quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ver015



A igreja da Candelária tem uma história. No início do século XVII um casal de espanhóis estava vindo para o Brasil com o sonho de fazer a vida. A embarcação onde estavam foi atingida por uma impiedosa tempestade e todos os tripulantes da nau temeram por suas vidas. O casal então, devoto de Nossa Senhora, prometeu que caso passassem ilesos, construiriam no Novo Mundo uma catedral em seu nome. Depois de cinco dias de tempestade, a embarcação aportou no cais do Rio de Janeiro e em seu casco bastante avariado ainda podia-se ler o nome com o qual fora batizada: Candelária.

Alguns anos depois os espanhóis cumprem sua promessa e levantam, no coração do Centro da cidade, uma de suas igrejas mais bonitas e emblemáticas. Com seu estilo neoclássico, igreja é maioritariamente branca com duas grandes torres nas extremidades e tem muitas janelas em cada uma de suas câmaras superiores. Se houvesse um modo de ver a Candelária de cima se perceberia que ela tem o formato de uma cruz.

Essa é a parte pública da construção da igreja. Mas existe também uma parte que fica restrita ao sacerdócio. A mulher do casal, quando se aproximava a inauguração, começou a passar mal em seus sonhos. Seu marido dedicado acordava rigorosamente todas as noites com seus gritos e tentava acalmá-la para que voltasse a dormir, mas cada vez a missão parecia mais difícil. As noites iam as tornando mais longas e os dias mais curtos para ela, que após alguns meses neste estado, definhava visivelmente. A enfermidade não permitiu que ela comparecesse à inauguração.

Apesar de religioso, o casal buscou ajuda primeiro na medicina mas a resposta era simplesmente a mesma, a mulher estava bem fisiologicamente. Claro que a medicina era bastante limitada naquela época, mas mesmo hoje a resposta não teria sido outra. 

Um domingo, após a missa que freqüentava semanalmente, o marido espanhol se abriu com o padre que a essa altura já gozava de sua confiança. O padre em questão se chamava Felipe, foi o primeiro padre da Candelária e idealizador da ordem que eu participei por tantos anos.

Segundo registros, padre Felipe ainda era relativamente novo, mas havia estudado por um bom tempo em Roma, onde acabou por ter muito contato com escrituras seculares e restritas. Lá tomou gosto pelo estudo de proteção contra demônios. Ao examinar a mulher,  suspeitou que ela não sofria de doença alguma, mas estava sob ação de uma criatura que conhecemos como íncubo. Íncubos não têm o poder de encarnar na vítima como outros demônios, portanto um exorcismo seria inútil neste caso. Felipe sabia que o íncubo é um espírito que seduz as mulheres durante o sono e toda noite se alimenta deles até que a vítima não sonhe mais, então esperou até que ela adormecesse e então começou um ritual que prendeu o espírito num frasco marcado com o selo de Salomão.

Após este evento a senhora ficou bem e o padre conversou com o casal, propondo uma reforma secreta na Candelária, seria construída uma base subterrânea aonde ele se dedicaria a estudar e resolver casos como o ocorrido. Assim nascia a Ordem dos Sacerdos do Rio de Janeiro e o salão por onde agora eu passava, também todo decorado em pedra, havia sido o primeiro a ser construído sob a catedral.

"Grande Salão" era como chamávamos, passei por quinze pares de bancos até chegar ao altar ao fundo. Não havia quadros ou janelas, mas o ambiente era climatizado e limpo dando uma impressão rústica e moderna ao mesmo tempo. Ali, de frente para o altar me esperavam quatro pessoas. Catharina e padre Pedro seguiam ao meu lado.

- Muito bem, estamos todos juntos finalmente, - disse o padre Pedro - Victor, este era o garoto que teve...um leve acidente de percurso, se incomodaria em repetir para ele?

Um homem magro e alto, de olhar severo e cabelos em forma de cuia me olhou com reprovação e depois disse para o senhor:

- Claro, padre. Sem problemas.
- Muito bem, acho melhor então eu reportar o que houve mais cedo. Pablo agora está em boas mãos. - Catharina disse isso para Pedro e foi se retirando.
- Espera, você vai embora?
- Não faz diferença, faz? Consegui te trazer aqui a salvo apesar dos seus esforços suicidas. Agora você deve se dedicar ao treinamento.
- Porque você está agindo assim, Catharina? Quer dizer, desde que eu acordei você mal falou comigo.
- Pablo, eu preciso ir. - se virou para o velho padre - Pedro, até breve.

