sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Ver023



Foi um processo dolorido acordar. Uma força parecia querer empurrar meus olhos para fora das órbitas, a cabeça pesava como se eu tivesse com uma ressaca infernal. Sentia o pescoço inchado por baixo da gaze que botaram para sustentar o curativo que estancava o sangramento.

Precisei piscar algumas vezes para que a visão entrasse em foco novamente. Quis levantar, mas uma mão firme me manteve deitado. Olhei ao redor e vi Catharina, Victor, Marcelo, Eduarda e é claro, padre Pedro. Victor tirou as mãos do meu peito quando teve certeza que eu não tentaria mais me erguer. Lembro que sua expressão era um pouco diferente da frieza com ar superior que eu estava acostumado.

Todo grupo me fitava com certa curiosidade, como se eu fosse atração de algum circo de aberrações ou algo do tipo. Catharina parecia mais pálida do que o normal quando ela se aproximou de mim tomando o lugar de Victor. Ela tomou o meu pulso, primeiro achei que fosse para ver a frequência cardíaca mas ela levantou meu antebraço até a altura dos meus olhos, me mostrando o símbolo que ela mesma tinha feito em mim algum tempo antes.

- Essa marca, Pablo, é para ser usada. Ao menor sinal de perigo, ao primeiro sentimento de estar sendo observado. Eu sou sua guardiã, minha função é única e exclusivamente proteger você, porque você insiste em enfrentar estes perigos sem me chamar? - sua voz não vinha em gritos, mas num tom bastante severo - Por favor conte-nos o que houve.

Uma voz que eu ainda não conhecia seguiu o pedido de Catharina. Minha visão ainda estava um pouco turva, provavelmente por não estar usando meus óculos, mas estranhei não ter visto nem mesmo seu vulto quando acordei. Certamente não era uma presença que passasse desapercebida.

- Não intimide-o. Ninguém sofre um ataque de demônio porque quis. Dê tempo ao garoto, ele acabou de acordar. - me sorriu - Mas tenho certeza de que quanto estiver em condições novamente nos contar exatamente o que aconteceu anteontem à noite certo?

Eu percebia a sua intenção de querer ser amigável e ganhar a minha confiança, mas ela falhava. A voz era mais fria que o corpo de Carol. Sem emoção alguma, como se uma gravação conversasse comigo. Era um homem de estatura mediana, com usava o corte estilo moptop nos cabelos castanho-claros. Caucasiano, vinha com uma camisa social branca, com a manga dobrada até os cotovelos e uma gravata azul-marinho presa ao seu primeiro botão. Não conseguia distinguir a cor de seus olhos porque, para mim, eles faiscavam.

Catharina, que também olhava para ele, pôs meu pulso com cuidado de volta no leito improvisado e me falou para que nunca mais fizesse isso de novo. Quem quer que fosse esse homem, tinha autoridade sobre ela.

- Você disse “anteontem”? - perguntei desconfiando que tivesse entendido errado.
- Sim meu filho, você dormiu quase 48 horas. E, me deixe dizer que eu esperava que você ficasse mais tempo desacordado depois de tudo o que aconteceu. - padre Pedro assumiu a resposta para a pergunta que eu tinha direcionado ao desconhecido, e mentiu - Você foi deixado aqui na porta da igreja anteontem durante a madrugada. Saí para tomar um ar, pois estava muito quente e te encontrei caído nos degraus da entrada principal e com uma grave hemorragia. 

Ainda não sabia da história real, mas a idéia de Carol ter me abandonado nos degraus da igreja me causou algo muito mais dolorido do que qualquer outro hematoma que eu tinha no corpo. Ele continuou:

- Como estava sozinho, eu mesmo comecei o processo para estancar a hemorragia. Trouxe você aqui para a enfermaria e comecei a analisar se o ataque poderia ser reversível.
- Reversível? - eu estava confuso
- Todos os indícios indicavam para um ataque feito por um upyr bastante forte - Marcelo, o instrutor sobre demonologia explicou - A falta extrema de sangue, os furos incisivos e profundos no pescoço, anemia, arranhões pelo corpo. Não foi muito difícil concluir quem te atacou.

Era quase engraçado ouvi-los falando que eu fui “atacado”. Suas vozes ficaram em segundo plano e eu tentei lembrar o que havia acontecido na noite anterior mas tudo continuava nebuloso. Eu conseguia lembrar, obviamente, do que tínhamos começado a fazer mas não conseguia lembrar como tínhamos terminado.

