sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Ver012



A tarde se arrastou. Desde que Catharina havia me dito que sairíamos de casa às 17h parece que os ponteiros do relógio haviam se tornado preguiçosos. Ansiedade? Talvez, confesso ser um ansioso compulsivo. Mas atribuo minha impaciência à vontade de vingança cega que me acompanhava e, é verdade, também me incentivava a ideia de que, se eu me ordenasse, talvez recebesse mais alguma visita da Carol.

Eu estava sentado na janela do meu quarto ainda desarrumado quando Catharina chegou. Já devo ter escrito algumas vezes sobre a beleza dela, mas lembro bem que neste dia ela conseguia estar mais encantadora. Não conseguiria aqui listar motivos específicos para isso, pois não havia. Poucas vezes vi Catharina fora de seu padrão de roupas coloridas entre o azul e o branco, essa foi uma delas. Seu vestido era de um verde tão escuro que à primeira vista me pareceu chumbo, ele era justo ao seu tronco e solto após a cintura, o cabelo loiro estava com cachos nas pontas e duas delicadas mechas da frente se encontravam em sua nuca numa trança discreta mas firme. O ambiente ficou mais quente depois que ela entrou

.- Nossa, você se arrumou!- Vou ignorar sua surpresa e tomar isso como um elogio, Pablo. Muito obrigada. Agora vamos, não esqueça sua mala.

Obedeci e fomos em direção à estação de metro da Siqueira Campos que fica há poucos metros da minha antiga casa. Descemos os degraus da estação Entrarmos no vagão do trem antigo que passou, viajamos de pé. Senti uma pontada uma crescente na cabeça pouco tempo depois que o trem começou a andar. Catharina sempre ficava distraída quando estava em lugares com muitos mortais, ela só percebeu minha condição quando me apoiei em seu ombro.

- Pablo! Pablo, você está bem?! O que houve?!
- Não sei - eu disse ofegante - de repente uma dor de cabeça muito forte…como se estivessem fazendo pressão dentro da minha cabeça! Estranho…eu nunca fui de enxaquecas.
- É. Muito estranho.

A dor era exponencial. As marteladas com certeza estavam ficando mais fortes. Era diferente daquela sensação irritadiça de arranhões no cérebro que descrevi algumas páginas atras. Não, desta vez eu sentia literalmente pancadas.

Catharina pôs a mão na minha cabeça baixa e sussurrou algumas palavras em latim dos meus ouvidos. A dor não passou, mas ao menos parou de aumentar. A sensação era de que meu crânio poderia explodir a qualquer momento.

- Estação Largo do Machado. - disse a locutora.

Ela se desvencilhou de mim, somente por um momento, mas eu teria caído não fosse o cilindro de ferro que fica no meio dos vagões do metrô. A luz pressionava dolorosamente meus olhos, não conseguia deixá-los abertos por muito tempo. Em um dos intervalos nos quais a dor se mostrava suportável vi minha amiga abrir a mala que eu, há muito, havia deixado cair no chão. Já estava de olhos fechados novamente quando Catharina pegou o terço que eu havia tocado mais cedo e enrolou na minha mão esquerda.

Calor.

Senti um calor pungente que se espalhou forte não só pelo meu braço como também pelo meu corpo inteiro. Em segundos já não havia dor e eu estava recomposto. Só então pude notar os rostos preocupados dos outros passageiros. Catharina perguntou se eu estava bem e eu afirmei com um aceno mas não olhei para ela, minhas atenções estavam no terço que ainda pulsava na minha mão. Agora ele, que era de prata, brilhava num dourado intenso. Olhei perplexo por alguns instantes, alguns dos passageiros mais curiosos começavam a conversar entre si.

- Estação Glória. - disse novamente a voz metálica da condutora.

Catharina fechou minha mala e a levou para a plataforma, fez sinal para que eu fosse com ela. Algumas outras pessoas também saíram e o trem seguiu em direção à Tijuca. Não posso dizer que estava completamente recuperado, mas afirmo categoricamente que minhas faculdades mentais já funcionavam sem problemas. Depois que o ímpeto de seguir Catharina passou percebi que, se nosso destino seria a Candelária, deveríamos ter permanecido no trem até a estação Uruguaiana.

