segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Ver034



Eu não pude me conter. Avancei sobre Catharina e dei-lhe um abraço tão forte que senti as minhas próprias costelas doerem. Carol estava viva, agora os ferimentos não doíam mais.

- E depois?
- Como assim, depois?
- Depois…depois que ela falou com você sobre não me deixar mais sozinho, o que aconteceu?
- Nada. Ela foi embora, e eu entrei. Não tinha mais nada para acontecer.
- É que eu pensei que...
- Não é como se eu fosse chamá-la para entrar e tomar um chá enquanto esperávamos vocês voltarem.
- Eu sei, mas ela não disse mais nada? - meus pés começavam a voltar ao chão agora - Aonde ela tem ficado ou quando faria uma visita, algo do tipo.
- Pablo, eu vou ser um pouco dura agora, mas é para o seu bem. Ela sabe onde você mora, sabe até onde você estava essa noite. Se ela quisesse mesmo, se ela ao menos se importasse, você não acha que ela já teria aparecido? - ela estava certa, foi algo duro de se ouvir, como eu não tive o que responder, ela continuou - Carolina prejudica e tira sua vida dos eixos há séculos. Depois do último “encontro” de vocês, talvez ela finalmente tenha percebido o quanto é perigosa estando perto de você, e agora quer deixar você seguir a sua vida. Pelo menos esta.

Eu me afastei, não queria continuar aquela conversa. Não queria mesmo ficar perto de Catharina naquele momento. Eu estava confuso, conseguia sentir que havia algo errado. Alguma coisa não batia, não faria sentido Carolina ter ido até a Candelária atrás da minha protetora cobrar um serviço mais presente se ela não se importasse mais comigo. Catharina passou a mão pelos cabelos e me devolveu um daqueles olhares preocupados que eu não suportava. Não voltei para a cadeira que ela sugeria que me sentasse novamente. Fui até a minha valise, que graças à luta agora estava bastante arranhada, quando ela segurou a minha o meu pulso. Catharina não aparentava estar fazendo força, mas eu tentava desvencilhar o braço dos seus dedos com tudo que tinha e eles não cederam.

- O pior de tudo isso é que ela realmente tinha razão. Eu não posso ser mais tão descuidada com você assim. O que teria acontecido se ela não tivesse parado naquele dia? Como eu conseguiria olhar para você morto outra vez por ter sido mais sua amiga que sua protetora? Não, Pablo - a porta do apartamento se fechou delicadamente e eu consegui ouvir seu tranco passando - dessa vez não.
- Você não pode fazer isso. Me deixa ir! - puxei o braço e dessa vez ela soltou.
- Ir aonde? Atrás dela? Você pode fazer a loucura que quiser, Pablo, mas não ferido depois dessa confusão toda.
- Abre a porta, Catharina, agora! Você não está indo contra tudo aquilo que você me disse? Contra o meu direito de escolha, livre-arbítrio e tudo mais?
- Talvez eu esteja. Tive uma ideia, se você está tão incomodado, por que não chamamos Ganthen aqui e contamos o quanto você quer sair por aí nesse estado pra ir encontrar sua vampirinha? Aí a gente vê quem tem razão.
- Ah, você aprendeu a ser irônica agora, é? Para, porque não te cai bem.

Bati a porta do quarto com força e abri a janela. Três andares e uma parede lisa que não tinha nada pra me ajudar a descer, eu não sobreviveria à queda. Percebendo que não tinha nada a ser feito fechei a janela e sentei na cama. Eu nunca tive tanta raiva de Catharina quanto naquela madrugada. Olhei para o chão, ainda com resquícios do giz que eu usei nas marcas daquele ritual improvisado para chamar Carol, e tentei entender algum motivo lógico por ela estar bem e não ter me procurado. Acho que muito da minha raiva, na verdade era medo. Medo de Catharina estar certa e nunca mais ver Carol de novo. Resolvi tentar dormir para afastar este pensamento mas antes me levantei outra vez.

Caso ela aparecesse, a janela deveria estar aberta.


+++

Apesar de estar exausto, não dormi aquela noite. Carol não apareceu. Por volta das 10am, Catharina bateu gentilmente na porta. Ela estava arrumada, Catharina sempre se produz quando está incomodada com algo, acho que é o jeito dela sentir que está dando o melhor de si naquela questão. Se até os anjos podem ser vaidosos, acredito que este é um pecado bem perdoável.

Ela sentou na cama. Eu recolhi as pernas e me sentei também. Depois de um tempo ela quebrou o silêncio dizendo:

- Eu esqueci de limpar o giz no chão.
- Não precisa, aquilo pode ficar.

Precisei de mais dois dias até estar totalmente recuperado e poder me apresentar novamente à ordem. Catharina passou estes dois dias comigo, mas na maioria do tempo em algum cômodo onde eu não estava.

Ao retornar, meu treinamento continuou, mas acredito que este seja um bom ponto para pausar a narrativa. É hora de contar algo importante antes de seguir com a história. Na época eu estava perdido em dúvidas e insegurança. A saudade dela só não era maior que o medo de não ver Carol de novo, mas no fim das contas eu estava certo. Havia sim um motivo para sua ausência que eu só descobri algum tempo depois, quando ela me mostrou um caderno que usava como diário e relatou tudo o que pensava durante os dias que tentou me deixar.

Como tudo que ela deixou aqui, este caderno é extremamente valioso, e não só pela capa de couro levemente rosea, decorada com um mosaico geométrico de padrões elegantes, daqueles que a gente vê princesas carregando em filmes de época. Ele é valioso, porque é em suas páginas que eu encontro as palavras dela e, se eu fechar os olhos, até consigo ouvi-la falando comigo. O que vai ser relatado a seguir faz parte dos relatos que ela escreveu:

Rio de Janeiro, 28/04/2015

Não consigo me lembrar quando foi a última vez que usei este caderno. Folheando algumas páginas de seu início, encontrei alguns escritos que eu fiz onde pontuo a data, mas com o tempo elas vão desaparecendo. Quando se tem séculos de vida, datas parecem não ter importância. São desprezíveis.

‘Desprezível’, eu sempre odiei essa palavra. Entendo que desprezível é algo tão baixo que não é capaz nem mesmo de causar incômodo. Algo que não se registra e não se sente falta. Alguma coisa que, mesmo estando ali, não se nota. Odeio esta palavra e tudo que ela representa, mas era exatamente assim que eu me sentia durante boa parte do último século. Desprezível.

