terça-feira, 7 de outubro de 2014

Ver008



Olho para a minha mesa agora e não posso deixar de rir. Naquele dia eu tinha prometido à Catharina que ia esquecer o que aconteceu no Arpoador e afastar os pensamentos de Carolina o máximo que eu pudesse. Neste momento, além da máquina de escrever, uma caneca com a asa lascada e uma garrafa de whisky barato, existem mais de 20 páginas. Todas escritas sobre Carolina.

Levo meus dedos até as cicatrizes que tenho no pescoço. Elas não doem mais, mas criei o habito de tocá-las sempre que a falta dela fica insuportável. Por favor entenda, escrever estes relatos não tem sido a tarefa mais fácil para mim. Pontuar todos estes fatos novamente me faz ver todos os marcos do percurso onde eu poderia ter evitado o que aconteceu e, acredite, eu daria qualquer coisa para mudar o final.

Mas eu estou divagando. Vamos voltar.

Não percebi o quanto eu estava cansado até deitar na cama improvisada que Catharina havia montado para mim. E não tome “improvisada” como algo negativo, apesar de ter sido preparada sem muito planejamento minha cama estava bastante confortável. Dormi um sono profundo, mas inquieto. Meu subconsciente não respeitou a promessa que meu consciente fiz e eu sonhei com ela naquela noite. Como disse, o sonho foi inquieto, e inquieto não quer dizer que ruim. Fiquei decepcionado ao acordar com a luz no meu rosto.

Eu não tinha muitos compromissos aos 18 anos. Não cursava faculdade e não trabalhava, apenas estudava para prestar as provas de vestibular, o que deixava meus dias bastante não regrados. Apesar de ser uma segunda-feira, acordei no dia seguinte e não tinha nenhum compromisso minimamente importante. Catharina já estava de pé quando cheguei na cozinha e me perguntei se ela realmente havia dormido. Ela estava agitada como sempre fica perto de ocasiões importantes.

- Pablo, hoje teremos um dia cheio. Melhor você tomar café da manhã depressa.
- Teremos?! Não recebi o memorando.
- Sim, em alguns momentos virão dois Ofanins aqui para recrutá-lo.
- Wow! Calma! Do que voce tá falando?
- Estou falando do início do seu treinamento. Não posso deixar algo como o que houve ontem se repetir e resolvi antecipar seu recrutamento, não serei melhor que o seu instrutor nesse momento. Hoje você vai ser recrutado e vamos dar início...
- MAS NEM FODENDO! - ao ouvir isso, ela recuou de surpresa - Olha, eu agradeço por tudo que você tem feito por mim, já te considero até minha amiga. Mas olha aqui, em nenhum momento eu concordei com isso tudo e…

A campainha tocou.

Catharina se levantou nervosa, ainda um pouco em choque pelo modo com o qual eu havia reagido. Me olhou de um jeito distante e frio e me senti mal pelo que fiz. Usava uma camiseta branca e um short azul marinho que deixava suas pernas a mostra e dava pra ver que não era o tipo de veste que ela estava acostumada. Catharina estava bastante desconfortável.

Atendeu a porta e duas figuras imponentes entraram no pequeno apartamento sem pedir licença. Um era negro e forte, usava uma camisa social e sapatos bem engraxados, na mao trazia uma pasta. O segundo tinha cabelos escuros presos num rabo de cavalo e usava uma camiseta com um símbolo que eu ainda não conhecia.

- Então Catharina…é esse o mortal?
- Sim, sim Merlon, este é Pablo Pazos. Eu tenho ordens para protege-lo até…
- Sabemos quais eram suas ordens, Fravashi. - disse o de rabo de cavalo com rispidez - E sabemos também que não precisaríamos estar aqui se você tivesse as cumprido corretamente. Agora por favor nos deixe trabalhar. Você, mortal - se virando para mim - chegue mais perto.

Não posso negar que a presença daqueles dois me intimidava. Era diferente com Catharina. Eu sempre soube que ela tinha muito mais força que eu, mas nunca me preocupei com isso. Essa situação era outra coisa. Quando ela viu que eu não me movi veio para o meu lado e me forçou a ir até eles.