- Catharina, acho que você errou a estação. Bom, até dá para irmos a pé, mas pela hora acho que vamos nos atras...
- SHH! - Catharina pediu silêncio e eu percebi que ela estava procurando alguém ou alguma coisa na multidão que saiu só vagão junto conosco que agora já se espalhava pela plataforma - Pablo, me ajude com isso. Por favor se concentre. Como Gathen disse, os artefatos que você recebeu são bastante especiais. O terço que lhe serve de proteção também avisa quando existe algum demônio por perto. - apontou para o terço na minha mão que ainda brilhava, mas agora menos intenso - Vamos evitar qualquer ataque, claro, mas precisamos saber quem te atacou para eu poder te proteger. Achei que te tirando do trem estaríamos livres dele, mas acredito que ele desceu conosco.
- Bom, de qualquer jeito a trilha está esfriando.

O brilho foi esmaecendo até voltar ao prateado natural. Percebi que o nervosismo da minha amiga também sumia, apesar dela ter dito que não queria arriscar mais algumas estações num lugar fechado como o metrô. Iríamos seguir a pé.

O bairro da Glória é bem pequeno e antigo. Sua decoração se dá por comércios de rua tradicionais e casarões de dois séculos atrás bonitos, mas malcuidados. Caminharíamos cerca se meia-hora até chegarmos à Candelária, por isso apressamos o passo.

Muitos daqueles casarões que eu comentei estão abandonados hoje em dia e foi ao passar pelas portas de um destes que senti duas mãos fortes me puxando para seu interior. Foi rápido e inesperado, em menos de um segundo me senti impelido contra o assoalho quebrado e sujo do casarão. Ouvi uma risada gutural e os passos da Catharina logo atrás. Levantei e vi o bolso esquerdo de minha calça brilhando novamente, mas antes que pudesse enrolar o terço na minha mão um grito de Catharina me avisou de um golpe que não pude evitar.

Ele não era grande. Não, era menor que eu, inclusive. A forma sem dúvida era humana mas havia peculiaridades gritantes que me aterrorizaram à primeira vista. O corpo magro tinha os braços ligeiramente desproporcionais, de modo que as garras que estavam no lugar dos seus dedos chegavam a tocar o final das coxas, a pele era de um cinza desbotado. Nos olhos não havia pupila, apenas um mar negro e seus dentes eram semelhante aos de um tubarão. 

Foi a primeira vez que vi um demônio em sua forma original.

Permita que eu pontue algumas coisas. A maioria das castas de infernais que estão neste mundo têm o tipo físico semelhante ao nosso ou apenas com ligeiras diferenças, Carol por exemplo, tinha os caninos protuberantes. A aparência os ajuda a se misturar e levar uma vida aqui. Acontece que existe ainda um número imenso de criaturas do plano inferior que, como era o caso deste berne, precisavam se valer de artifícios para transitar entre os humanos. É por isso que a maioria dos demônios não-humanóides quase nunca sai do inferno. Ah, bernes também são incapazes de falar.

Bernes são diferentes. Berne é um tipo de demônio que tem a habilidade física de mudar sua aparência. Um inseto, um animal, planta e até mesmo um ser humano. Seus poderes, entretanto, não se limitam somente ao físico, dores e doenças que não parecem ter nenhuma causa explicável pela medicina quase sempre tem participação deste tipo de demônio. Bernes se alimentam de sofrimento humano.

Um de seus longos braços me atingiu em cheio no ombro esquerdo e me fez dar quatro passos para trás. Era um casarão escuro e eu não conseguia ter certeza de onde ele estava. Catharina veio correndo e se pôs ao meu lado. Senti-me envolto pela mesma película branca protetora que ela havia usado para me defender no dia que vi Carol pela primeira vez.