Lucas é sádico, calculista e não confiável. Narcisista, ele transformou a mim, Manoela e Biatriz apenas por vaidade. Se bem que, no meu caso, acho que houve certo teor de vingança também. Muitas vezes eu o odiei, no inicio principalmente. Ele queria manter nós três para ele, é difícil se encontrar depois da transformação. Tudo muito novo, amedrontador. Éramos reféns de seu conhecimento e ele queria manter as coisas assim.

Cortar relações com meus pais foi o mais difícil. Via as cartas da minha mãe acumulando no meu quarto em pilhas e todas as suas preocupações que machucavam mais do que sede que eu sentia. Eu estava em frangalhos naqueles primeiros meses após a transformação. Tudo que eu queria era responder a minha mãe, contar a coisa horrível que havia acontecido comigo. Só que Lucas me alertou para não fazer aquilo, que um único raio de sol seria fatal para mim e que, ainda que encontrasse meus pais à noite, avançaria sobre eles como um animal. Assim como fiz com Carlos.

Lembro da sensação de angústia que senti, alguns dias após ter escrito uma carta para minha mãe simulando um agente funerário que relatava minha morte, ao ver um retrato meu na primeira página do Le Figaro, ilustrando uma matéria paga pela companhia de ballet que eu trabalhava. "Primeira-Bailarina desaparecida há semanas", era o que dizia, e em seguida relatos de algumas de minhas colegas e até da diretora da companhia, que eu achava nunca ter gostado de mim. Lagrimas molharam o jornal quando li que Marie dizendo que eu era a melhor colega de quarto que alguém poderia ter, ou mesmo Juliette, de quem peguei o papel principal no último espetáculo, dizendo que eu era a alma da companhia. Aquelas pessoas eram minhas amigas, foram minha família desde que eu cheguei em Paris, e apesar de à essa altura Manoela já ter sido transformada e estando ao meu lado todas as noites, eu me sentia sozinha.

Na maior parte do tempo eu evitava pensar nele e até tinha algum sucesso, mas as noites eram longas e cedo ou tarde ele voltava aos meus pensamentos. Carlos foi a melhor pessoa que eu conheci, sempre fui relutante em me abrir ou confiar em outras pessoas, mas com ele isso era tão natural que eu não pude evitar. Eu conheci muitos homens, homens que enxergavam o meu corpo, e eu nunca achei isso um problema. Até acho que alguns deles estavam realmente interessamos em mim. Mas Carlos era diferente, apesar de ter flagrado dois ou três olhares discretos quando eu passava, sabia que isso era o que menos importava para ele. Para ele, eu não precisava ter o cabelo mais bonito ou os maiores peitos do mundo, eu só precisava ser eu, Carolina, e isso bastava. Não acho que alguem já tenha sentido ser o bastante para alguem, como eu era para ele. Eu não acredito no amor, mas se ele existir, era bem parecido com o que Carlos sentia por mim. Ele foi me contaminando com esse sentimento de modo que, quando eu vi, já não tinha mais volta.

Eu, Carolina LeBion, moradora do bairro mais boêmio de Paris, apaixonada por um padre. Seria cômico se não fosse a culpa. Eu o convenci a largar a batina sem dificuldades. Sabia que ele aceitaria a ideia de fugirmos juntos no momento que eu a fizesse. Seu único pedido foi algumas semanas para se resolver com a igreja e não sair fugido. Se eu não tivesse me precipitado e comprado as passagens para Londres num trem noturno para dali a dois dias ele ainda estaria vivo.

Eu não tinha mais necessidade de dormir, e mesmo assim esse pensamento me vinha algumas vezes ao deitar. O pior tipo de pesadelo é aquele que temos enquanto estamos acordados. Toda vez que esse pensamento me afligia, somado ao sentimento profundo de solidão e tristeza que toda aquela situação causava, eu pensava em suicídio. Cheguei a tentar algumas vezes. Mas facas não perfuravam minha pele, nem fogo queimava. Nem mesmo um revólver foi capaz de ferir. Eu poderia me jogar ao sol, mas por não confiar em Lucas, não poderia ter certeza do seu efeito fatal. Não queria que restasse nada de mim para sofrer as retaliações por ter exposto o clã. Sim, era disso que eles nos chamava, "o seu clã". Então optei por tentar uma forma de suicídio mais discreta e silenciosa: a inanição.

No ato da minha transformação, eu suguei Carlos até a última gota, por isso a sede demorou algum tempo até se tornar insuportável. Foram semanas até sentir a garganta queimar de novo. Mesmo assim eu resisti, pensar no seu corpo, estirado na chuva e o meu por cima dele fazia eu perder o apetite. Mas as vezes, mesmo sem apetite, seu organismo grita por alimento e, em nós isso toma contornos irracionais.

Seis semanas depois de transformada, eu fiz minha primeira vítima.

Lucas gostava de se manter informado e, como éramos impossibilitados de sair durante o dia, ele fez um acordo com uma funcionaria da edição do Le Figaro, provavelmente seduzindo-a. Todas as noites a campainha de nosso apartamento tocava religiosamente às 22h trazendo edição que sairia apenas no dia seguinte para o resto de Paris. "Um dos muitos privilégios que a nossa classe deveria gozar", segundo Lucas. Por ser reclusa, passava a maior parte do meu tempo no quarto, onde tentava fazer qualquer coisa para não pensar na minha condição. Geralmente o próprio Lucas atendia a porta, e depois de alguns minutos mandava a pobre mulher embora. Nas vezes que ele estava ausente, Manoela fazia este serviço, de forma muito menos cordial, devo dizer.

Neste dia específico houve uma festa em Montmartre. Não consigo lembrar ao certo sobre o que era, mas Montmartre por si só já era uma festa, então não faz diferença. Lucas e Manoela foram, eu não quis ir, a Sacre Coeur era logo ali em cima, não aguentaria mais chegar sequer perto daquelas escadas sem que pensasse em Carlos. Ainda hoje o efeito é o mesmo.

Estando em casa, restou a mim receber a mulher dos jornais. Como sempre, ela bateu à porta pontualmente. Até então, só tinha ouvido sua voz abafada através das paredes. Ao olhar para ela, achei que Lucas nem teria precisado ser um vampiro para seduzir aquela pobre mulher. Gorda, atarracada, de feições grossas, e com um sinal que os irmãos Grimm botariam em suas bruxas, aquela mulher era certeiramente uma das coisas menos atraentes que eu já vira na vida, mas algo nela me atraía. "Joulie Anne", ela se apresentou, e perguntou por Lucas. Parecia nervosa, quando eu disse que ele não estava, mas perguntei se ela não queria se sentar e descansar um pouco da caminhada. Antes que ela pudesse responder, a trouxe para dentro do apartamento com um dos braços, enquanto fechava a porta com o pé. Me surpreendi com a facilidade que eu movi aquela mulher certeiramente quatro vezes mais pesada que eu.

