sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Ver014



A sensação de desmaio convencional (sei porque já passei pela experiência algumas vezes) é como um apagar de luzes. Subtamente seu corpo desliga e toda e qualquer faculdade do seu cérebro é suspensa. Um mar negro te envolve e tudo que você é capaz de fazer é esperar o momento de acordar. Meu desmaio aquele dia se assimilou mais a uma alucinação. As unhas do berne abriram sulcos profundos em meu peito e o contato direto delas com meu sangue fazia exponenciar o efeito substância que aquelas garras infernais tinham e mesmo o meu desmaio não era tranquilo. Até hoje tenho duas das três cicatrizes.

Mesmo fora de mim eu ainda tinha alguma consciência e o que essa consciência me mostrava era ela. A visão de Carol dessa vez era mais forte, eu estava totalmente imerso nela. Num cenário escarlate ela vinha em minha direção, cabelos, olhos, lábios e vestido também vermelhos. Os detalhes no quarto eram todos desbotados e em preto e branco. Eu não me mexia, não sei se estava preso ou paralisado, mas nao conseguia me mover porque, se pudesse, me jogaria em cima dela ali mesmo. Carolina sempre soube usar vermelho, as outras cores também, mas com vermelho ela acendia, e me acendia também.

Carol veio devagar, eu sentia meu corpo tendo espasmos mas meus olhos eram dela. Ao chegar bem perto de mim ela parou e pôs a mão esquerda na minha testa. Seu toque parecia leve, mas a mão acima dos meus olhos pressionava forte, como se quisesse entrar ali. Ironicamente, era ela quem povoada cada fragmento de pensamento que eu tinha há dias. Na época me parecia insensato, mesmo inacreditável, que ela tivesse tanta influência assim sobre mim. Só havíamos nos visto duas vezes e eu ainda não sabia de tudo.

Enquanto ela me prendia dentro daqueles olhos de âmbar as mãos desceram da minha fronte para o meu peito desnudo, onde estavam os machucados. Eu tive medo, vi como ela me olhou no nosso encontro na pedra do Arpoador. Carolina desconhecia controle ou razão quando via sangue. Enquanto ela passava as maos nos arranhões meu corpo voltou a ter espasmos, dessa vez mais fortes. Por algum motivo meu sangue não chamou a atenção dela dessa vez, ao contrário ela deu pouca atenção para ele e apenas seguiu cada um dos três cortes que eu tinha de ponta a ponta com os dedos. Em seguida, Carol tomou meu rosto com as mãos gentilmente. Sentia todos os seus dez dedos frios, inclusive os polegares no meu queixo. Veio aproximando o rosto do meu, meu corpo agora tremia muito, mas a minha visão era fixa. Os lábios, aqueles lábios vermelhos e carnudos parecendo ter sido desenhados na sua pele muito branca cada vez mais próximos.

Carolina me beijou.

O beijo foi intenso, e eu não esperava menos que isso. Os lábios dela cobriam os meus e sua língua envolvia e era envolvida pela minha num movimento caótico e ordenado ao mesmo tempo. Fomos crescendo. O quarto parecia esmaecer e o vermelho intenso escurecia e desbotava. Eu agora ouvia sons, não tinha percebido que tudo tinha estado mudo até aquele momento. O que eu ouvia não era alto, parecia um sussurro. O beijo continuava, queria usar minhas mãos para passear pelo corpo dela, mas elas não respondiam.

O ambiente atras dela escureceu totalmente, éramos eu, ela e a escuridão nos envolvendo. Carolina ainda era visível e parecia querer me sugar para dentro dela, o beijo havia mudado e agora sua boca puxava meus lábios. Cada vez mais forte, as vozes aumentavam também. Agora eu distinguia palavras, mas não conseguia entendê-las.

Carol me sugou, como se quisesse tirar minha essência e depois sumiu. Ouvi em alto e bom som uma voz que não poderia ser de Carolina dizer:

- Domini est salus, Domini est salus, Christus est salus, Salus tua, Domine, sit semper nobiscum! 

Me ergui assustado e abri os olhos e só então percebi que havia passado todo esse tempo deitado e de olhos fechados. O suor molhava meus cabelos e minha calça, estava sem camisa.

Olhei e não reconheci o ambiente. Cade a Carol? Onde eu estava?

- Bem-vindo, garoto. Achei que voce não fosse deixar eu terminar. - disse um senhor que aparentava ter 70 anos, falou com uma voz surpreendentemente firme e grave que não condizia com seu aspecto frágil. Ele era negro, suas vestes também. Usava uma batina clássica e tinha uma cruz de madeira pendurada.

- A Couraça de São Patrício é uma oração bastante poderosa. - ele olhava pra mim com olhos cansados, mas o resto da sua expressão ignorava as rugas e teimava em ser jovial - Mas só consegui te trazer de volta no final, voce estava se apegando forte ao sonho.
- Sonho? Desculpe senhor…vamos com calma, eu ainda estou um pouco lento. Quem é voce?
- Este é o padre Pedro Alvarez, Pablo. Voce devia ter mais respeito. - disse uma voz conhecida atras de mim. Olhei para trás e encontrei Catharina que me olhava com uma estranha hostilidade.
- Deixe disso, Catharina. O garoto acabou de ser purificado, é de espantar que ele não esteja explodindo de dor de cabeça.
- Purificado, como assim? Catharina…onde nós estamos?

