quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Ver013



Meu peito doía. O corpo todo estava dolorido, é verdade, mas uma dor mais intensa emanava dos três sulcos que as garras do infernal traçaram do meu ombro direito ao centro do meu peito. Deixei o corpo do berne no chão e fui ao socorro de Catharina. Ela não sangrava, mas confesso que, nos segundos arrastados que ela demorou a acordar, eu quase esqueci de que anjos não podem morrer.

Ela abriu os olhos quando tinha sua cabeça no meu colo. Eles olharam para mim e logo perderam a sonolência normal de quem acabou de acordar e me olharam cheios de preocupação.

- Pablo, você está bem?! Onde está ele? 

Sorri aliviado e abracei minha amiga. Realmente me sentia mais calmo quando estava com Catharina. 

Estava explicando para ela como havia se dado a luta com o demônio e ela reagiu com aquela mania de se culpar por ter desacordado e me deixado sozinho com ele. Quando eu abri a boca para convencê-la de que não devia se desculpar por isso ouvimos um barulho, um som horrível vindo do corpo que eu havia esquecido do outro lado do casarão.

Nossos olhares foram para ele ao mesmo tempo. Permanecia imóvel. Catharina levantou antes de mim e percebi que ela estava renovada, não havia mais ferimentos em seu corpo ou mesmo sujeira em sua roupa. Outro ruído veio da garganta do berne. Levantei também e percebi que a dor no meu peito aumentava a cada passo. Nos aproximamos com cautela do que eu acreditava estar morto, mas agora já não tinha certeza. Um terceiro e mais alto pigarro veio da pútrida boca que eu observava, mas desta vez era diferente, parecia que o demônio tinha se engasgado. De súbito um líquido ocre saiu de sua boca e se espalhou pelo seu corpo.

Sempre imaginei que, ao morrer, os seres do plano inferior simplesmente desaparecessem, virassem pó ou mesmo definhassem até os ossos, mas não foi o caso. Catharina, que acho, também nunca tinha visto um berne morrer, soltou uma sutil interjeição de surpresa quando o líquido regurgitado pelo monstro passou a, como um ácido, corroê-lo. 

No tempo de três piscadas nos vimos sozinhas naquele casarão abandonado na Rua da Glória. Catharina com os olhos no ferimento que cortava meu peito, me perguntou com urgência sobre a água benta:

- Pablo, você gastou tudo ao exorcizar o berne? - havia tensão na sua voz.
- Como eu te disse, - percebi agora que eu estava ofegante e falar me custava um grande esforço - ele me surpreendeu antes mesmo de eu poder usá-la. O frasco está vazio.
- Esses arranhões, que abrem do seu ombro até o peito, ele fez com as garras?
- Uhn, - hesitei - sim. Como você sabe?
- Pablo, precisamos correr. - agora a preocupação dela estava evidente - Bernes se alimentam de dor e agonia, por isso têm poderes de infligir essas sensações psiquicamente nos outros, assim como este aqui fez com você no metrô. Mas, os ferimentos físicos que este tipo de demônio causa, particularmente com as garras, é ainda mais perigoso. Precisamos tratar desse seu ferimento, rápido.
- Senão? 
- Senão, - ela olhou para mim com piedade - minha missão com você vai ter acabado cedo demais.

Pode ter sido placebo, mas imediatamente depois desta conversa senti a temperatura do meu peito aumentar, e a dor passava a irradiar agora para meus braços e cintura. Respirar estava começando a ficar mais complicado e o ar parecia não ser o bastante. Minhas pernas perdiam a sensibilidade e, mesmo andar era uma tarefa que pedia dedicação.

- Precisamos chegar ao templo o quanto antes e lavar seus machucados com água benta. Isso não vai fecha-los mas, ao menos, vai esterilizar a ferida. 

Ela estava agitada. Eu entendia o que ela falava mas a voz parecia abafada em algumas palavras. Catharina foi até a extremidade superior direita do cômodo onde estávamos e juntou os meus equipamentos que estavam espalhados próximos à maleta marrom. Tentei acompanha-lá mas, ao dar dois passos senti uma fisgada seca na minha perna de apoio e tombei. 

De repente, Carolina. O toque em minha nuca. Sua bochecha esquerda colada à minha direita, sentindo meu calor reagir ao frio dela. Eu me enterrava e me perdia no vermelho pulsante dos  seus cabelos enquanto ela chamava meu nome.

- Pablo! 

Despertei e percebi, com um pouco de decepção, que as mãos que me envolviam e os cabelos que dançavam na frente dos meus olhos eram de Catharina. Agora, meu corpo todo doía.

- Você desacordou por alguns minutos depois que caiu. A luta exigiu muito de você e os efeitos do ferimento estão ficando mais graves, precisamos correr! Vamos!

Catharina era maior que eu. Ao levantar ela envolveu meu braço esquerdo em seus ombros afim de ser minha muleta, este simples movimento teria me feito gritar se eu conseguisse, sentia meu braço ardendo. Finalmente saímos daquela casa amaldiçoada. Caminhamos pela Rua da Glória, Catharina tentando respeitar meu ritmo lento mas a preocupação fazia ela quase correr sem perceber. Pelo meu estado com certeza atraímos alguns olhares na rua, mas eu não percebi. 

Ao sairmos da Glória e chegarmos ao bairro onde anos depois ficaria minha residência, a Lapa, fui atingindo mais uma vez por um lapso de perda de sentidos. Como já comentei, sempre fui suscetível a sentir presenças e energias que a maioria dos mortais não sente e a Lapa é o lugar mais carregado que eu já estive. Toda essa carga me atingiu como um soco e novamente me desacordou.

Novamente, também, eu vi Carol. Seus olhos e seus lábios sorriam para mim. O olhar de Carol conseguia dizer coisas mesmo quando sua boca não falava. Desta vez ela estava me dizendo para ficar de pé e continuar. Eu o fiz.

Peço desculpas pela imprecisão com a qual conto esta parte da história mas, por motivos óbvios, sou incapaz de dar mais detalhes destes lapsos.

Quando abri os olhos vi que Catharina, não sei se me arrastando ou carregando, havia prosseguido bons quilômetros durante o meu tempo inconsciente. Estávamos já na Rua Uruguaiana, os carros para mim eram borrões de cores e sons. Minha cabeça flutuava entre a sanidade e alucinações.

Já não mais comandava minhas pernas, Catharina me guiava e eu apenas seguia. Tive um vislumbre da grande catedral ao fundo da Presidente Vargas e, ao cerrar os olhos para ter certeza do que via uma pontada direto no meu coração. Tropecei.

- Força, força Pablo! Estamos quase lá. - faltava pouco para ela chorar - Você não vai…eu não posso deixar você desistir agora. Vamos. Vamos, de pé.

Minha garganta estava trancada, minhas articulações pareciam descolar a cada movimento. Mas a Candelária estava logo ali, e mais uma vez a imagem de Carol me estendendo a mão foi a minha força para levantar. Desta vez até consegui sentir seu perfume. 

As enormes portas de madeira da igreja estavam trancadas quando chegamos. Catharina foi tomada por um visível desespero enquanto batia repetidamente nas imagens barrocas que estavam grafadas em alto-relevo nas portas.

Desabei aos degraus da enorme igreja. Depois que Catharina desistiu de bater houve alguns segundos sem resposta onde a esperança morreu. Mas senti, às minhas costas, as pesadas portas da Candelária abrindo.

- Vocês estão atrasados.

Desmaiei.

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