quarta-feira, 4 de março de 2015

Ver024



Não me entenda mal, eu não sou mentiroso. Na verdade eu odiava mentir, mas o fazia quando era necessário e geralmente era convincente. 

Não naquele dia.

Quando a maioria dos membros da Ordem foi embora, eu achei que tinham comprado o que eu disse sobre não lembrar muita coisa depois do suposto ataque sofrido duas noites atrás. Ficou mais fácil organizar as coisas na cabeça depois que aquele anjo de olhos vazios foi embora e, justo quando eu comecei a relaxar Catharina e padre Pedro vieram com aquela pergunta. Diretos como um trem-bala.

- E então, que tal nos contar a verdade agora? - Catharina disse, de braços cruzados e aquilo me bateu como um tapa no rosto.
- Como assim? - dissimulei
- Pablo, padre Pedro me disse que você não foi jogado na entrada do templo e deixado lá à própria sorte. Alguém o trouxe aqui para dentro. Alguém com flamejante cabelos ruivo, certo Pedro?

O velho padre parecia desconfortável com toda aquela situação, com se Catharina estivesse obrigando-o a delatar um amigo. Minha simpatia pelo homem crescia mais a cada momento.

- Eu acordei com um barulho aqui em cima. Subi as escadas e vi alguém trazendo você desacordado nos braços. Cheguei a pensar que fosse Catharina quando a vi de longe, meus olhos já não são mais tão confiáveis como eram, eu acho. Mas chegando mais perto eu vi que não poderia ser ela ou nenhum outro celeste porque a criatura estava sofrendo por estar aqui. Mas é curioso porque ela, seja quem fosse, não parecia ter atacado você. Na verdade, me pareceu que ela estava tentando salvar você.
- Marcelo esqueceu de falar uma coisa mais cedo. Vítimas de upyres, totais ou mesmo aquelas que foram transformadas, quase sempre mostram marcas de resistência ao ataque. Você não. Era como se você tivesse se entregado à ela. Então agora nos faça um favor e o que você e Carolina LeBion fizeram duas noites atras. - Catharina num tom muito inquisidor.

Ao saber que ela tinha me levado até la, a mão que parecia estar apertando meu coração desde que comecei a pensar que Carol tinha me abandonado sumiu como que por encanto. Mas o sentimento de alívio durou muito pouco porque minha cabeça começou a se questionar o que me trazer à Candelária poderia ter custado a ela.

- O que aconteceu com ela? Quer dizer, quando me deixou aqui? Marcelo nos disse na sala que igrejas são a única arma absoluta contra qualquer tipo de demônio. Nenhum deles pode por os pés em igrejas. Aonde ela está? - o silêncio dos dois era como uma agulha sendo pressionada contra meu cérebro - Por favor?
- Ela começou a tremer muito e se contorcer. Cada passo lhe pesava muito. As veias saltavam na pele muito pálida e as olheiras faziam os olhos parecerem pequenas bolas de gude. Estou no ramo há alguns anos, filho. Já vi demônios poderosos tombarem assim que passaram por aquela mesma porta. Essa…menina andou quase até o altar com você nos braços. 
- E?
- E depois foi embora.
- Assim, sem mais nem menos? Ela disse alguma coisa? Para onde iria, algum contato…qualquer coisa?
- Não, sinto muito.

Sacerdos são treinados para captar as emoções alheias, isso é uma arma muito poderosa quando precisamos identificar algum demônio na multidão de mortais. Mas padre Pedro era capaz não só de sentir, mas como de acalmar qualquer emoção ruim que pudesse tomar conta de alguém. Percebendo que eu fiquei cabisbaixo com a notícia, ele pôs a mão no meu ombro e me disse:

- Mas não se esqueça de que ela entrou aqui só para salvar você. 

Seu sorriso não era largo, mas era sincero e isso bastou para me acalmar um pouco naquele momento e fez brotar uma chama de esperança de que ela poderia estar bem. 