Então percebi, era seu cheiro. Seu cheiro que me atraía daquele jeito. Não como um perfume, era um cheiro mais profundo. Minha garganta começou a queimar e a dor do meu estômago aumentava. Por um breve momento pensei em manda-la sair do apartamento, mas logo em seguida a joguei contra a porta fazendo certo barulho. Eu estava consciente do que estava fazendo, mas não controlava meus atos. Tudo que meu corpo sabia era que precisava do sangue de Joulie Anne. Ela tentou me empurrar de volta com seu corpanzil enquanto gritava por ajuda. Vetei seus lábios com a minha mão esquerda enquanto dei um chute em seu joelho para que seu pescoço ficasse na minha altura. Eu ouvi o osso quebrar e senti a fina camada de pele cedendo aos meus dentes sem resistência. Joulie Anne se debatia, mas minhas mãos eram chumbo, mesmo eu não acreditava na facilidade daquilo tudo. Seu sangue saía da jugular com pressão e eu puxava ainda mais com o vácuo que criara com meus lábios.

Não sei dizer quanto tempo demorei até me dar por satisfeita, mas quando terminei me sentia cruelmente bem. A sede acalmara, meu estômago não incomodava mais e mesmo meus pensamentos pareciam estar mais claros agora. O que não foi exatamente bom, pois eu tinha acabado de assassinar alguem pela primeira vez. Eu, sentada ao seu lado do corpo de Joulie Anne, ainda tentava processar tudo aquilo enquanto sentia o sangue dela ressecando nos meus lábios e pescoço, mas não queria tirá-lo dali. Eu queria seu gosto na minha boca o quanto pudesse deixar.

Lembrei que Lucas, após ter me transformado, disse que meus conceitos iriam se moldar à minha nova vida, que a sede seria mais forte e que eu ia acabar me acostumando à isso. Era isso que eu era agora e eu deveria aceitar. Eu estava aterrorizada naquela noite, era tudo muito diferente! Mesmo sendo noite e estando debaixo de uma chuva covarde, meu olhos viam cores que eu não saberia nomear. Pude ouvir nitidamente, mesmo estando ruas distante, o maquinista do trem fazendo a última chamada do embarque para Londres. O nosso trem.

Os cachos de Carlos encharcados numa poça que misturava agua e seu próprio sangue foram a última coisa que eu registrei antes de avançar para o corpo dele. Eu ouvi a voz de Lucas me incentivando com um prazer quase sexual, sabia que ele estava olhando e sabia que ele estava gostando. Continuei até que não sobrasse nada. As lágrimas vieram quase que automaticamente. “O que está acontecendo comigo?”, lembro de ter perguntado enquanto me afastava do homem que me observava satisfeito. Não precisava de luz para analisar suas feições. Os cabelos pretos e escuros não pareciam ter mudado muito com a agua, tinha sobrancelhas marcantes e olhos sedutores. O nariz era um tanto quanto largo mas combinava com seu sorriso descompromissado. Lucas era atraente, mesmo no estado em que me encontrava consegui notar isso.

Ele se aproximou de mim em silêncio, e eu só percebi que estava recuando quando bati com as costas numa parede da rua. Desviei o olhar por um segundo e ele já estava diante de mim, suas mãos nos meus pulsos manchados de sangue. Ele levantou meus braços até acima da minha cabeça com facilidade e senti sua língua passando pelo lugar ainda sensível onde ele me mordera. Era fria como neve, mas me deixava excitada. Como?! Como eu poderia pensar nesse tipo de coisa depois da cena que acabara de acontecer?

“É bom, não é?”, por um momento eu não soube do que ele estava falando, mas concordei, “O sangue descendo pela garganta. A vida daquela pobre criatura passando para você.”. Durante os anos eu fiz a mesma coisa com muitas as minhas vítimas, mas naquela noite, era eu que estava sendo seduzida. Ele me soltou e me deu as costas. Ao passar por Carlos, chutou-o com um movimento leve, mas que fez o corpo voar alguns metros na rua.

“O que aconteceu?” perguntei entre soluços, “O que eu fiz?”. A resposta de Lucas, foi uma espada: “Eu só lhe dei um pequeno presente. E você foi muito bem, devo dizer. Fez exatamente o que deveria fazer à essa escória mortal. Agora venha comigo, vou te levar para casa."

O apartamento fedia na primeira vez que entrei lá. Meu olfato, agora mais sensível, percebia cheiro de suor, sangue seco e vinho impregnado ao ambiente. Estava sendo guiada por Lucas ainda tentando me acostumar àquelas sensações e me convencer de tudo que havia acontecido aquela noite. Ele mandou que eu tomasse um banho enquanto providenciaria novas roupas para mim e me levou até o banheiro. Me pus de frente ao espelho que ficava à esquerda banheira para ver como eu estava e lembro do choque que tive ao não encontrar nada ali. Depois do susto, as lágrimas voltaram, tirei meu vestido sujo e encharcado - o vestido havia sido escolhido propositalmente por ser o favorito de Carlos - e o atirei do outro lado do banheiro, quando ouvi a porta se abrir outra vez. Primeiro, estranhei o fato de Lucas já estar de volta em tão pouco tempo, mas depois lembrei que não conseguia precisar quanto tempo eu fiquei ali naquele banheiro. Eu não queria que ele me visse daquele jeito, então recuei até a banheira, mas antes de conseguir cerrar a cortina a porta se abriu. Demorei alguns segundos para reconhecer Catharina. Naquele tempo sequer lembrava o nome dela, mas seu rosto é algo que você não esquece de ter visto. Contei a ela, aos soluços, tudo que acontecera e repetir toda aquela noite maldita com palavras deixava tudo ainda mais doloroso. No fim, concluí que não queria mais viver, não queria ser daquele jeito. Pedi, implorei, para que ela me matasse. Catharina revelou para mim quem era realmente e com um certo prazer no olhar decretou que eu deveria viver com aquilo me atormentando. "É o que uma criatura baixa como você merece, demônio."

