segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Ver022



Precisei tomar um banho gelado depois de lembrar o que aconteceu na primeira noite que eu passei aqui. As vezes eu penso em me mudar deste lugar. Poderia voltar para Copacabana mas eu sinto que este apartamento e todas as memórias que tivemos aqui são o último fio de qualquer ligação que eu ainda possa ter com ela. 

Os acontecimentos que vou relatar agora aconteceram num período de inconsciência meu, montei fragmentos das pessoas que me ajudaram naquela noite. Carol e padre Pedro. Esta história não estaria sendo contada não fossem os dois.

Carol, numa conversa que tivemos alguns meses depois, me disse que só se deu conta do que estava fazendo quando parou de me sentir entre as suas pernas. Quando o frenesi acabou, ela já tinha sugado muito de mim.

Durante todo o tempo em que passamos juntos, Carol foi obrigada a lutar contra a proporia natureza. O calor do sangue circulando pelo meu corpo, o cheiro, o gosto. Tudo isso era um convite para ela. Cada segundo que passava comigo, como Catharina havia dito, era um perigo iminente. Naquela noite, Carol se entregou, o êxtase e o prazer atingiram níveis tão altos que ela saiu de si. Pela primeira vez os instintos assumiram e ela não pensou. 

Pela primeira vez Carol não se segurou.

Ela tirou os caninos que estavam enterrados na minha carne e, ao fazê-lo, o sangue que saía para sua boca contido pela presença dos seus dentes começou a jorrar numa torrente escarlate.

Ela me disse que reuniu toda sua concentração e fez um esforço descomunal para não avançar sobre mim novamente. Carol não sabia o que fazer, nunca tinha precisado parar depois que começava. Eu ia perdendo a minha cor e vendo aquilo ela começou a se desesperar. Botava a mão nos dois furos escancarados mas seu toque parecia não ser capaz de fechá-los. Pensou em sair e chamar Catharina mas não sabia onde encontrá-la e não queria arriscar me deixar muito tempo sem ajuda. Ela precisava me levar a algum lugar aonde tivesse certeza de que eu teria socorro imediato.

O pânico a fez levar mais tempo do que devia para pensar na solução óbvia: a Candelária. Haveria algum membro da ordem lá com certeza. Carol me confessou, quando voltamos a nos falar, que não atentou para o fato de que sua segurança poderia estar em risco ela só queria ter certeza de que eu estaria bem. O sangue não estancava, ela já tinha feito este tipo de investida um sem-número de vezes, sabia exatamente aonde deveria morder para que a vítima só parasse de sangrar quando não lhe restasse mais nenhum sangue no corpo. E era justamente isso que acontecia comigo.

É verdade que, como no imaginário comum, upyres tem velocidade acima da média que um humano normal teria mas, mesmo assim, ela temeu que não conseguisse chegar às portas guardadas por anjos barrocos da antiga igreja à tempo de evitar o pior. Passava das 3am e poucos taxis eram a única coisa que se via circular esporadicamente pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro mas nenhum deles pareceu notar a vampira ruiva que carregava um corpo nos braços. Carol passou o caminho da Lapa até a Candelária sem ser notada.

Eu só tinha tido uma aula sobre classificação de infernais e ainda faltava muito para chegarmos aos upyres então eu ainda não sabia e nem tinha atentado para o fato de que Carol sempre pedia permissão antes de entrar em residências e casas de outras pessoas. Talvez pelo tempo com o qual ela faz esse tipo de pedido a coisa agora saia camuflada e se confundia com educação mas na verdade, é uma necessidade. Acontece que a classe de demônios da qual Carol faz parte sofre sérios danos internos quando força a entrada em algum ambiente que não teve permissão para entrar. Os órgãos são retorcidos e é aplicada uma pressão sob os ossos tal que, se o upyr insistir e parmanecer muito tempo nestas circunstancias, eles morrem.

Carol sabia, não se importou com isso e invadiu a casa de Deus comigo nos braços.



