quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ver020



Catharina parou.

Àquela altura eu não a interromperia novamente, apesar de estar intrigado com o desfecho daquilo tudo e, principalmente, preocupado com Carolina. Esperei pacientemente minha amiga colocar os pensamentos em ordem, o que demorou um pouco.

- Pablo, me desculpe por isso. Como disse, não é um assunto fácil para mim - passou novamente as mãos pelos cabelos dourados e continuou -  Paris amanheceu cinza naquele dia. O clima combinava com meu humor naquele dia, eu não saí do quarto. É péssimo não saber lidar com despedidas quando você é imortal, sabia? Bom, era contra as regras ser conivente com o plano de Carlos. Cedo ou tarde eu deveria reportar sua deserção. Nada aconteceria com ele, claro. Mas deveria ser reportado. E seria, mas resolvi dar algum tempo para o meu amigo. Poderia esperar uns dias, dizer que achei que ele estava escondido ou impossibilitado de falar. Sabe, - Catharina suspirou - eu sempre tive fascinação sobre isso que vocês chamam de “amor”. Compaixão, carinho, admiração…isso nós podemos sentir, mas não o amor. O amor é próprios de vocês, mortais, e foi por causa do encanto que tenho por este sentimento que fui conivente naquele dia.
- Você chegou a vê-lo para se despedir?
- Vi, vi sim. Carlos passou o dia na casa de Carolina ajudando-a com as bagagens. A companhia de ballet que ela fazia parte estava num período entre espetáculos então ela também não precisou dar satisfação para ninguém. À noite ele entrou afobado no nosso quarto. Eu estava triste, sabia que não teria mais muitas oportunidades de ver meu amigo. Carlos tentou não deixar o momento mais difícil do que deveria ser, fez uma piada me deixou esta pulseira - mostrou uma pulseira prateada com uma medalha redonda - e se pôs a arrumar suas coisas numa mala pequena. Eu ajudei, perguntei novamente se precisava de alguma ajuda e ele disse que não, mas agradeceu. Carlos estava feliz, não precisava do sorriso em seu rosto para saber disso porque a atmosfera do quarto e da própria catedral se iluminavam com toda essa alegria. Ele não tinha levado para França muita coisa do Brasil, na verdade ele não tinha muitas posses no Brasil também. Tudo que tinha coube numa bolsa média que ele pôs nos ombros sem muita dificuldade. 
- Mas você disse que eles não chegaram à estação de trem. Desistiram de fugir?
- Eu rezei para que desistissem, mas não. Antes que saísse eu perguntei se ele estava certo daquilo. Ele me respondeu com sorriso largo um beijo na testa e saiu ela porta que rangeu como um lamento. Foi a última vez que vi meu amigo com vida.

Fui pego de surpresa por essa informação. Catharina percebeu minha reação e me olhou de um jeito que parecia dizer “eu te avisei”. Não entendi aquele olhar. Voltou à falar:

- Ele saiu escondido de todos os outros padres e freiras da igreja. Ninguém o viu ou mesmo se preocupou em fiscalizar sua saída. Me disse que não pediria um coche, apesar da distancia ser relativamente grande iria percorrê-la à pé para evitar que o seguissem. O dia amanheceu cinza e terminou chuvoso. Poucos minutos após Carlos sair da Notre Dame já se ouvia trovões e meu coração ficou mais apertado ainda. Nós, Favrashi, somos instruídos à não criar um elo afetivo muito forte com nossos protegidos…é difícil ver tantas partidas, sabe? Eu sempre tive dificuldade neste ponto. Acho que sua Favrashi não é das melhores Pablo.
- Eu discordo. - consolei - Já te falei que considero você minha amiga e não se menospreze por isso! Não fosse você, eu ainda estaria naquele sofá sofrendo auto-piedade pela morte do meu pai. Você é uma ótima guia sim, mas já é bem mais que isso pra mim. 
- Obrigada, Pablo. - Catharina estava emocionada.
- E…o que houve com eles? Carol e Carlos?
- Bom - a voz começou como um leve desafino agudo mas ela pigarreou e se acertou - começou a ficar insuportável ficar naquele quarto. Fui até a nave principal da igreja e rezei um pouco. Ao passar pelo salão principal vi que muitos padres ainda jantavam, concluí que seria uma melhor opção ficar ali para me distrair um pouco. 