Ela me deixou ali, coberta em sangue e lágrimas, no chão gelado. Nunca fui religiosa, apesar dos desejos da minha família, mas esse tipo de atitude é muito interessante para quem se proclamava ser "do lado da luz". Durante os anos encontrei Catharina algumas vezes e, apesar de nunca ter dito isso, eu sinto que ela odeia nossos esbarrões tanto quanto eu.

Matar Joulie Anne para me alimentar pesou em mim, mas não tanto quanto Carlos pesava. Demorei alguns dias para que eu sentisse sede outra vez, e quando aconteceu, as palavras de Catharina ecoaram em mim e não hesitei em atacar novamente. A morte seguinte não demorou, nem as outras depois dela. Com o tempo, passei acompanhar Lucas e Manoela pelas noites de Paris, Lucas gostava de ver nós duas em ação, como seduzíamos atraíamos os escolhidos de cada noite. Homens eram alvos mais fáceis e Lucas não parecia se incomodar que eles fossem nossa preferência. Manoela e eu costumávamos levar jovens garotos da universidade ou militares da coroa para casa quase diariamente para o apartamento. Eu percebia o desejo em seus olhos e a excitação nos seus corpos. Também o terror em seus olhos quando finalmente percebiam. Confesso que gosto da sensação de poder, sempre gostei, e passado o primeiro ano de minha transformação eu já não me importava mais em matar. Muitas vezes fazia mais por tédio do que por sede realmente.

Por quase duzentos anos, nunca pensei duas vezes antes de atacar um mortal. Até hoje a noite. Máira me chamou para dar cabo de um desafeto que ela tinha arrumado, como já fizemos em muitas outras noites. Deixei que Máira começasse a se divertir enquanto eu observava, gosto de ver até onde eles aguentam. Confesso que o garoto me era familiar à distância, mas não me ative muito a este fato até Catharina aparecer. Tudo parecia um déjà vu de mal gosto até o garoto cortar a própria mão. Não tive tempo de entender se por sorte ou de propósito, sua mão vermelha oferecida me fez entrar em cena sem pensar muito e foi só quando eu estava sobre ele preparada para atacar que vi.

Carlos. O garoto não era só parecido, mas ele era exatamente igual a Carlos! Os cabelos mais curtos e a barba por fazer, é verdade, mas sem dúvidas era ele. Não demorei a perceber, demorei a acreditar. Fiquei alheia à situação; não ouvia mais Maíra ou Catharina. Eu não sei o que houve essa noite, ele voltou, e eu estava sobre ele enquanto chovia. Do mesmo jeito que tudo acabou quase duzentos anos atras. Já estou acostumada à saudade, mas agora que cheguei em casa ainda com a cabeça girado do que acabei de ver, percebi que também estou sentindo algo que já tinha esquecido o que significava: esperança.

E medo.


sábado, 14 de novembro de 2015

Ver033



Todas as referências que eu tinha de filmes ou histórias fantasiosas sobre possessão não conseguiam dar conta da insanidade que era aquilo. Uma marionete sem fios, era como se alguma mão invisível e maligna estivesse escondida sob o véu da escuridão no teto da casa e estivesse fazendo Júlio dançar.

Começou sem música, os pés batendo com força no chão, fazendo barulhos propositais. A luz do meu terço erguido me permitia ver muito pouco além daquela cena, mas minha visão periférica ainda captava a presença de Victor à minha esquerda. O rosário pendia da sua mão direita que estava levada à boca, os olhos estavam tão vazios quanto os de nosso inimigo, que não os tinha. Em algum lugar no interior da casa abandonada uma vitrola arranhou um disco que começou a tocar uma melodia fúnebre que eu nunca ouvira antes. Era um piano melancólico e cadenciado que ditava os passos e movimentos de Júlio de forma artificial e doentia. Pouco a pouco, a música o levava para perto de nós.

E eu observava a tudo, atônito.

Catharina sempre disse que havia em mim uma esperança cega e injustificada, e que isso era uma qualidade que poderia me matar algum dia. Atitudes como a que eu tive naquele dia me fazem acreditar que ela estava certa. Sem pensar eu corri até Júlio para tentar trazê-lo de volta a razão de algum modo, mesmo sem ter ideia do que faria quando chegasse até ele. Fui impedido por uma parede de energia que pareceu se formar do nada. Era Victor, que neste momento era um vulto escuro mergulhado em uma escuridão ainda mais densa. Poucas vezes na minha carreira eu captei tanto ódio vindo de uma só pessoa. Ele me tirou do caminho sem olhar para mim, conforme andavam em direção ao breu, a luz em sua mão ia aumentando de intensidade. Seu terço ia do amarelo ao laranja, inundando a sala com cores quentes. Às nossas costas, o demônio ainda falava coisas para perturbar a psique de Victor na voz de sua antiga mulher:

- O que foi, Victor? Acha que eu estou blefando? A alma dele é minha. Eu poderia fazer ele quebrar todos os ossos…ou melhor, furar os próprios olhos. Você acha que ele ficaria bem parecido comigo?

Tamanha crueldade me causou arrepios. Temi pelo que poderia acontecer com Júlio e com isso, fiz tudo o que o demônio queria: acreditei nele. Pensei em Carolina e, se algum dia ela teria sido tão vil deste modo com alguém. Quis acreditar que não.

Victor seguiu em silêncio até Júlio, que ainda dançava. O pai pôs as mãos nos ombros do filho que imediatamente cessou seus movimentos não-naturais. Victor emanava uma energia mais agradável, mas igualmente forte. Passou seus mãos pelos olhos de Júlio e fechou suas pálpebras, encostou a mão direita em seu peito e com a outra, o trouxe para perto de si. 

Pude ver, alguns momentos depois, a expressão de Júlio relaxando e seu corpo se livrando dos cordões invisíveis, desfaleceu. Depois de um longo abraço, Victor encostou Júlio em um sofá sem encostos que havia no centro daquela sala. Os abajures voltaram a se acender,  dessa vez com uma luz muito maior do que eu achava que abajures seriam capazes de produzir. Em silêncio pela primeira vez desde que começamos aquilo, o inimigo nos observava.

Agora que o quarto estava iluminado, pude dar mais uma olhada rápida no estado dos outros. Vinícius permanecia desacordado, mas Gabriela me surpreendeu estando desperta. Ela lidar com tudo aquilo de maneira menos surpresa do que eu achei que estivesse. Primeiro achei que ela olhava pra mim, mas quando ela soltou um gemido de exclamação, percebi que olhava por cima do meu ombro, que olhava para o monstro.