E saiu.
Aquilo me incomodou e deixou um clima pesado no Grande Salão. O único som que se ouvia eram os passos de Catharina que, ao chegar à porta hesitou e olhou para trás rapidamente antes de fechá-la às suas costas. Senti a mão de padre Pedro no meu ombro:

- É o dever dela, rapaz. Não se preocupe com isso, vocês vão se ver novamente. Agora por favor, ouça o que Victor tem a dizer.

Victor começou a fala com a impaciência de quem já contou a mesma história algumas vezes, as outras três pessoas eram dois garotos e uma garota e já tinham ouvido o que ele tinha a dizer, por isso ele falava para mim.

- Você foi trazido a este salão porque o plano superior acreditou que você pode auxiliar no controle dos ataques de demônios aqui no plano mortal. Sacerdos são recrutados por seres celestiais, sua recrutadora acaba de sair, e com a saída dela o Vaticano se propõe a investir na sua carreira de sacerdócio se comprometendo a cobrir todos os seus gastos financeiros enquanto você servir a esta ordem. É de suma importância dizer que, uma vez que as criaturas saibam que você está atrás delas, irão atrás de você também. O perigo será iminente e constante. Servir, entretanto, é uma grande honra. Você aceita a responsabilidade de levar a luz consigo e dedicar a vida a combater todo e qualquer espírito das trevas?

Não é nada que eu já não tivesse ouvido mas falado assim, daquele modo formal e empostado, parecia ter o peso de duas toneladas. Meu sentimento de vingança parecia pequeno perto deste discurso mas confesso que foi apenas por ele que eu decidi fazer o que fiz.

- Sim.
- Então, Pablo Pazos, eu autorizo você a participar do treinamento da Ordem dos Sacerdos do Rio de Janeiro. De agora em diante todos os demônios são seus inimigos e qualquer negligência para com eles não será tolerada. - obviamente meu primeiro pensamento foi para Carolina e eu quase ri, mas apenas concordei com a cabeça - Acho que estão todos prontos para começar, Paulo.
- Primeiro vamos às apresentações, - olhando para mim, seguiu - Pablo, estes são Júlio, Gabriela e…perdão eu esqueci seu nome filho.
- Vinicius, Vinicius Ferreira senhor. - disse o terceiro garoto com corte militar e grandes olheiras. 
- Isso, desculpe, é a idade. Estes, Pablo, são seus companheiros de treinamento. Pessoal, - agora para os outros - este é Pablo.

Minha primeira impressão dos três não foi muito boa, devo dizer. A menina, Gabriela, me parecia um pouco fora de órbita e deslumbrada com tudo que estava vendo. Vinicius, soava como o tipo de pessoa que precisa de atenção, o que me incomodava. E Júlio era efusivo e falante demais. Depois de alguns minutos de conversa descobri que o homem que havia me introduzido formalmente, Victor, era um especialista em exorcismo e seria um de nossos tutores.

Fomos conduzidos e apresentados a todos os aposentos do “templo”. A última sala, chamada “Sala de Consultas” tinha registros, imagens e referencias dos infernais mais perigosos que poderíamos encontrar. Enquanto Victor nos mostrava um livro com mais de cem anos de história, Vinicius atentou para um bolo de fotografias jogadas em cima um dos retratos estava em branco e chamou sua atenção.

- Parece que esqueceram de chamar o modelo para esta foto. - brincou.
- Não diga bobagens, - respondeu Victor rispidamente - este retrato, ou a falta dele, pertence a um demônio que vocês terão sorte se não encontrarem.
- Quem? - Gabriela perguntou.
- Um upyr chamado Lucas Malta.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Ver014



A sensação de desmaio convencional (sei porque já passei pela experiência algumas vezes) é como um apagar de luzes. Subtamente seu corpo desliga e toda e qualquer faculdade do seu cérebro é suspensa. Um mar negro te envolve e tudo que você é capaz de fazer é esperar o momento de acordar. Meu desmaio aquele dia se assimilou mais a uma alucinação. As unhas do berne abriram sulcos profundos em meu peito e o contato direto delas com meu sangue fazia exponenciar o efeito substância que aquelas garras infernais tinham e mesmo o meu desmaio não era tranquilo. Até hoje tenho duas das três cicatrizes.