- Pablo, me ouça atentamente! Essa criatura é um berne, um demônio letal. Você ainda não tem domínio dos seus poderes para enfrentá-lo. Siga, estritamente as minhas instruções. Primeiro enrole o terço na sua mão, ele vai reagir ao seu toque e avisá-lo quando ele estiver se aproximando. Isso irá atrasá-lo.

Fiz como ela disse.

- Segundo: abra a maleta e pegue o frasco de água benta. Eu vou te proteger, então não se preocupe, assim que ele sair das sombras despeje a água benta nele em forma de cruz.

Tirei o pequeno vidro como ela me disse para fazê-lo e, como o rosário, ele reagiu a meu toque. A agua começou a borbulhar, como se estivesse sendo fervida, mas a temperatura não subiu.

Outro rugido do berne.


- Catharina, é normal água benta estar borbulhando?
- Pablo, “água benta” não passa normal carregada pelo espírito de quem a usa. Na verdade, todos os equipamentos dessa mala são objetos comuns, a não ser que sejam manuseados por você. Agora fique atento, não sei se vamos ter uma segunda ch…AAAAH!

Catharina se distraiu ao falar comigo e o berne a atacou, basicamente o mesmo ataque dirigiu a mim no metrô. Não esperei para correr em sua direção, o terço na mão esquerda, o frasco com agua benta na direita. Os gritos de Catharina eram insuportáveis.

Ao chegar próximo ao meu inimigo senti como se dois pregos perfurassem meus pulsos, já não dominava meus dedos que se abriram deixando meu terço e o frasco caírem no chão. O líquido se espalhou rapidamente pelo assoalho empoeirado do casarão.

Conforme Catharina gritava e ia perdendo forças o monstro ia ficando mais forte, percebi que estava maior, inclusive. A dor em meus pulsos se aliviou um pouco, ele estava focado nela. Apesar de estar longe de mim por alguns metros seus longos braços permitiram que suas garras arranhassem do meu ombro ao meu peito.

Catharina parou de gritar, estava desacordada pelo ataque. O demônio agora tinha toda a sua atenção em mim. Mais forte e maior que quando nos levou para o casarão me empurrou forte e eu caí de costas. Minhas mãos encontraram alguns gravetos que estavam esquecidos no chão sujo da casa abandonada. Lembrei do que Catharina me disse e, mais uma vez apostei todas as minhas fichas numa única chance.

O berne vinha desenfreado em minha direção. Começou novamente me infligir uma forte dor de cabeça.em minhas mãos eu tinha dois gravetos e, não importa o que ele fizesse eu estava empenhado em não soltá-los. O demônio enterrou uma mão entre os meus cabelos e me levantou pela cabeça com seus dedos enormes. Me trouxe para perto de si e eu estava face a face com ele quando senti seu grunhido nojento.

Minhas mãos se uniram bem em sua testa, os pequenos gravetos em forma de cruz. Nada aconteceu. A criatura estava um tanto quanto surpresa com meu golpe e ponderou um pouco seu ataque. Estava perdendo minhas esperanças quando os toscos pedaços de madeira começaram a brilhar e queimar a pele do meu inimigo.

Ele soltou minha cabeça e tentou fugir, mas eu estava empenhado em acabar com ele ali mesmo. Aproveitei que estava enfraquecido e com a palma de minha mão esquerda continuei pressionando os gravetos em cruz contra sua fronte enquanto a direita trazia a parte detrás de sua cabeça na direção deles.

A agonia e os ruídos guturais não me impediram de ir até o final. Conforme ele enfraquecia, mais força eu fazia e só parei quando percebi que ele já estava desfalecido. Ao tirar meus braços doloridos de sua cabeça vi que meu crucifixo improvisado estava alguns centímetros enterrados em sua face.

Foi assim que eu matei meu primeiro demônio.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Ver011



A culpa pelo que eu fiz me consome. Corrói de tal forma que eu já cogitei em terminar com isso algumas vezes. Todas as vezes foi a lembrança dela quem me impediu. Ela e o whisky. Comecei a beber whisky pouco antes de deixar o celibato porque li em algum lugar que whisky anestesiava a dor de amputações traumáticas. E lhes digo que é verdade.