Ele arqueara o corpo sobre o encosto da cadeira onde estava preso e forçou tanto a coluna para trás que eu pude ouvir umas vértebras se partindo. Victor disse sem olhar para mim:

- Aí vem o último estágio, o conflito. Prepare-se.

Grande parte dos móveis da sala estava coberta por panos com manchas e cheiro de mofo. Enquanto o possuído trazia seu corpo novamente para a posição normal, percebi que alguns destes móveis se moviam sozinhos em diferentes pontos da sala, parecendo acompanhar seu movimento. Pode parecer estranho, mas ver objetos se movendo sozinhos atraiu mais a minha atenção do que aquele meio-cadáver infeliz que estava à minha frente.

Pareciam fantasmas tremulando seus lençóis velhos, acompanhando o movimento deles, vi que formavam um círculo que mantinha eu, Victor e os outros dentro. No centro estava aquele que os controlava. Todos os móveis cobertos pararam ao mesmo tempo. Eu acreditava que havíamos prendido nosso inimigo firme na cadeira, mas a facilidade com a qual ele se livrou das amarras e se pôs de pé diante de nós me fez perguntar há quanto tempo ele poderia ter se soltado antes disso. Como uma coreografia, os móveis pararam no exato momento em que nosso oponente se punha de pé. Os panos caíram, revelando uma coisa em comum aos móveis-fantasma: eram todos espelhos. As molduras e os tamanhos eram diferentes e parecia haver algo de errado com eles, algo que me incomodava.

- Espelhos, ein? Você está deixando isso mais fácil para mim. - Victor disse após olhar a cena - Pablo, preste atenção, agora você vai ver como se manda um lixo desse de volta para o Inferno.

Ele retomou o ritual. na parte de dentro da casa uma agulha começou a riscar freneticamente o vinil que ainda tocava, o ruído ia crescendo cada vez mais a ponto de já abafar as palavras que Victor dizia, tornando difícil para mim acompanhar com as respostas. O barulho se tornou perturbador sem muita demora e nosso adversário, que estava só a alguns passos de mim, abriu a boca e puxou todo ar que podia com seus pulmões. Foi tão forte que criou uma corrente de ar violenta, me fazendo dar passos involuntários para frente, quase me desequilibrando.

Com os pulmões cheios de ar, a figura era ainda mais grotesca. Era como se o seu tronco fosse muito mais pesado que a parte inferior do corpo poderia sustentar. O monstro subitamente despejou em nós tudo que guardava de uma vez.

Vidraças e vigas de madeira que protegiam as janelas se quebraram com a pressão. Parecia que o monstro tinha uma turbina dentro de si e ela estava ligada na nossa direção. Alguns estilhaços arranharam o braço que eu levantei para proteger o rosto. Victor tinha tido mais sorte e saído ileso do ataque e, ainda tomado de ódio disparou em direção ao demônio.

Não houve embate físico dos dois, mas as duas energias se colidiram com tanta força que era quase possível ver o ponto onde elas estavam em contato. Meu instrutor pressionava, o outro empurrava. Percebi que não precisava mais seguir com o ritual, as palavras já tinham sido todas ditas, agora dependia da vontade do Victor. Ela precisava sobrepujar a energia que envolvia o monstro como um escudo.

- Desista, padre! Você é fraco! Eu vou tomar o corpo do seu filho e matar você com as mãos dele.
- Não. Não, você não vai, Dybbuk. - a menção deste nome fez a energia do adversário diminuir vertiginosamente - Já passou da hora de você sumir deste plano de existência. Me atrasei para acabar com você da última vez, mas dessa vez eu vou te traumatizar tanto que você vai preferir ficar do outro lado e não voltar. Sim. Sim, eu sei seu nome, procurei você por anos. O Dybbuk que havia chegado antes de mim e atacado ela anos atrás. Sabe, você deu azar, monstro. Nem todos nós que usamos batina somos bons, alguns só fazem isso pra ter em quem descontar suas frustrações e olha, meu amigo, eu tenho muitas.

Agora, batendo com a cruz que carregava no peito do inimigo, Victor gritava:

- VADE RETRO SATANAS! VADE RETRO SATANAS!

Uma sombra gasosa e espectral se formou com o que saía de todas as feridas no corpo do velho e se acumulou numa nuvem alguns metros acima dele. A sombra pairou por cima de nós por alguns segundos depois avançou sobre um dos espelhos que formavam o círculo ao nosso redor e o atravessou. De súbito, todos os espelhos se estilhaçaram ao mesmo tempo. Tudo estava acabado.

O primeiro objetivo de um exorcismo é mandar o demônio novamente para as profundezas, os segundo é salvar a vítima enquanto conclui-se o primeiro. Fomos bem sucedidos no primeiro, entretanto falhamos no segundo. O velho senhor não havia resistido, mas pelo estado em que o corpo se encontrava depois de tudo aquilo, acredito que tenha sido melhor assim.

Estávamos exaustos, debrucei sobre meus joelhos para recuperar o fôlego e o sangue que saía do meu braço cortado pintou o rosário branco de vermelho. Victor foi correndo em direção aos outros, abriu sua mala e de lá tirou uma caixa de curativos. Gabriela, a única em condições, o ajudou a cuidar dos outros dois. Vinicius, apesar da perna, tinha apenas ferimentos leves e logo se recuperou do choque, Júlio que havia sofrido o maior trauma.

Nós cremamos o corpo e saímos da velha casa amarela. Eu achei que haveria uma multidão ali nos esperando, mas parecia que nossa luta tinha acontecido somente no universo interior daquele velho casarão. 

- Quem como você descobriu a identidade do demônio possuidor, afinal? - Gabriela perguntou enquanto me ajudava a carregar Júlio ainda desacordado de volta para o carro.
- Usar a voz dela foi um erro, mas mesmo assim não podia ter certeza que era ele. Muitos demônios usam nossos entes queridos contra nós para acabar com a nossa vontade. - ele olhou para Júlio que descansava no banco detrás do carro e suspirou - Acho que é um bom momento para vocês saberem. Eu nunca tive muito apreço pelas regras e condições que a ordem impõe à nós. Durante meu treinamento briguei com Reint inúmeras vezes por ele tentar tolir minhas ações por causa dessas malditas regras. Acredito que teria sido expulso há muito tempo se eu não tivesse sido o que se mostrou ter maior habilidade em exorcismo da minha turma. - ele riu um sorriso irônico - Minha dádiva foi a minha maldição. Eu mantive uma namorada em segredo durante todo o meu treinamento. Nunca tive o interesse real de ficar na ordem, estava interessado no conhecimento e nas habilidades que poderia conseguir lá. Depois disso meu plano era seguir sozinho. Vocês sabem, existem alguns sacerdos renegados por aí, agindo por conta própria, e  ele costumam ser menos hipócritas que o resto de nós...
- E o que aconteceu? - Vinicius, havia despertado enquanto íamos para o carro.
- Ela engravidou. Eu já tinha algum tempo ordenado, era um pouco mais velho que vocês e conhecia bem esse sentimento de invencibilidade que vocês sentem nessa idade. Resolvi que abandonaria a ordem e viveria com ela e nosso filho.
- Qual era o nome dela? – Gabriela perguntou.
- Bárbara. Não tem um só dia que eu não acorde e sinta a falta dela. 