Mesmo fora de mim eu ainda tinha alguma consciência e o que essa consciência me mostrava era ela. A visão de Carol dessa vez era mais forte, eu estava totalmente imerso nela. Num cenário escarlate ela vinha em minha direção, cabelos, olhos, lábios e vestido também vermelhos. Os detalhes no quarto eram todos desbotados e em preto e branco. Eu não me mexia, não sei se estava preso ou paralisado, mas nao conseguia me mover porque, se pudesse, me jogaria em cima dela ali mesmo. Carolina sempre soube usar vermelho, as outras cores também, mas com vermelho ela acendia, e me acendia também.

Carol veio devagar, eu sentia meu corpo tendo espasmos mas meus olhos eram dela. Ao chegar bem perto de mim ela parou e pôs a mão esquerda na minha testa. Seu toque parecia leve, mas a mão acima dos meus olhos pressionava forte, como se quisesse entrar ali. Ironicamente, era ela quem povoada cada fragmento de pensamento que eu tinha há dias. Na época me parecia insensato, mesmo inacreditável, que ela tivesse tanta influência assim sobre mim. Só havíamos nos visto duas vezes e eu ainda não sabia de tudo.

Enquanto ela me prendia dentro daqueles olhos de âmbar as mãos desceram da minha fronte para o meu peito desnudo, onde estavam os machucados. Eu tive medo, vi como ela me olhou no nosso encontro na pedra do Arpoador. Carolina desconhecia controle ou razão quando via sangue. Enquanto ela passava as maos nos arranhões meu corpo voltou a ter espasmos, dessa vez mais fortes. Por algum motivo meu sangue não chamou a atenção dela dessa vez, ao contrário ela deu pouca atenção para ele e apenas seguiu cada um dos três cortes que eu tinha de ponta a ponta com os dedos. Em seguida, Carol tomou meu rosto com as mãos gentilmente. Sentia todos os seus dez dedos frios, inclusive os polegares no meu queixo. Veio aproximando o rosto do meu, meu corpo agora tremia muito, mas a minha visão era fixa. Os lábios, aqueles lábios vermelhos e carnudos parecendo ter sido desenhados na sua pele muito branca cada vez mais próximos.

Carolina me beijou.

O beijo foi intenso, e eu não esperava menos que isso. Os lábios dela cobriam os meus e sua língua envolvia e era envolvida pela minha num movimento caótico e ordenado ao mesmo tempo. Fomos crescendo. O quarto parecia esmaecer e o vermelho intenso escurecia e desbotava. Eu agora ouvia sons, não tinha percebido que tudo tinha estado mudo até aquele momento. O que eu ouvia não era alto, parecia um sussurro. O beijo continuava, queria usar minhas mãos para passear pelo corpo dela, mas elas não respondiam.

O ambiente atras dela escureceu totalmente, éramos eu, ela e a escuridão nos envolvendo. Carolina ainda era visível e parecia querer me sugar para dentro dela, o beijo havia mudado e agora sua boca puxava meus lábios. Cada vez mais forte, as vozes aumentavam também. Agora eu distinguia palavras, mas não conseguia entendê-las.

Carol me sugou, como se quisesse tirar minha essência e depois sumiu. Ouvi em alto e bom som uma voz que não poderia ser de Carolina dizer:

- Domini est salus, Domini est salus, Christus est salus, Salus tua, Domine, sit semper nobiscum! 

Me ergui assustado e abri os olhos e só então percebi que havia passado todo esse tempo deitado e de olhos fechados. O suor molhava meus cabelos e minha calça, estava sem camisa.

Olhei e não reconheci o ambiente. Cade a Carol? Onde eu estava?

- Bem-vindo, garoto. Achei que voce não fosse deixar eu terminar. - disse um senhor que aparentava ter 70 anos, falou com uma voz surpreendentemente firme e grave que não condizia com seu aspecto frágil. Ele era negro, suas vestes também. Usava uma batina clássica e tinha uma cruz de madeira pendurada.