Houve uma nova pausa. As mãos de Catharina tremiam.

- Por volta das 22h o salão já estava bem mais vazio e silencioso. Quando as grandes portas abriram num movimento inesperado. Louis Dousseau, um dos sacerdos que estava enfrentando a infestação no Quartier Latin entrou com certa urgência, cerca de dez homens vinham com ele. Louis, como  já era veterano veio à frente. Ele carregava um fardo enrolado em tecido preto nos braços. Eu não quis acreditar que aquele fardo tinha forma humana. - ela respirou fundo para continuar - Vi dois homens irem em direção ao sumo-sacerdo e falarem algo em voz baixa. O grupo desceu quase ao mesmo tempo que o velho mestre se levantou de sua cadeira e veio em minha direção. Ele era lento por causa da idade mas parecia querer evitar cada passo que dava. Ele me perguntou aonde estava meu protegido e eu menti, disse que estava reunindo pistas para pegarmos Malta. Ele me disse que Louis e seu grupo tinham achado um corpo na Rue de Compiègne e tinham certeza de que era “o brasileiro”. A notícia me atingiu como um canhão. No início eu não acreditei, dizia para mim mesma: "àquela altura Carlos e Carolina já deveriam estar no trem para Londres e, se o pior tivesse acontecido haveriam dois corpos e não somente um”. Ele perguntou se eu não queria ver o corpo, só para ter certeza. - de novo, as mãos dela foram à cabeça - Eu disse não, pensava que se eu não visse talvez a coisa não fosse real. Ele insistiu e eu fui. Descemos três lances de escada e entramos numa sala fria, mas iluminada por um numero considerável de tochas. Louis e um outro sacerdo aguardavam lá, ambos me cumprimentaram com certo pesar. Louis me perguntou se poderia tirar o pano que cobria o corpo que estava disposto em uma mesa no centro do aposento. Eu demorei a responder, mas disse sim e ele o fez.
- Era ele? Carlos, quero dizer...
- O fogo das tochas iluminou o rosto já pálido que eu não quis reconhecer. O cabelo cacheado e a barba não me deixavam mentir, era Carlos. Eu tentei negar, procurar algum sinal, de pele ou não, que me dissesse que não era ele que estava deitado ali. Tudo que eu encontrei foram hematomas pelo tronco, feridas em forma de circulo em seus pulsos e um corte cirúrgico em sua garganta. Louis me disse que ele foi encontrado no chão, já sem vida. O cadáver apresentava sérios indícios de anemia mas ao mesmo tempo não havia sangue onde foi encontrado. O sumo-sacerdo me perguntou como estava o status da nossa missão com o upyr que viemos exterminar, os anos treinaram os olhos do homem para identificar uma morte por este tipo de demônio. Eu respondi que havíamos encontrado seu esconderijo, mas não o havíamos pego ainda. Ele pôs a mão sobre o meu ombro e me olhou com compaixão antes de sair. É um pouco patético um anjo ser consolado por mortais, eu sei, mas na ocasião eu não estava muito preocupada com isso. Fiquei mais algum tempo ali olhando para Carlos desolada e disse para Louis cuidar do corpo.
- Mas - perguntei ansioso - e Carolina? Eles estavam juntos, não estavam?

Ela sorriu pela primeira vez nessa conversa.