A câmara tinha forma de um trapézio, e a cama onde eu estava sentado ficava no centro do cômodo  levemente deslocada em direção à base menor. As paredes eram todas revestidas de pedra mas elas quase não éram vistas porque um papel de parede feito de prateleiras de livros as cobria. No primeiro momento pensei estar numa biblioteca mas ao inclinar na minha cama vi uma pequena mesa redonda aonde tinha uma placa de metal e nela estava grafado numa tipografia antiga:

APOSENTOS DO SUMO SACERDO

Parecia que aquele senhor era realmente importante. A base da cama onde eu estava deitado era paralela a base maior do trapézio que era o quarto e diretamente à minha frete havia uma porta bastante ornamentada que estava fechada não me permitindo olhar além disso.

- Nós estamos no meu humilde quarto, Pablo. - disse o padre - Deixe que eu te explique o que aconteceu durante o seu...sono. Com certeza é louvável você ter lutado com um berne sem qualquer treinamento sozinho e ainda estar aqui falando comigo. Lembro de uma vez, quando eu estava recém-ordenado, que encontrei dois bernes sob a estação de trem de Bonsucesso. Tive sorte. Naquele dia eu tive ferimentos semelhantes aos seus, - levantou a manga e me mostrou o antebraço direito com quatro cicatrizes escuras que iam do pulso quase ao cotovelo - meu frasco de água benta estava cheio ainda por isso pude limpar os ferimentos antes dos delírios começarem. 
- Delírios?
- O berne se satisfaz com sua dor e sofrimento. - agora Catharina falava sua voz ainda tinha o tom severo - Quando ele causa ferimentos físicos com as unhas ou os dentes passa para quem foi ferido uma substância que causa uma dor que chega ao ponto do delírio, neste ponto a vítima passa sonhar com o que ela tiver de mais precioso. A vítima fica presa num delírio que não quer acordar enquanto o demônio pode se satisfazer do seu corpo que definha por dias.
- Você continua impecável, Catharina. - disse o padre.
- Vocês já se conheciam? 
- Eu estou no ramo há muitos anos, filho. É difícil achar um Favrashi que ainda não tenha cruzado comigo. Mais difícil é encontrar um melhor que Catharina, você tem sorte de ela ser seu anjo da guarda. 

Olhei para Catharina que por um momento enrubesceu, mas logo tomou a expressão seria que não cominava com ela novamente. Olhei de novo para o senhor sentado ao meu lado. Ele era aquele tipo de pessoa que você confia sem perceber, era fácil acreditar no que ele falava. Padre Pedro teria feito grande carreira política se quisesse.

- Mas... - tentei levantar mas desisti e voltei a me sentar na cama - a ultima cosia que eu me lembro foi de estarmos na Candelaria.
- Sim, vocês chegaram e eu abri as portas.
- Tudo bem, mas onde estamos agora? 
- Você ainda está na Candelária, meu filho. Só que alguns metros abaixo da nave principal.
- Estamos...no subsolo?
- Digamos que era preciso achar um lugar discreto para fazer o que fazemos aqui. Mas você acostuma, logo não vai mais nem perceber. Quer ajuda com isso de se levantar?

Ele me ajudou, Catharina também. Minhas pernas ainda estavam fracas e demoraram um pouco a se acostumarem com meu peso. Apoiava nas pesas e prateleiras até começar a dar os primeiros passos. Sem querer acabei derrubando um livro da estante do padre. O livro caiu aberto e Pedro correu a fecha-lo, ele foi rápido mas eu consegui ler o título:

- "O Rei de Amarelo". Que livro é esse?
- Certos livros não são para ser lidos, garoto. Que tal eu te apresentar aos outros? Tenho certeza de que estão ansiosos para conhecer o garoto que se atrasou porque estava mandando um berne para o inferno. - ele brincou.
- Todos já chegaram? - perguntou Catharina.

Os olhos cansados do Padre Pedro ficaram tristes. 

- Todos menos uma. Ouve um outro ataque além do de vocês, parece que eles estão realmente  empenhados em acabar com essa geração. Não foi um berne, pelo que eu soube um pratur atacou uma de nossos sacerdos. Bruna não vai chegar. 

O momentânea silêncio que se deu depois disso foi breve e quebrado pelo próprio padre. Ele me olhou e disse que talvez fosse melhor eu botar uma camisa camisa. Procuramos, mas não havia nenhuma no aposento e a minha já estava reduzida a trapos. Padre Pedro achou alguma coisa em seu armário.

- Ah, acho que isso aqui deve caber em você. Que tal? Pronto, ficou ótimo! Agora vamos!

Ele abriu a porta e eu fui em direção ao salão principal da ordem usando uma batina. 

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