Silêncio.

- Eu não contei a ninguém. Haveria um baile de bodas na família dela naquela noite, combinei que me encontraria com ela para uma dança, nosso filho havia nascido há pouco tempo e eu queria estar dedicado integralmente a eles o quanto antes. No dia de minha partida, Reint descobriu o que eu faria e me prendeu na Candelária.
- Prendeu? - Gabriela disse surpresa - Hoan nunca me obrigou a fazer algo que eu não quisesse.
- Ela nunca tentou. Se tentasse você veria que uma luta com um anjo não pode nem ser chamada de luta. Reint fechou todas as portas da Candelária e ficou tentando me convencer a não abandonar a causa. À despeito dos pedidos de Pedro, ele só permitiu que eu saísse quando outro membro de nossa ordem disse que estava havendo um ataque em uma reunião de família. Era o mesmo lugar da festa de bodas dos pais da Bárbara. Quando chegamos lá, já estava tudo acabado. Toda família dela estava naquela festa. Nosso filho recém-nascido também estaria lá se tivesse mais idade. Tomei a decisão de que o melhor para ele - indicou Júlio com a cabeça - seria crescer num lar que estivesse longe de qualquer envolvimento com essas nossas…questões. Eu o deixei na porta de um orfanato na Gávea naquela mesma noite. Me dediquei a estudar aquele ataque nos mínimos detalhes e torcer para que o infeliz cruzasse meu caminho novamente. Algo que me intrigou era que, apesar do salão estar destruído, todos os espelhos estavam intactos.
- Você disse que ele estava tornando as coisas fáceis para você quando os espelhos começaram a andar sozinhos lá dentro. O que isso tem a ver?
- Bom saber que você estava ouvindo Pablo, talvez da próxima vez além de ouvir, você possa me acompanhar propriamente com o ritual. Como eu disse, usar voz e características de outros é uma habilidade até certo ponto comum entre demônios. Mas só um Dybbuk conseguiria fazer isso e transitar entre os mundos de modo etéreo.
- Eu estava desacordado durante tudo o que aconteceu na casa, o que é um Dybbuk? - Vinicius estava realmente à parte de toda aquela conversa.
- Um dos tipos de demônio mais traiçoeiros que vocês poderiam encontrar. Já foi humano. É uma alma que foi impedida de entrar no céu por ter sido muito impura durante a vida, mas que se recusa a entrar no inferno também. Este tipo de espírito fica numa espécie de plano intermediário paralelo ao nosso, sempre em busca de um corpo para voltar aqui e continuar fazendo suas atrocidades. O Dybbuk precisa de certos portais para sair deste plano paralelo e entrar no nosso. E esses portais são espelhos. O espelho é incapaz de refleti-los porque não tem o que se refletir, eles não deveriam estar nesse mundo. Por esse motivo, qualquer tipo de demônio que já foi humano não pode ser refletido numa superfície espelhada - ele olhou para mim - upyres, por exemplo. 
- Então você associou um possuidor de corpos com monstro que não poderia ser refletido e achou que era um Dybbuk. - Gabriela estava muito curiosa sobre o caso.
- Não um. Mas o mesmo que possuíra Bárbara anos atrás.
- Bom, isso não foi sorte?
- Não acredito em sorte, mas é bom saber se ela existisse, ainda poderia estar do nosso lado. Agora vamos. Precisamos cuidar desses ferimentos.


+++

Voltamos para Candelária pela entrada lateral. Pudemos descer direto para o Grande Salão onde todos ainda esperavam. Catharina estava na sua forma humana, mas eu poderia dizer que ela voou em minha direção quando me viu. Hoan fez o mesmo com Gabriela, que pareceu um pouco desconfortável com tanta efusividade. Victor, que trazia Júlio nos braços, o entregou para Reint sem dizer uma palavra. e desceu para a enfermaria. Padre Pedro checou todos nós um por um antes de nos dispensar e dar os próximos dias de folga.

Parecia ter passado uma eternidade desde que havia estado em casa pela última vez. Estava tudo limpo e organizado. Catharina, que insistira em passar a noite comigo, disse que voltava ao meu apartamento diariamente para manter as coisas em ordem. 

Eu só queria descansar, mas Catharina me fez contar tudo o que tinha acontecido e não escapei dos sermões também. Já que estava acordado, resolvi me abrir com ela e contar algo que não saía da minha cabeça desde o início daquela noite:

- Você acha que ela realmente está morta? Quer dizer, isso explicaria tanto tempo sem notícias.
- Minha função é proteger você, Pablo - disse ela hesitante - e por isso eu não deveria te contar isso...
- Contar o que? - é incrível a quantidade de coisas que a gente consegue pensar no espaço de um segundo.
- Não, ela não está morta. Esse Dybbuk mentiu ao dizer isso.
- Como você sabe?
- Eu queria poder mentir pra você...
- Catharina, me conta por favor.
- No meio da noite, alguém…um pássaro bicou o vitral principal da igreja. Estávamos lá embaixo esperando vocês e torcendo pelo melhor, mas as batidas eram sistemáticas e inconvenientes. Depois de algum tempo passaram a irritar até mesmo Pedro. Fui até a nave principal para ver o que estava acontecendo. Ao abrir a porta principal eu a vi esperando exatamente onde acabava o terreno da igreja.
- Carol? Você viu a Carol?!
- Sim, Pablo - ela disse incomodada - era Carolina. Ela não estava muito contente.
- Por que?
- Bom, tivemos uma conversa nada amigável sobre o fato de eu ter ido você lutar contra um demônio sozinho. E o pior é que eu nem pude dizer muita coisa, porque ela estava certa.

Tentei ficar tempo calado, mas não consegui muito mais que cinco minutos. Enquanto ela fazia um curativo meu supercílio, eu perguntei:

- E…ela falou mais alguma coisa de mim?
- Sim. Ela falou que você era um idiota. Mas um idiota que ela se importava, então era bom que eu fizesse meu trabalho direito.