- Haha, claro que você quer saber da Carolina. - no entanto, era um sorriso triste - Naquela mesma noite eu saí pelas ruas de Paris à esmo. Poderia ir aos meus superiores, comunicar a morte do meu protegido e com certeza haveria conseqüências pra isso. Mas acho que o que Ganthen disse outro dia é verdade, eu passei mesmo muito tempo com os mortais. Acho que peguei o gosto de vocês por protelar decisões importantes. Andei por horas, madrugada adentro. A chuva e o frio não me incomodavam. Eu era um turbilhão de pensamentos e, quando dei por mim estava de volta ao topo da escadaria que dava para a Basílica de Sacre Coeur. Sentei nas muretas, as mesmas onde tinha estado um dia antes e só aí eu percebi que não tinha sido um acidente. Carlos não encontrou Malta - ou qualquer outro upyr que o atacara - por acaso. A presença que tínhamos sentido aqui noite passada tinha ouvido seus planos. Quão ingênuos nós fomos! Entenda, Favrashi não podem atacar, ou causar danos à outros, mesmo demônios. Nós somos anjos protetores mas isso não me impediu de correr ao lugar que achávamos ter servido de esconderijo para Lucas Malta. Não estava certa que esperar quando chegasse lá mas o que eu vi foi realmente uma surpresa. 

As próximas paradas de Catharina foram inesperadas.

- O lugar parecia vazio à primeira vista. Escuro e com fedor de morte, exatamente como estava da última vez que estive lá mas ao me concentrar um pouco mais percebi que havia algo…ou alguém no banheiro. O apartamento era apertado e o banheiro era o último cômodo de um pequeno corredor. Medo e raiva começaram a me inundar numa torrente de emoções que me impulsionava passo à passo em direção àquela porta. Conforme me aproximava a certeza de que não estava sozinha naquela casa ficava mais evidente. O que eu faria quando o encontrasse? Meu escudo seria forte o bastante? Eu estava preparada para isso? Minha mão foi à maçaneta enferrujada e a girou, fazendo um barulho desagradável, um grito agudo rasgando aquele silêncio. Não foi Lucas Malta que eu encontrei lá. Sentada dentro da banheira tremendo e fazendo barulhos estranhos estava Carolina LeBion. Ao sentir que eu entrei no banheiro ela levantou, e se pôs em direção a parede, ela estava com medo. Estava nua, tinha sangue seco por todo o corpo, principalmente marcando seus lábios. Os olhos tão vermelhos quanto os cabelos estavam perdidos, gritando a ajuda que a boca não conseguia pedir. Depois do choque, todo o meu sentimento de ódio foi embora. Fiquei compadecida e perguntei o que tinha acontecido. Ela chorou, veio em minha direção e me contou tudo. Em sua versão, ela estava atrasada quando chegou ao ponto de encontro. Tinha demorado demais terminando as malas, mas chegaria à tempo de pegarem o trem, tinha certeza de que Carlos a esperaria. Estava correndo quando chegou à Rue de Compiègne e escorregou no chão molhado por causa da pressa. A cabeça tinha batido com força no chão e ao levantar ela viu sangue. Se assustou vendo todo aquele sangue no chão, pensou ser dela mas logo concluiu que não era. Seguindo o rastro, ela viu que a poça de sangue vinha de um homem que estava deitado de bruços num mar vermelho. Primeiro ela reconheceu as roupas, depois o cabelo. Carolina me contou tudo isso chorando copiosamente.
- Espera, o que ela estava fazendo na casa do Malta?! Essa era a mesmo a casa dele?!

Minha raiva por Malta estava conhecendo novas fronteiras. Catharina não deu atenção às minhas perguntas dessa vez.