- A Couraça de São Patrício é uma oração bastante poderosa. - ele olhava pra mim com olhos cansados, mas o resto da sua expressão ignorava as rugas e teimava em ser jovial - Mas só consegui te trazer de volta no final, voce estava se apegando forte ao sonho.
- Sonho? Desculpe senhor…vamos com calma, eu ainda estou um pouco lento. Quem é voce?
- Este é o padre Pedro Alvarez, Pablo. Voce devia ter mais respeito. - disse uma voz conhecida atras de mim. Olhei para trás e encontrei Catharina que me olhava com uma estranha hostilidade.
- Deixe disso, Catharina. O garoto acabou de ser purificado, é de espantar que ele não esteja explodindo de dor de cabeça.
- Purificado, como assim? Catharina…onde nós estamos?

A câmara tinha forma de um trapézio, e a cama onde eu estava sentado ficava no centro do cômodo  levemente deslocada em direção à base menor. As paredes eram todas revestidas de pedra mas elas quase não éram vistas porque um papel de parede feito de prateleiras de livros as cobria. No primeiro momento pensei estar numa biblioteca mas ao inclinar na minha cama vi uma pequena mesa redonda aonde tinha uma placa de metal e nela estava grafado numa tipografia antiga:

APOSENTOS DO SUMO SACERDO

Parecia que aquele senhor era realmente importante. A base da cama onde eu estava deitado era paralela a base maior do trapézio que era o quarto e diretamente à minha frete havia uma porta bastante ornamentada que estava fechada não me permitindo olhar além disso.

- Nós estamos no meu humilde quarto, Pablo. - disse o padre - Deixe que eu te explique o que aconteceu durante o seu...sono. Com certeza é louvável você ter lutado com um berne sem qualquer treinamento sozinho e ainda estar aqui falando comigo. Lembro de uma vez, quando eu estava recém-ordenado, que encontrei dois bernes sob a estação de trem de Bonsucesso. Tive sorte. Naquele dia eu tive ferimentos semelhantes aos seus, - levantou a manga e me mostrou o antebraço direito com quatro cicatrizes escuras que iam do pulso quase ao cotovelo - meu frasco de água benta estava cheio ainda por isso pude limpar os ferimentos antes dos delírios começarem. 
- Delírios?
- O berne se satisfaz com sua dor e sofrimento. - agora Catharina falava sua voz ainda tinha o tom severo - Quando ele causa ferimentos físicos com as unhas ou os dentes passa para quem foi ferido uma substância que causa uma dor que chega ao ponto do delírio, neste ponto a vítima passa sonhar com o que ela tiver de mais precioso. A vítima fica presa num delírio que não quer acordar enquanto o demônio pode se satisfazer do seu corpo que definha por dias.
- Você continua impecável, Catharina. - disse o padre.
- Vocês já se conheciam? 
- Eu estou no ramo há muitos anos, filho. É difícil achar um Favrashi que ainda não tenha cruzado comigo. Mais difícil é encontrar um melhor que Catharina, você tem sorte de ela ser seu anjo da guarda. 

Olhei para Catharina que por um momento enrubesceu, mas logo tomou a expressão seria que não cominava com ela novamente. Olhei de novo para o senhor sentado ao meu lado. Ele era aquele tipo de pessoa que você confia sem perceber, era fácil acreditar no que ele falava. Padre Pedro teria feito grande carreira política se quisesse.

- Mas... - tentei levantar mas desisti e voltei a me sentar na cama - a ultima cosia que eu me lembro foi de estarmos na Candelaria.
- Sim, vocês chegaram e eu abri as portas.
- Tudo bem, mas onde estamos agora? 
- Você ainda está na Candelária, meu filho. Só que alguns metros abaixo da nave principal.
- Estamos...no subsolo?
- Digamos que era preciso achar um lugar discreto para fazer o que fazemos aqui. Mas você acostuma, logo não vai mais nem perceber. Quer ajuda com isso de se levantar?

Ele me ajudou, Catharina também. Minhas pernas ainda estavam fracas e demoraram um pouco a se acostumarem com meu peso. Apoiava nas pesas e prateleiras até começar a dar os primeiros passos. Sem querer acabei derrubando um livro da estante do padre. O livro caiu aberto e Pedro correu a fecha-lo, ele foi rápido mas eu consegui ler o título:

- "O Rei de Amarelo". Que livro é esse?
- Certos livros não são para ser lidos, garoto. Que tal eu te apresentar aos outros? Tenho certeza de que estão ansiosos para conhecer o garoto que se atrasou porque estava mandando um berne para o inferno. - ele brincou.
- Todos já chegaram? - perguntou Catharina.