Ao terminar o curativo e checar meu rosto, Catharina falou:

- Você podia pelo menos disfarçar esse sorriso bobo.

domingo, 4 de outubro de 2015

Ver032

Bob Dylan - The Ballad of a Thin Man from Vasco Cavalcante on Vimeo.




Já não sei precisar há quanto tempo estou escrevendo. Desde que…aquilo aconteceu, eu não tenho tido apetite, por isso a pausa para as refeições é desnecessária. Exceto o cappuccino. A pausa para o cappuccino é quase religiosa e não por sono, já que este também foi embora junto com o apetite. 

Algum tempo atrás, em uma das visitas que me fez, Catharina me disse que eu deveria cortar todas as coisas que me prendem à Carol se eu quisesse seguir em frente. Seguir em frente. Qual é o sentido disso? Por que seguir em frente quando toda a felicidade que eu conheci está atrás. Não. Minhas memórias, ou devo dizer, nossas memórias são a minha melhor companhia. Não preciso de mais nada.
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O sistema digestório dos upyres rejeita qualquer coisa que não seja sangue, por isso desde a sua transformação, Carol não podia mais provar seus vinhos favoritos ou aqueles pratos refinados franceses que eu nunca soube dizer o nome. Ela não se queixava, já estava transformada há muito tempo e parecia acostumada à condição. Menos seu cappuccino, dele ela ainda sentia muita falta. Acho que a única coisa de valor desse apartamento, sem contar a calcinha dela que eu encontrei no armário, é a máquina de cappuccino que ela mesma trouxe. 

Sempre que eu acordava, Carol já de pé, preparava duas xícaras do melhor cappuccino que já provei. Uma para mim, outra para ela. Dizia que queria que eu estivesse disposto durante o dia. À noite, ela repetia o ritual. Duas xícaras e, maliciosa, dizia que queria que eu estivesse disposto durante a noite também. Quando eu perguntava sobre a xícara dela, que sempre ficava intocada, ela respondia:

- É que ninguém deve tomar cappuccino sozinho.

Hoje, meus dias se resumem em escrever estes relatos. Sempre que a saudade e falta dela me acertam como um soco eu faço uma pausa e preparo duas xícaras de cappuccino. Duas, e se você me perguntasse o motivo, eu responderia que ninguém deve tomar cappuccino sozinho.

A lembrança do que o possuído disse naquela noite, dentro da velha casa amarela no Catete, me fez precisar parar. Victor havia me alertado, tinha dito que o demônio iria se valer dos meus pontos mais vulneráveis, que iria olhar e atacar nas rachaduras da minha alma. Eu sabia, mas isso não impediu que o medo se instalasse em mim. Nunca tinha contemplado a ideia da morte de Carol, eu nem mesmo sabia se ela poderia morrer. A revelação do meu envolvimento com ela para Victor parecia sem importância agora que eu começava a me perguntar se era realmente este o motivo que a fez ficar tanto tempo sem dar notícias.

Deixo as xícaras sobre a mesa e sei que o calor da bebida vai marcar a madeira gasta, mas não me importo. Aprendi a valorizar as marcas que ficam. Após alguns goles retorno às teclas da Olivetti. 

Eu não tinha condições de rebater o que fora dito pelo velho sem olhos. Não conseguia falar, piscar ou me mover. Mesmo respirar era uma tarefa difícil. Victor dava instruções que eu não ouvia, o demônio tecia comentários que eu não registrava. Minha mão esquerda cedeu e o crucifixo foi ao chão.

Carol estava morta?

Uma pressão no meu peito me trás de volta. Não interna, mas externa, um impacto. Victor devolvia meu terço com a força de quem devolve um empurrão de bar.

- Nunca mais deixe isso cair. Aquilo não é humano, ele vai fazer de tudo para desmontar você. Vai usar mentiras e verdades, e eu não me importo se você estava comendo uma vampira ou não. Mas preciso que você tenha foco, porra! Não fale com ele, não ouça ele.

Victor pôs as mãos nos meus ombros e me puxou para perto.

- Nós vamos começar agora. Preciso de alguém para ler as respostas ou seguir com o exorcismo se algo acontecer comigo. O ritual tem cinco estágios: presença, presunção, ruptura, conflito e acabamos com a expulsão. O frio, o mal-estar, náusea, dor de cabeça…tudo isso foi o primeiro estágio, a presença dele. Não se deixe abater por ela! Precisamos ser mais fortes.

O demônio olhava para um ponto fixo no teto do casarão e ignorava nossa presença solenemente. Tive vontade de partir para cima dele, exigir que ele me contasse a verdade, que me desse detalhes do paradeiro de Carol. Mas Victor estava certo, ele apenas queria me desestabilizar. Carol estava bem, nada teria acontecido à ela.

Certo?

- Se atenha ao livro, - ele trouxe meu olhar de volta - leia as respostas e faça somente o que eu disser. Ok?
- Ok.
- Muito bem, vamos começar.

Victor caminhou até ele. De um jeito calmo, mas imperativo. Eu me mantinha alguns passos atrás, bíblia aberta nas mãos exatamente na página que começava o ritual. Ele esmagou uma hóstia nas mãos antes de começar. Beijou a cruz bordada nem sua batina sobriamente e começou uma prece tão baixa que tive dificuldades para acompanhar na bíblia. O demônio seguia olhando para o teto. Segui, seu olhar vazio mas nada vi além da escuridão e me perguntei se era isso que nos esperava no fim de tudo.

O inimigo grita de dor e atrai minha atenção. Victor esta com a mão com os farelos de hóstia em sua cabeça, pressionando forte. Entoa uma oração que termina numa ordem. Conforme o tom de a agressividade da voz do meu instrutor aumenta, marcas e sulcos vão se fazendo na pele do corpo que já fora de um homem. Em pouco tempo, sua pele já estava tomada de símbolos que eu não conhecia, mas que de certa forma me eram familiares.

A cena tomou toda minha atenção. Existia um prazer sádico da minha parte em ver o vincos aparecendo na pele do monstro que ousou anunciar, mesmo que fosse mentira, a morte de Carol com tanto desdém. Achei que estávamos ganhando, baixei a guarda, meu pensamento voou para ela. Distraído, não percebi a deixa que Victor deu, onde eu deveria ter respondido de acordo com a escritura.