Anestesia mas, infelizmente, não cura. Acabo de esvaziar uma garrafa de Logan 12 anos então, peço desculpas antecipadas por eventuais erros de gramática.

Carol esteve no meu quarto um sem-número de vezes, e eu lembro de cada uma delas não por ter uma memória acima da média, mas é que é fácil lembrar quando você tem uma garota como ela na sua cama.

Naquela primeira visita, entretanto, nós mal nos tocamos e ainda assim eu não conseguia deixar de pensar nela. Mesmo após ela ter ido, eu fiquei alguns momentos embriagado com a sua prensença, que permanecia no meu quarto e quando consegui pensar de novo fui até o parapeito da minha janela onde ela já não estava mais. Tateei a minha nuca que ainda se lembrava do toque frio dela, mas só encontrei os cachos do meu cabelo. Voltei para cama frustrado e o quarto vazio passou a me incomodar. Despedidas nunca foram fáceis quando eram com ela.

Também não dormi esta noite, mas pela primeira vez em algum tempo o que me manteve acordado não foi a falta do meu pai mas sim a presença da Carol que meu cérebro tentava tornar real de algum jeito.

Perdi a noção do tempo deitado na minha cama desarrumada até os que primeiros raios de sol começaram a me acordar do meu não-sono. Levantei e fui tomar um banho. Eu, que costumo gostar de banho quente, dessa vez virei a chave para o lado gelado. 



+++

Pontualmente às 11:30h, Catharina tocou a minha campainha corri, abri ansioso. Mas ela não veio sozinha, não demorei para ver Gathen ao lado dela. O Ofanim estava com a mala que outro dia tinha visto com Merlon, uma camisa polo azul, os cabelos soltos e os olhos presunçosos de sempre. 

- Pablo, informei aos meus superiores que você tinha mudado de idéia sobre o treinamento. E me autorizaram a continuar te acompanhando até você ser ordenado, - Catharina ficava estranhamente formal na presença de outros anjos, era quase engraçado - para isso trago aqui como testemunha o Ofanim Gathen para te autorizar a entrar  na Ordem dos Sacerdos.
- Já que você é tão volúvel, humano, - disse Gathen - sou obrigado a lhe informar que, uma vez que você tenha se ordenado, vai ser um chamariz das criaturas escuras, você vai viver constantemente olhando por cima do ombro ou para os lados, você vai estar sendo observado. Por eles e por nós. Claro que existe a opção de você sair da ordem quando quiser, mas isso não vai afastar os demônios de você, eles não gostam de ser vistos. Isso não é brincadeira, garoto. Meu conselho? Você é fraco demais para isso, volte pra sua vidinha ordinária.
- Obrigado pelo conselho, Gathen - eu disse com sarcasmo - mas imagino que você esteja muito ocupado com seus afazeres já que é um ser tão superior, então porque não vamos logo com isso,  não é?

Gathen suspirou, foi até a mesa da minha sala (que estava limpa graças a Catharina), apoiou a mala e levantou a cabeça subitamente. Na direção do meu quarto.

- Sugiro que você reveja suas companhias também, garoto. Não é bom trazer um infernal para sua casa...foi um upyr, estou certo? - seus olho eram maliciosos.
- Não foi culpa dele! Um upyr entrou aqui e assassinou o pai dele. Garanto a você que tenho protegido o Pablo de quaisquer contatos com os baixos desde então. 

Catharina não tinha entendido que a presença que Gathen havia sentido era da Carol. Sorte a minha, percebi que deveria manter a visita dela em segredo por enquanto.

- Eles morrem tão fácil, não é mesmo?

Meu ímpeto foi partir para cima de Gathen, mas Catharina segurou discretamente meu punho que já estava fechado e usou suas habilidades para me acalmar quase instantaneamente. Ao ver que sua provocação não tinha dado em nada, Gathen sorriu.