- Na minha reunião com Hoan e os outros Favrashi, a segurança de vocês foi um importante ponto de discussão. Anteontem decidimos que não vamos mais ao plano superior dar e receber informações até a ordenação de vocês quatro. Ganthen foi designado para fazer a função de mensageiro, embora não tenha ficado muito feliz com isso. Houve uma outra tentativa de ataque ontem à noite enquanto você se recuperava, Vinicius foi abordado no caminho para a orientação que Eduarda aplicaria, a sorte é que Olyver, seu protetor, estava com ele. Aquela pobre menina Bruna foi morta antes mesmo de começar o treinamento. Eles já sabem o que a gente está fazendo aqui e vão se empenhar em impedir. A decisão que tomamos foi a de acompanhar nossos protegidos incessantemente vinte e quatro horas por dia. Eu estaria preocupada com o seu ataque se realmente acreditasse que foi um ataque, mas não foi, certo? 

Catharina tinha na voz a confiança de quem usa um argumento irrefutável em uma discussão. Eu não mentiria pra ela, até porque ela já sabia da minha relação com Carol. Mas me preocupava com o que padre Pedro pensaria daquilo tudo. Meus olhos foram dela para ele e voltaram para Catharina. 

- Não se preocupe, Pedro sabe. Eu contei a ele que você tem recebido visitas de Carolina LeBion. E de todo romance que vocês tiveram no passado.

Padre Pedro afirmou com um leve aceno de cabeça. Senti uma raiva instantânea de Catharina por ter contado esse segredo para ele, mas durou menos que um segundo. A raiva deu lugar a um orgulho inexplicável, mas bastante forte, por ter ouvido que eu tive um romance com Carol. Mesmo que tenha sido em outra vida. 

- Bom - eu comecei relutante - saí daqui e me despedi de todos antes de pegar o caminho até a estação de metrô. Em algum ponto no meio do caminho ouvi ela me chamando. Me virei e a vi, Carol usava um vestido vermelho...


+++

Falar ainda era algo incômodo, mas contar da noite que tivemos me fez voltar ao abafado apartamento na Lapa e quase reviver tudo que fizemos. Disse tudo para eles, omitindo os detalhes desnecessários apenas. Catharina e padre Pedro acreditaram quando eu disse que não lembrava nada após o beijo que ela havia dado no meu pescoço.

Minha Favrashi que alegava já saber que não havia sido um ataque estava muito mais perplexa do que eu imaginei que ela ficaria quando eu terminei meu relato. O bom padre negro esfregou a manga de suas vestes negras na testa também negra para limpar o suor e eu consegui ver através de suas emoções. Não era choque ou perturbação. Parecia nostalgia, como se ele tivesse tido uma experiência parecida com a minha anos e anos atras. Preferi não tocar no assunto mas esbocei um sorriso que foi correspondido por ele. Catharina falou:

- Eu ainda não acredito que ela fez isso! 
- Ela fez, e fez muito bem. - brinquei.
- Catharina está certa, este tipo de relação pode comprometer não só o seu desempenho como sacerdo, mas também a sua própria vida. - Pedro falava com uma seriedade comicamente dissimulada na voz.
- Exatamente! Além de ser explicitamente proibido pelas regras desta Ordem!
- Bom, tecnicamente isso não é verdade...
- Do que você está falando?
- As regras incentivam sim a não relação com outros mortais, até pelo sofrimento que isso poderia causar para ambas as partes se o um demônio descobrisse que o secando tem entes queridos. Mas eu não lembro de nenhuma ressalva sobre relações com infernais, você poderia me dizer alguma?

Catharina cruzou os braços e sentou novamente nos bancos da catedral. Eu finalmente consegui levantar e, apesar da dor, me sentia bem. Se eu fechasse os olhos e me concentrasse bem, ainda conseguia sentir seus cabelos no meu rosto e o perfume da sua pele em mim.

É engraçado porque pessoas costumam odiar cicatrizes. Eu gostei gostei do fato daquele anjo de presença desagradável não ter conseguido tirar as cicatrizes que ela fez em mim. Levei as mão ao meu pescoço, gesto que eu repetiria muitas vezes depois disso, e mesmo com o curativo eu as senti ali. Era como sentir seus lábios no meu pescoço de novo e isso me fez começar a pensar quando nos veríamos novamente. 

Infelizmente seria um bom tempo depois dali.



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