- Pablo, estes são Gathen e Merlon. Como eu disse, são Ofanins que vão cuidar do seu recrutamento.
- Não sei como ainda querem seu recrutamento, garoto. - Gathen foi com os olhos de mim para Catharina - Sua amiga ali realmente acredita em você, ela passou bastante tempo convencendo o Conselho de que você valia a pena.
- Vamos logo com isso - suspirou Merlon que parecia distante e entediado - Precisamos de alguns dados de você imediatamente.
- Esperem um pouco - finalmente consegui falar - Antes de vocês chegarem eu estava exatamente falando para Catharina que não.
- Não? - eles disseram juntos.
- Exatamente. Desculpa, mas esses últimos dias tem sido uma verdadeira loucura pra mim e eu só quero esquecer de tudo isso, - o que não era exatamente verdade, tinha uma coisa que eu não queria (e nem iria) esquecer - não vou fazer treinamento nenhum.

Gathen pareceu se inflamar de ódio. Durante os anos seguintes eu e ele teríamos muitos desentendimentos, até mesmo uma luta. Este Ofanim é uma das criaturas mais desprezíveis que eu já conheci.

- Como voce ousa dizer isso, terreno?! Yahweh em toda sua bondade está aqui te dando uma oportunidade para se aproximar de nós, criaturas superiores e você está virando as costas! Você não pode fazer isso!
- Na verdade, ele pode sim - Catharina intercedeu por mim - eles tem algo que não temos, Gathen.
- Eles? Catharina, você tem passado muito tempo neste plano. Essas criaturas não tem nada que nós não tenhamos, eles são…
- Sim, eles tem. - disse Merlon que agora me olhava diretamente - Ele está fazendo uso do livre-arbítrio. Não há nada que possamos fazer. Vamos, Gathen, não temos mais função aqui.

Continuou olhando para mim como se não acreditasse na minha atitude por alguns segundos, mas logo saiu. Nenhum dos dois se despediu. Imediatamente depois que eles foram a tensão no ar se desfez. De novo éramos só eu e Catharina, a quem eu tinha acertado em considerar uma amiga. 

- Você é inacreditável. - ela me disse - Acabou de enfrentar dois Ofanins como se eles não fossem nada digno de registro.
- Bom, eles não poderiam ser muito diferentes de você.
- Pablo, eles são celestes de primeira ordem. São responsáveis por manter a autoridade divina e símbolos da humildade. Há quem diga que os Ofanins são a balança do mundo. Eu nem sei te precisar o quão poderosos eles são.
- Humildade? Por favor, você viu como aquele babaca nos tratou?
- Nem sempre nós entendemos as atitudes de seres superiores.
- Eu não acredito em castas, Catharina. Eu acredito em caráter, e você não deveria prestar contas para aquele cara, Ofanim ou não.

Um silêncio inesperado tomou conta da cozinha.

- O que você vai fazer agora? - Ela me perguntou meio sem jeito depois de um tempo.
- Bom, vou pra casa. Você cuidou muito bem de mim, meus ferimentos já quase não aparecem mais. Quero ver o meu pai, pensar que pudesse ter acontecido alguma coisa com ele me deixou muito perturbado. Ele é minha única família.
- Entendo.
- Você vai continuar por aqui? Quer dizer…eu ainda vou te ver? - perguntei temendo uma despedida.
- Bom, minha missão ainda não terminou. Ainda estou encarregada de proteger você até que se ordene. Vou precisar consultar ordens para saber o que vou fazer em seguida mas enquanto isso.. - tomou meu pulso, o mesmo que Carolina havia tocado na noite anterior, e passou o dedo por ele. Pouco a pouco, como uma tatuagem, foi se formando um desenho peculiar, um homem de perfil, com uma argola na mão esquerda envolto por duas grandes asas. - este é o símbolo dos Fravashi, vai ficar com você até minha missão acabar. Não se preocupe em esconder o pulso, só você pode vê-lo. Sempre que quiser entrar em contato comigo é só passar o dedo por ele.
- Obrigado! Sabe, não queria perder contato com voce. - disse um pouco constrangido, mas logo me despedi para evitar um momento embaraçoso -  Agora preciso ir, meu pai já deve estar preocupado.

Num impulso, sem muito pensar eu a abracei. Depois eu soube que Catharina nunca havia ganho um abraço. Fui para casa e só no meio do caminho percebi que havia deixado minhas chaves no apartamento de Catharina mas resolvi não voltar, poderia pegá-las depois. Meu foco era chegar em casa. Meu porteiro abriu o portão quando pedi e, ao subir para o meu apartamento toquei na porta.

Uma vez.
Duas.
Na terceira vez tentei a campainha.

Quando pilotos retornam de um voo, ganham dois dias de folga ao volta. Meu pai deveria estar e estar e, infelizmente estava em casa.

Mas ele não atendeu a porta.

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