- Muito bem, Catharina. Não queremos que Pablo faça nada impensado, não é?
- Gathen, podemos ir logo com isso?
- Desde quando você virou tão profissional, Catharina? Mas você, está certa, estou mesmo ansioso para voltar ao plano superior. Preste atenção aqui, garoto…
- Meu nome é Pablo!
- Preste atenção aqui, garoto e não me interrompa. Essa mala contêm artefatos bastante importantes que você não pode, sob hipótese alguma, tratar levianamente.

Eu imaginava que aquela mala continha alguns papéis ou documentação. Deveria saber que os celestes não precisam de toda essa burocracia. A mala era antiga, marrom e discreta, como disse, poderia ser uma pasta de um dos executivos que trabalha na Rio Branco. Mas por dentro ela continha objetos realmente inusitados: três crucifixos de tamanhos diferenciados, uma batina roxa com duas cruzes bordadas em dourado, uma em cada ponta, um espelho trincado, quatro tubos de ensaio que continha, essências que eu não sabia do que eram, um frasco com agua benta e um terço. Sei que parecem elementos simplórios, mas não se iluda. Eu falharia se tentasse descrever a aura que havia naqueles itens, era como se eles tivessem vida. Toquei no terço e senti que ele respondeu ao meu toque.

- Esse, - disse Gathen - é o seu equipamento inicial, Pablo.
- Equipamento inicial?
- Sim, - Catharina interveio - acontece que a Ordem dos Sacerdos têm diferentes ramificações, Pablo. Não sabemos para que direção você vai ser direcionado, então chamei Gathen aqui pois ele está autorizado a entregar o equipamento padrão para os aspirantes. Uma vez qua saibamos qual vai ser a sua especialidade você vai receber armas mais específicas.
- Crucifixos, um terço, alguns frascos…Catharina você não espera que eu mate o Lucas com isso, não é?!
- Não ouse zombar deste equipamento, mortal! Você não faz idéia do que fala!

Ele pôs o dedo no meu rosto e eu, no tempo de um reflexo, puxei sua mão violentamente para baixo. O toque dele queimava, mas não soltei sua mão.

- Acalmem-se, os dois. Pablo vai entender quando formos ao templo amanha, Gathen, muito obrigado pela sua ajuda. Acredito que você tenha outras responsabilidades agora, estou certa?
- Sim. - ele puxou o braço para si ainda olhando nos meus olhos. - Sim, não vou mais perder meu tempo aqui. Vamos nos encontrar de novo, garoto. Tente ficar vivo até lá, ok?
- Vai ser um prazer.

Catharina o acompanhou até a porta. Quando voltou olhou para a minha mão onde bolhas já começavam a se formar. Juntou as mãos na minha e fechou os olhos. Nesse momento eu pensei em contar para Catharina sobre a visita de Carol na noite anterior. Só pensei. Quando abriu os olhos novamente minha mão já estava sem dor.

- Pablo, eu estou preocupada.
- Preocupada, com o que? - agora eu estava explorando meus novos itens.
- Com voce! Voce disse algo que me preocupou ali.
- Desculpe, mas aquele cara me tira do sério, Catharina.
- É, você devia parar de desafiar Gathen, também. Mas eu estava falando do que você disse sobre o upyr que matou seu pai. Pablo, essa maleta contem artefatos poderosíssimos sim, mas você não pode depender só deles para uma batalha contra um demônio como Lucas Malta. Não se precipite, não se afobe. E mais importante, não deixe a vontade de vingança te cegar.
- Sim, eu falei aquilo sem pensar.
- Sei que é delicado. E é um sentimento legítimo, mas se eu vou ser sua guia nisso tudo você tem que me prometer que não vai fazer nada imprudente.
- Eu prometo, Catharina. - Menti.

Almoçamos juntos. E Catharina me explicou a grande responsabilidade que seria servir a Ordem dos Sacerdos e que estava feliz por eu ter aceitado meu chamado. Falou ainda que eu seria um grande membro para a Ordem e estava desfiando a grandes feitos. Que irônico foi o destino.