- Ela estava um pouco fora de si. Ficava repetindo que “a culpa era dela”, que “estava arrependida”, que "era uma pessoa péssima” e eu tentando montar aquele quebra cabeça de informações pedi que tivesse calma, que ela respirasse e me contasse do que lembrava. Ela me disse que pedia ajuda, clamava por socorro porque acreditava que Carlos ainda estava vivo, apesar da perda absurda de sangue mas pelo avanço da hora não havia muitos passantes na rua e, os que passavam não lhe davam atenção. Até que um homem parou para lhe ajudar. Galante e educado, lhe ajudou a levantar e ofereceu um lenço para suas lágrimas. Ela, num momento frágil confiou tudo que tinha nele, lhe contou que planejava fugir com Carlos mas alguém o havia atacado, que precisava de ajuda e, quando ia falar a terceira frase sentiu os dentes do suposto bom samaritano em sua jugular. Tentou lutar de volta mas, em segundos desmaiou. Ao acordar, ela me disse, não se reconhecia mais. Olhou ao seu redor e viu que também não reconhecia mais o mundo, seus olhos ardiam, seus ouvidos escutavam demais e conseguia captar odores que nunca tinha sentido antes. Mas ela me confessou que o que mais lhe incomodava era a fome, seu estômago parecia se comprimir mais a cada segundo, como se não houvesse nada dentro dele. Foi arrancada deste momento de adaptação pelo seu agressor que, permanecendo educado, lhe explicou que tudo aquilo era normal. Disse para ela que ele, e todos aqueles, de sua raça eram passavam por aquilo e a conduziu até o corpo que jazia no chão. Carolina caiu nos meus braços contando que não conseguiu se controlar, quando viu o sangue, caiu de quatro no chão e sugou todo aquele sangue para tentar aplacar sua fome. O sangue de Carlos foi o primeiro a tocar seus lábios. Neste momento me desvencilhei dela e ela implorou, não por desculpas, mas pela morte. Me disse que não queria ter que viver com aquilo, que era um monstro, sentia nojo de si mesma. Pegou as minhas mãos com uma força que eu não esperava, ajoelhou e pediu-me para tomar sua vida. Tudo que eu sentia por ela agora era desprezo. Puxei minhas mãos e disse que, mesmo que pudesse matá-la não o faria. Queria que ela vivesse com aquilo. - pausou - Anjos não são sempre criaturas elevadas, sabe?

Eu perdi o ar enquanto ouvia isso. Estava acostumado a ter uma visão de Carolina forte e imponente, aquela garota insegura coberta de sangue num banheiro não parecia nada com ela. Tive dó e quis ajudá-la.

- Antes de sair perguntei quem era o homem que a tinha levado até lá, ela me respondeu entre os soluços o que eu já sabia: Lucas Malta. A abandonei sem dar importância aos seus gritos por ajuda. Fui embora, sabia que não poderia lutar com Malta sozinha, precisaria comunicar alguém que realmente pudesse matá-lo. Ninguém na Ordem francesa queria fazê-lo e eu resolvi não me humilhar. Me teleportei de volta para o Brasil e contei o acontecido. Soube que uma outra missão com três sacerdos foi enviada para Paris mas sem sucesso. Malta e a garota haviam sumido novamente. Depois disso ascendi e contei para meus superiores que havia falhado.

Não consigo descrever a tristeza que havia na última frase de Catharina com palavras. Eu ainda estava chocado, não imaginava que Carol tinha sofrido tanto, agora eu a admirava mais ainda por ter passado por tudo aquilo e ainda parecer tão forte. Abracei Catharina e ela me devolveu o abraço calorosamente. Quando terminou de secar as lágrimas eu perguntei algo que ainda não tinha entendido sobre aquilo tudo:

- Tudo bem, não sabia que a Carol tinha passado por uma história assim. Agora eu estou com mais raiva ainda desse filho da puta mas, eu ainda não entendi muito o que essa história toda tem a ver comigo. Porque eu deveria me importar com esse Carlos? Eu sei que ele era seu amigo e tudo mais...
- Você ainda não entendeu, não é? - o sorriso triste novamente.
- Não Catharina, eu ainda não entendi.
- Tem uma coisa que eu não te contei sobre os sacerdos, Pablo. Vocês não são escolhidos, vocês FORAM escolhidos.
- Ok….ainda não entendi. Você pode ser mais clara?
- Um sacerdo não é uma pessoa escolhida por acaso. “Sacerdo" não é um cargo ou uma função que um mortal possa exercer. “Sacerdo” é o nome de um tipo de espírito específico que retorna à este plano em ciclos definidos para defender a humanidade dos infernais e de sua influência. Carlos morreu àquele dia, mas ele voltou para este plano agora.

Seus olhos mel estavam me olhando com o fascínio com o qual um professor admira um aluno que compreendeu uma lição. E eu achava mesmo que tinha entendido mas não estava conseguindo processar toda aquela informação.

- Espera…você tá dizendo que esse Carlos e eu….eu e o Carlos..

- Lembra que eu disse que vocês eram parecidos?

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