentativa de disfarce. Ele estava impassível. Catharina continuou:

- Escute o que eu vou te dizer, Victor falou a Pedro que vocês já poderiam escolher ir ou não. Ele sabe das regras, se você quiserem que fiquemos aqui nós não teremos opção. Olyver contou que se trata de um humano em estado de possessão, mas mesmo assim é arriscado, Pablo. Todos nós fomos contra…quer dizer, até Reint foi contra, e olha concordamos em muito pouco.

Ela olhava para mim com esperança de que eu endossasse seus comentários e concordasse com seus argumentos. Percebi que Hoan e Olyver faziam o mesmo com seus protegidos. Eu estava com medo, racionalmente era óbvio que eu não queria enfrentar aquilo sem Catharina. Por mais que os outros e Victor estivessem comigo eu percebi, pela primeira vez, a necessidade que eu tinha de ter Catharina ao meu lado. Ela estava comigo desde que aquilo havia começado e em todas as situações de perigo que eu havia estado, minha Favrashi estava presente.

E foi justamente por isso que eu resolvi ir sozinho. Percebi que o trabalho de Catharina era me acompanhar, e não fazer as coisas por mim. Foi aí que resolvi que, se fosse me dedicar totalmente à isso, eu deveria saber quais são minhas limitações, saber até aonde eu poderia ir. E aquela seria uma oportunidade perfeita para descobrir isso. 

- Eu acho que Victor está certo. Tivemos uma conversa lá em casa mais cedo, lembra? Eu sei que você se preocupa e sei da sua função nisso tudo, mas acho que eu preciso…que nós precisamos, na verdade, começar a caminhar um pouco sem vocês. - indiquei Hoan com a cabeça enquanto falava isso - Eu quero levar isso à sério, e só vou conseguir se souber a extensão total das minhas habilidades.

Catharina murchou, deu a impressão de ser menor do que eu. Ela engoliu seco antes de dizer que entendia a minha decisão. Talvez tenha sido essa predisposicão que nós temos para captar os sentimentos alheios que me fez ser inundado pelo balde de agua gelada que eu mesmo havia jogado nela com as minhas palavras. A sensação não era boa, meu impulso foi abração Catharina e seus olhos tristes, mas me mantive firme. Seus lábios tristes se verteram num sorriso e as mãos que tocaram meus ombros ajudaram a tirar um pouco do peso que começava a se formar ali. Ela falou mesmo sem usar palavras. 

- Volte inteiro.

Não sei se me ouviram ou não, mas Gabriela e Vinicius tomaram a mesma atitude que eu. Desta vez, os celestes ficaram e nós caminhamos até o altar, onde Vinicius e seu Favrashi conversavam em voz baixa. O clima na antiga catedral era tenso. Por vim, Reint e Júlio se juntaram a nós e pela primeira vez eu ouvi a voz do homem de terno que usava abotoaduras douradas e um cabelo impecavelmente penteado.

- Acreditamos que seja bom para os futuros sacerdos experimentarem situações em nossa ausência. No entanto…Victor, espero que você esteja ciente da responsabilidade que tem nas mãos. Os tempos estão difíceis, temos cada vez menos recrutas e ainda vai demorar para termos outra leva de encarnados. - sua voz era baixa, monótona e rouca. Diferente dos outros Favrashi, Reint não fazia questão de ter aquela simpatia natural. Me pareceu um funcionário público que está ali batendo seu ponto e cumprindo tabela até seu horário de saída chegar. Victor não pareceu intimidado, pelo contrário:

- Eu já calculei todos os riscos, Reint. Pode ficar despreocupado.
- Você já faz idéia do que vocês estão atrás?

Vinicius respondeu antes do nosso instrutor.  Percebi que Reint não intimidava só a mim quando ele começou a fase gaguejando, como se sua voz também mancasse:

- B-bom, estávamos…Olyver e eu quer dizer, vindo para cá, era cedo aind...
- Porque é importante que você saiba exatamente qual é o alvo que estão procurando - o olhos de Reint não saíram do rosto de Victor, apesar da fala de Vinicius, que deu um sorriso amarelo quando o anjo continuou - Esses garotos tem uma responsabilidade enorme nos ombros, seria interessante se os seus instrutores lhes ensinassem algo sobre isso também.
- Esta não é minha primeira turma. Já passamos do tempo que você me dizia o que fazer, Reint, então por favor deixe que eu faça meu trabalho. Acredito que muitos dos que se ordenaram comigo ainda estivessem vivos hoje se tivéssemos tido experiências práticas assim. Eu vou levar os garotos e, fique tranquilo, não vou abandoná-los lá.

Reint se limitou a dar um sorriso amarelo e mudo. Deu as costas e se encaminhou para onde estavam os outros. Júlio, bastante desconsertado, deu dois passos a frente e Victor passou a mão na sua cabeça. Foi o primeiro sinal de afeição que eu vi naquele homem.

Com o grupo reunido e devidamente autorizado para a missão externa nós partimos. Fomos no carro de Victor, um Mondeo preto. Discreto e elegante, como era o seu dono. Vinicius foi sentado na frente por causa da sua perna machucada e Gabriela se pôs entre eu e Júlio no banco detrás.

O carro não tinha aparelho de som, e nenhum som foi emitido por nós todos enquanto pegávamos o caminho que daria no Aterro do Flamengo. Victor aproveitou um dos raros horários que o transito não estava caótico para extravasar o que quer que estivesse lhe perturbando os pensamentos em velocidade. 

Em menos de 15 minutos estávamos estacionando o carro em frente à delegacia antiga do bairro do Catete. Segundo Victor, era mais seguro seguir à pé a partir dali. Júlio, sempre escoteiro, abriu a porta do carro que estava oposta a mim e esperou Gabriela passar por ela. Eu fui até a porta da frente para ajudar Vinicius a ficar de pé. Victor ia à nossa frente e não olhava para trás, Júlio e Gabriela conversavam à minha frente, ela gesticulava muito. Suas mãos ficavam inquietas quando ela estava nervosa. O esmalte nos seus dedos era escuro, escuro como os olhos de Carolina. De repente o nós estivéssemos indo encontrar, fosse o que fosse, já não era minha maior preocupação.

Demorei para perceber que Vinicius estava falando algo.

- Você viu aquilo lá? Acho que eles nunca vão superar.
- É, o clima ficou pesado mesmo lá na Igreja, né? - a frase saiu após um longo suspiro -Victor parece ser bem difícil, mas seu Favrashi também não fica atrás, não é?
- Nem sempre, é que esse caso é pessoal.
- Pessoal? Eles tem algum tipo problema antigo não resolvido?
- É, Júlio me contou - Vinicius disse entre seus passos mancos - Reint foi o Favrashi de Victor durante seu treinamento.




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