- Você foi mordido. - o estranho respondeu a pergunta que eu me fazia em silêncio - Após o sumo-sacerdo te encontrar por…sorte em frente à igreja e prestar os primeiros socorros ele convocou o resto da ordem e, tendo o senhor Marcelo constatado o ocorrido o grupo precisava correr para reverter a transformação.
- Você já imaginou o que poderia acontecer se tivesse se tornado um deles? - Catharina falava como se soubesse o que tinha acontecido.
- O que acontece é que upyres tem dois modos de ação. O tipo e ataque mais comum é o eles matam a vítima drenando todo seu sangue, seja do pescoço ou pulso. Eu já vi um cadáver seco por um desses demônios uma vez, é algo inacreditável. Mas com você, por algum motivo, aconteceu o outro tipo de investida. Quem te mordeu não terminou o serviço e eu sei, por estudo, que essa é uma atitude extremamente difícil para eles. Geralmente acontece quando upyres seculares, totalmente cientes de seus poderes, tomam a iniciativa de criar algum companheiro porque, se a mordida for interrompida num estado mínimo de vida do atacado, algumas horas depois a transformação começa.

Marcelo parecia querer gastar todo o conhecimento que adquiriu ao longo dos anos.

- E era justamente isso que queríamos evitar, filho. Quando eu te vi, já sabia que o estado era grave, mas não podia precisar há quanto tempo tinha acontecido. Por isso chamei todos da ordem e todos nós fizemos um ritual enoquiano para trazer Haniel aqui.
- Haniel?
- Haniel, líder dos Potestades da Segunda Tríade Celeste. - agora que o estranho se aproximava e eu consegui ver mais precisamente. 

Seus olhos não tinham íris.

Apertei a sua sua mão e senti sua energia me invadir como um choque. Não era doloroso, devo dizer que amenizou as dores que eu sentia, mas também não era algo confortável. Me sentia como se aquelas ondas que ele transmitia através do toque vasculhassem cada canto da minha cabeça. Me recostando eu disse:

- Prazer, Haniel. Mas porque tiveram que fazer um ritual complicado para te trazer até aqui? Não era mais fácil chamar Catharina? - minha fala soou mais hostil do que eu esperava.
- Eu fui chamada, Pablo. Mas não podia fazer nada além de torcer para a reversão dar certo. Você já estava pálido com os lábios ressecados quando eu cheguei aqui. Acho que você não deve estar percebendo o quanto Haniel é poderoso. Potestades são chamados de “os condutores da ordem divida”, eles tem contato direto e irrestrito com o próprio Yahweh. O anjo da morte é um Potestade, tente imaginar o poder deles. Se alguém poderia reverter esta situação, seria um deles.

Fiquei um pouco perplexo com essas informações. Claro que a presença de um anjo sempre era algo estarrecedor. Mesmo Catharina não tinha uma presença comum, apesar de já conviver comigo há algum tempo àquela altura. Mas realmente dava pra ver que Haniel era uma outra categoria de celestes.

- Eu chamei o anjo mais poderoso que eu conhecia. Imaginei que ele teria outras tarefas para tomar conta, mas como Catharina falou, sabia que ele poderia nos ajudar a parar a transformação. 
- Em nome dos velhos tempos, Pedro, eu não negaria um pedido seu. E mesmo se não fosse isso, recebo informações de que as Ordens de sacerdos estão cada vez menos numerosas e precisando de auxílio. Catharina falou a verdade, nossa função é fazer valer a vontade de Yahweh sobre todas as coisas, e até por isso eu não me negaria descer aqui e ajuda-lo. - agora ele me olhava com os olhos sem alma de novo - Desculpe, Pablo, mas não consegui evitar as cicatrizes.

Victor, que eu tinha esquecido estar presente lá, perguntou: 

- Exatamente o que aconteceu na última noite? Descreva o ataque para nós para que possamos preparar as defesas.
- Eu…eu não lembro. - Catharina me olhava de forma reprovadora.
- Qual a sua última lembrança antes do ataque?
- Bom, eu lembro que saí da palestra que tivemos com o Marcelo ontem e fui direto para casa. - de modo algum eu contaria para eles sobre a Carol - Não estou certo se cheguei a entrar no metrô.

Victor estava visivelmente insatisfeito e disse que ia passar a informação e disse que iria, com Eduarda e Marcelo, avisar os outros aspirantes do ocorrido. Haniel anunciou que deveria ir ao plano superior também, outras tarefas o aguardavam. Disse que esperava me ver de novo, mas eu torcia, mudo, para que não.

Após a saída de todos restamos apenas Catharina, padre Pedro e eu no aposento com paredes de pedras e mal-iluminado que era a enfermaria da Ordem. Padre Pedro estava sentado, Catharina de pé ao meu lado. Minha Favrashi caminhou até o banco também e se sentou cruzando os braços.


- E então? Que tal nos contar a verdade agora?

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