Os olhos cansados do Padre Pedro ficaram tristes. 

- Todos menos uma. Ouve um outro ataque além do de vocês, parece que eles estão realmente  empenhados em acabar com essa geração. Não foi um berne, pelo que eu soube um pratur atacou uma de nossos sacerdos. Bruna não vai chegar. 

O momentânea silêncio que se deu depois disso foi breve e quebrado pelo próprio padre. Ele me olhou e disse que talvez fosse melhor eu botar uma camisa camisa. Procuramos, mas não havia nenhuma no aposento e a minha já estava reduzida a trapos. Padre Pedro achou alguma coisa em seu armário.

- Ah, acho que isso aqui deve caber em você. Que tal? Pronto, ficou ótimo! Agora vamos!

Ele abriu a porta e eu fui em direção ao salão principal da ordem usando uma batina. 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Ver013



Meu peito doía. O corpo todo estava dolorido, é verdade, mas uma dor mais intensa emanava dos três sulcos que as garras do infernal traçaram do meu ombro direito ao centro do meu peito. Deixei o corpo do berne no chão e fui ao socorro de Catharina. Ela não sangrava, mas confesso que, nos segundos arrastados que ela demorou a acordar, eu quase esqueci de que anjos não podem morrer.

Ela abriu os olhos quando tinha sua cabeça no meu colo. Eles olharam para mim e logo perderam a sonolência normal de quem acabou de acordar e me olharam cheios de preocupação.

- Pablo, você está bem?! Onde está ele? 

Sorri aliviado e abracei minha amiga. Realmente me sentia mais calmo quando estava com Catharina. 

Estava explicando para ela como havia se dado a luta com o demônio e ela reagiu com aquela mania de se culpar por ter desacordado e me deixado sozinho com ele. Quando eu abri a boca para convencê-la de que não devia se desculpar por isso ouvimos um barulho, um som horrível vindo do corpo que eu havia esquecido do outro lado do casarão.

Nossos olhares foram para ele ao mesmo tempo. Permanecia imóvel. Catharina levantou antes de mim e percebi que ela estava renovada, não havia mais ferimentos em seu corpo ou mesmo sujeira em sua roupa. Outro ruído veio da garganta do berne. Levantei também e percebi que a dor no meu peito aumentava a cada passo. Nos aproximamos com cautela do que eu acreditava estar morto, mas agora já não tinha certeza. Um terceiro e mais alto pigarro veio da pútrida boca que eu observava, mas desta vez era diferente, parecia que o demônio tinha se engasgado. De súbito um líquido ocre saiu de sua boca e se espalhou pelo seu corpo.

Sempre imaginei que, ao morrer, os seres do plano inferior simplesmente desaparecessem, virassem pó ou mesmo definhassem até os ossos, mas não foi o caso. Catharina, que acho, também nunca tinha visto um berne morrer, soltou uma sutil interjeição de surpresa quando o líquido regurgitado pelo monstro passou a, como um ácido, corroê-lo. 

No tempo de três piscadas nos vimos sozinhas naquele casarão abandonado na Rua da Glória. Catharina com os olhos no ferimento que cortava meu peito, me perguntou com urgência sobre a água benta:

- Pablo, você gastou tudo ao exorcizar o berne? - havia tensão na sua voz.
- Como eu te disse, - percebi agora que eu estava ofegante e falar me custava um grande esforço - ele me surpreendeu antes mesmo de eu poder usá-la. O frasco está vazio.
- Esses arranhões, que abrem do seu ombro até o peito, ele fez com as garras?
- Uhn, - hesitei - sim. Como você sabe?
- Pablo, precisamos correr. - agora a preocupação dela estava evidente - Bernes se alimentam de dor e agonia, por isso têm poderes de infligir essas sensações psiquicamente nos outros, assim como este aqui fez com você no metrô. Mas, os ferimentos físicos que este tipo de demônio causa, particularmente com as garras, é ainda mais perigoso. Precisamos tratar desse seu ferimento, rápido.
- Senão? 
- Senão, - ela olhou para mim com piedade - minha missão com você vai ter acabado cedo demais.