- Príncipe glorioso da milícia celestial, São Miguel Arcanjo, defendei-nos neste conflito contra as regras deste mundo de trevas contra os espíritos do mal nas alturas.

Eu não prestei atenção, ele repetiu.

- ...defendei-nos neste conflito contra as regras deste mundo de trevas contra os espíritos do mal nas alturas. MERDA, PABLO! VOCÊ PRECISA RESPONDER!

Caí em mim e procurei a resposta que viria à fala dele, mas me perdi nas entrelinhas apertadas da bíblia. Victor já tinha recuado até onde eu estava e tomou o livro das minhas mãos, acertando a página e me indicando a linha com rispidez. Tentei ler mas a pouca luminosidade que entrava pelas frestas das placas de madeira que tinham sido pregadas às janelas esmaeceu de uma vez. Como se o mundo lá fora fosse iluminado por uma lâmpada e alguém, sem aviso, tivesse desligado o interruptor.

Quatro barulhos. Barulhos metálicos, metal se chocando violentamente contra paredes e chão. A única fonte de luz que tínhamos eram nossos terços, o de Victor mais intenso que o meu. Ele me instruiu para ficarmos próximos e fui seguindo-o no meio da escuridão. Ele estava indo em direção ao nosso inimigo, mas eu só percebi isso quando chegamos ao lugar onde sua cadeira estava pregada ao chão e vimos apenas os buracos das placas que a prendiam.

- Merda… ONDE VOCÊ ESTÁ?! EM NOME DE YAWEH ORDENO QUE SE REVELE!

A resposta não foi imediata, mas ele não precisou perguntar uma segunda vez. Após alguns segundos ouvimos uma risada naquela voz gutural outra vez. Ela não vinha de um ponto específico, parecia reverberar por toda a sala. Até que, um a um, os velhos abajures empoeirados foram se acendendo. Alguns, mesmo sem ter uma lâmpada.

A luz era débil, mas servia para termos mais noção do cenário. Meus três colegas ainda permaneciam desacordados no mesmo lugar e as quatro placas de metal reluziam espalhadas. Examinei os quatro cantos do cômodo e, numa das quinas, rodopiando como se estivesse numa caixinha de música infernal, estava a figura amarrada em sua cadeira. Victor o viu ao mesmo tempo que eu, suspirou e disse:

- O segundo estágio: a presunção. Ele vai drenar nossa confiança. Pela última vez, Pablo, fique atento ao ritual, e limpe esse medo da sua cara. Ele vai farejar isso.

A última instrução me foi dada com ele já virando as costas e caminhando em direção ao perigo. Olhei para o meu rosário que àquela luz parecia quase apagado. Eu precisava me agarrar ao que eu tinha de mais forte, e isso era o sentimento que eu tinha por Carol. O problema é que cada vez que eu focava numa recordação dela, a faca gelada do medo espetava meu coração. Eu afastava o pensamento dela e apagava qualquer luz que poderia ter só para tornar menos real a possibilidade de sua morte. Eu me sufocava, cada vez mais naquela escuridão, mas não podia superar a presença da sua ausência nos meus pensamentos.

O demônio seguia nos atormentando. Victor parecia ter notado minha apatia e decidido dar cabo do ritual sozinho. Bradava palavras desconhecida e grandes comandos de ordem para o corpo que rodopiava como uma criança em sua cadeira levitada. Não aprecia estar adiantando até o momento em que, sem aviso, Victor põe as mãos sobre os braços do inimigo, presos à cadeira e com força atrás a cadeira de volta ao chão.

O barulho ecoa por toda a sala.

- Em nome do Criador eu comando: dá-me teu nome! Dá-me teu nome! Dá-me teu nome!

O rosário dele havia se vertido em pura luz. Luz que agora era pressionada contra a testa calva e lacerada do velho sem piedade. Era possível ver uma fumaça escura emanar do monstro e sua boca se escancarou num lamento de dor lancinante, depois, sua cabeça tombou. Quando recuou o terço, era possível ver a marca em forma de cruz queimada em sua testa como uma tatuagem malfeita. Pela segunda vez na noite, achei que tivéssemos vencido.

Victor não. Ele mantinha o rosário iluminado e em posição de ataque. Eu estava prestes a perguntar o motivo quando uma risada me respondeu. Não era agressiva, sequer era exaltada. Um sorriso delicado, feminino e sincero. 

- Mariana Lopes - ela respondeu em voz baixa.

Victor fraquejou. O braço agora pendia ao lado do corpo e seus lábios tremiam.

- Não achei que você esqueceria do meu nome tão rápido, meu bem. Mas faz sentido, é o que se pode esperar de um homem que abandonou sua mulher e seu filho recém-nascido à própria sorte.
- Pare com isso!
- Eu esperei você. Eu esperei você naquele salão a noite inteira. Me diz, qual é a sensação? Como é saber que eu morri por sua culpa?

Aquilo foi inesperado. Uma voz doce saindo daquele corpo era algo bastante perturbador mas o que realmente me surpreendeu foi a reação de Victor. Os nervos dele estavam prestes a explodir. Ele tremia compulsivamente, tateava por algum apoio, mas não havia nenhum perto. Voltou a apontar o terço na direção do demônio, mas ele já não era tão brilhante. O suor, cobria-lhe a face.

Nunca imaginei que algo poderia perturbá-lo deste modo, quem era aquela mulher? Victor estava fazendo o que me alertou para não fazer: dando corda ao demônio. Tentei chamar por ele, trazê-lo de volta à razão, mas ele não me respondia. O monstro sabia que estava ganhando terreno, e continuou:

- Silêncio. Essa foi a minha resposta durante todos esses anos. Eu esperei, mesmo depois de morta eu esperei pela dança que você me prometeu. Agora vai ser impossível comigo, mas acho que nosso filho estaria ansioso para honrar esse compromisso, Victor. Mas acho que é melhor você se apressar. - um sorriso maléfico tomou as feições do velho agora - PORQUE EM BREVE EU VOU TOMÁ-LO PARA MIM TAMBÉM HAHAHAHA

A luz de Victor se apagou totalmente. De repente, meu crucifixo que brilhava de forma tão precária, era a única fonte de luz do cômodo. Pouco a pouco um som tímido ia quebrando o silêncio. Primeiro achei que fossem passos, depois percebi que havia um ritmo entre eles. No escuro era difícil precisar de onde vinha o som mas eu fui caminhando até ele com cautela. 

- Meu Deus… - Victor disse levando a mão à boca quando iluminei a cena. 

Júlio havia se levantado. e ele estava dançando.