+++

Padre Pedro me contou que acordou assustado, não era acostumado a ter visitas depois da última missa. Pelo menos não visitas de mortais. O velho homem só se preocupou em botar a antiga batina branca com cruzes bordadas em dourado nas pontas antes de sair, o terço já estava enrolado na sua mão direita.

A idade o fazia andar devagar, mas a urgência do barulho que as portas fizeram quando abriram o fazia correr num tipo de movimento quase manco que beirava o cômico. Foi se apoiando pelo corrimão da grande escada espiral que saía ao lado direito do altar na nave principal do templo.

O sumo-sacerdo é um homem muito sensível, sentiu a aflição e a dor de Carol antes mesmo de vê-la saindo detrás de uma estátua de Rafael, o arcanjo da cura, no meio do pátio iluminado pela luz da lua que vinha pelos vitrais. Carol tinha os cabelos sobre o rosto e vinha com os joelhos dobrados, devagar, como se cada passo lhe causasse um corte ou fosse uma chibatada. Apesar de tudo isso ela ainda me trazia seguro em seus braços. O velho padre me disse que o sentimento era de uma tristeza tão profunda que fez ele se compadecer antes mesmo de saber o motivo

As mãos dela tremiam quando me entregou à ele. Carol não tinha condições de falar muito devido a dor excruciante mas Pedro ouviu dela duas palavras e ele me disse que parecia um pedido disfarçado de ordem:

- Salve. Ele.

Padre Pedro só então notou o quanto eu estava pálido e o quanto de sangue ainda escorria dos pequenos furos circulares que ela tinha feito no meu pescoço. Ele não tinha condições de me carregar até algum outro lugar, então me deitou num dos bancos longos da igreja e começou a pensar em alguma solução. 

De súbito, um baque! Por alguns segundos Pedro esqueceu da figura sofrida que estava se encaminhando para a saída da igreja. Ele soube, mesmo antes de vê-la que não era alguém mortal e seu primeiro palpite foi que fosse um anjo mas, porque um anjo teria tanta pressa para sair de um lugar sagrado?

O baque foi consequência de Carol tombando poucos metros antes de uma das saídas laterais na igreja. O velho padre sabia que havia algo errado, mas se viu com dois corpos muito próximos da morte e nenhuma resposta. Um vento gelado entrava pelas janelas superiores da velha catedral.

No réveillon de 57/58 o jovem Pedro fez o exorcismo do próprio Bune, demônio extremamente poderoso que tentava vir para este plano tomando um político famoso da época como hospedeiro. Nesta ocasião ele precisou pensar rápido o bastante para enganar o infernal. Agora novamente a rapidez de raciocínio do velho padre Pedro foi exigida e ela não lhe faltou. 

Ele encostou a cruz na minha testa e fez uma antiga oração egípcia que me pôs num profundo estado de dormência e fez a hemorragia se conter momentaneamente. Pedro tinha habilidades místicas em outras culturas além da cristã. Feito isso recostou a minha cabeça e foi, o mais rápido que pôde de encontro à bela criatura que ele já estava convencido que não era um anjo. O sumo-sacerdo quebrou uma das primeiras regras da Ordem.

Naquela noite Pedro salvou um demônio.

Eu nunca o agradeci por isso. Na verdade só soube do que ele fez meses depois. Mas ele fez o que eu não pude fazer, Carol ganhou mais alguns meses de vida por causa daquele homem e por isso ele é a única pessoa dentro da Igreja Católica Apostólica Romana que eu ainda respeito.

Padre Pedro me disse que Carol sangrava pelo nariz e pela boca. Viu os caninos dela e quanto tocou na sua pele teve certeza do que ela era. Isso não inibiu o velho homem em seu intento, pelo contrário, ele viu alguém arriscar a própria vida para salvar a minha e viu muito mérito nisso. Demorou, mas conseguiu arrastar Carol até o último degrau da saída lateral. Ele sabia que aquela era a divisão, que era ali onde terminava o “Solo Sagrado”. Carol ficaria a salvo. Mas ele não esperou para ver, fechou todas as portas da igreja com cadeado e selou as entradas com agua-benta.

Pedro tinha um aluno pra salvar.





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