Pode ter sido placebo, mas imediatamente depois desta conversa senti a temperatura do meu peito aumentar, e a dor passava a irradiar agora para meus braços e cintura. Respirar estava começando a ficar mais complicado e o ar parecia não ser o bastante. Minhas pernas perdiam a sensibilidade e, mesmo andar era uma tarefa que pedia dedicação.

- Precisamos chegar ao templo o quanto antes e lavar seus machucados com água benta. Isso não vai fecha-los mas, ao menos, vai esterilizar a ferida. 

Ela estava agitada. Eu entendia o que ela falava mas a voz parecia abafada em algumas palavras. Catharina foi até a extremidade superior direita do cômodo onde estávamos e juntou os meus equipamentos que estavam espalhados próximos à maleta marrom. Tentei acompanha-lá mas, ao dar dois passos senti uma fisgada seca na minha perna de apoio e tombei. 

De repente, Carolina. O toque em minha nuca. Sua bochecha esquerda colada à minha direita, sentindo meu calor reagir ao frio dela. Eu me enterrava e me perdia no vermelho pulsante dos  seus cabelos enquanto ela chamava meu nome.

- Pablo! 

Despertei e percebi, com um pouco de decepção, que as mãos que me envolviam e os cabelos que dançavam na frente dos meus olhos eram de Catharina. Agora, meu corpo todo doía.

- Você desacordou por alguns minutos depois que caiu. A luta exigiu muito de você e os efeitos do ferimento estão ficando mais graves, precisamos correr! Vamos!

Catharina era maior que eu. Ao levantar ela envolveu meu braço esquerdo em seus ombros afim de ser minha muleta, este simples movimento teria me feito gritar se eu conseguisse, sentia meu braço ardendo. Finalmente saímos daquela casa amaldiçoada. Caminhamos pela Rua da Glória, Catharina tentando respeitar meu ritmo lento mas a preocupação fazia ela quase correr sem perceber. Pelo meu estado com certeza atraímos alguns olhares na rua, mas eu não percebi. 

Ao sairmos da Glória e chegarmos ao bairro onde anos depois ficaria minha residência, a Lapa, fui atingindo mais uma vez por um lapso de perda de sentidos. Como já comentei, sempre fui suscetível a sentir presenças e energias que a maioria dos mortais não sente e a Lapa é o lugar mais carregado que eu já estive. Toda essa carga me atingiu como um soco e novamente me desacordou.

Novamente, também, eu vi Carol. Seus olhos e seus lábios sorriam para mim. O olhar de Carol conseguia dizer coisas mesmo quando sua boca não falava. Desta vez ela estava me dizendo para ficar de pé e continuar. Eu o fiz.

Peço desculpas pela imprecisão com a qual conto esta parte da história mas, por motivos óbvios, sou incapaz de dar mais detalhes destes lapsos.

Quando abri os olhos vi que Catharina, não sei se me arrastando ou carregando, havia prosseguido bons quilômetros durante o meu tempo inconsciente. Estávamos já na Rua Uruguaiana, os carros para mim eram borrões de cores e sons. Minha cabeça flutuava entre a sanidade e alucinações.

Já não mais comandava minhas pernas, Catharina me guiava e eu apenas seguia. Tive um vislumbre da grande catedral ao fundo da Presidente Vargas e, ao cerrar os olhos para ter certeza do que via uma pontada direto no meu coração. Tropecei.

- Força, força Pablo! Estamos quase lá. - faltava pouco para ela chorar - Você não vai…eu não posso deixar você desistir agora. Vamos. Vamos, de pé.

Minha garganta estava trancada, minhas articulações pareciam descolar a cada movimento. Mas a Candelária estava logo ali, e mais uma vez a imagem de Carol me estendendo a mão foi a minha força para levantar. Desta vez até consegui sentir seu perfume. 

As enormes portas de madeira da igreja estavam trancadas quando chegamos. Catharina foi tomada por um visível desespero enquanto batia repetidamente nas imagens barrocas que estavam grafadas em alto-relevo nas portas.

Desabei aos degraus da enorme igreja. Depois que Catharina desistiu de bater houve alguns segundos sem resposta onde a esperança morreu. Mas senti, às minhas costas, as pesadas portas da Candelária abrindo.

- Vocês estão atrasados.

Desmaiei.