- Ainda bem que consegui trazer o Gathen aqui cedo. Precisamos deixar você pronto para ir ao templo as 18h.
- Eu ia te perguntar sobre isso aonde é esse “templo” que você fala tanto. Vamos precisar viajar?
- Não, Pablo, o templo é logo ali no Centro do Rio. - Ela estava quase rindo.
- Existe um templo no Centro e eu nunca soube?
- Hahaha, você com certeza conhece, mas talvez com outro nome.
- Qual?
- Igreja Nossa Senhora da Candelária.


E foi lá, alguns meses depois que eu me ordenei padre.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Ver010



A conversa foi longa. Catharina me disse que, após a ultima vez que nos falamos na casa dela, havia estado no plano superior resolvendo o que deveria fazer no decorrer de sua missão. 

- Fui até o conselho da Ordem para que me guiassem depois que você decidiu que não queria mais se ordenar. Foi quando Joanna, uma das mais experientes Fravashi me disse minha missão nem tinha começado e eu já havia falhado...ela me contou o que aconteceu. Pablo, - Catharina agora tinha os olhos mareados - peço perdão por tudo isso.
- Catharina, não é por sua causa que meu pai foi morto.
- Sim, foi. Eu trouxe todo esse mal pra sua vida. Se eu tivesse feito meu trabalho direito nada disso teria acontecido. - disse ela com aquele jeito de sempre querer carregar o mundo nas  costas. Quando voltou a falar já estava recomposta e eu via alguma obstinação no seu olhar.

- Quero que você saiba que, mesmo desobedecendo ordens, eu estou empenhada a fazer Malta pagar pelo que fez.
- Malta?
- Sim, o assassino do seu pai.
- Não, Catharina...quem..- ainda era difícil falar - quem fez isso se chamava Lucas.
- Lucas Malta. O desgraçado não fez nem questão de disfarçar os rastros.
- Você conhece ele?!
- Infelizmente, conheci Malta alguns séculos atrás. Ele foi um dos primeiros upyres que eu encontrei aqui no plano intermediário.
- Quer dizer que ele é como aquela menina Carolina?!

Catharina suspirou antes de responder e eu lembro ter percebido alguma tristeza em seu rosto.

- Sim, Pablo. Eles têm muito em comum. Mas não acho necessário falarmos sobre isso agora. Eu vim para te ajudar, não para te lembrar do...enfim do que aconteceu. Você se incomoda de eu ficar alguns dias? Apesar de estarmos em estado de suspensão ainda me sinto responsável por você.

Sei que disse que o que eu mais desejava era continuar na minha rotina de viver dias sem motivo mas Catharina tinha essa coisa de pegar meus demônios e deixá-los longe. Mesmo hoje em dia, meus dias mais alegres tem sido pontuados por visitas dela. 

Disse que adoraria a companhia e quase que em concomitante percebi que a casa estava um lixo e não havia nada para comer. Você começa a reparar mais nas coisas quando passa uns dias morando com um anjo. Claro que ela mentiu falando que não tinha reparado em nada daquilo, Catharina é gentil demais para reclamar de coisas como um depósito de garrafas de cerveja vazias ao pé da poltrona ou um cobertor com restos de salgadinhos. Comecei a arrumar tudo que estava fora do lugar no meu campo de visão quando Catharina disse que cuidava daquilo e sugeriu que eu fosse à rua comprar algo decente para jantarmos mais tarde.

- Mas Catharina, - eu disse relutante - minha opinião quanto ao sacerdócio não mudou, tudo bem?
- Não quero que você pense nisso agora, Pablo. - E me sorriu um sorriso doce.

Troquei de roupa e fui, ainda não tinha conhecido o porteiro novo e nem conheci. Passei por ele e só três quarteirões depois eu percebi que aquela era a primeira vez que eu saía de casa em uma semana.

Copacabana é um bairro com muitos bares de rua e no caminho para o mercado eu passei por alguns deles. Era por volta de duas da tarde, mas já tinha bastante gente com copos na mão. Estava distraído e não reparei um senhorzinho de aspecto humilde que estava num desses botecos até esbarrar nele. Me desculpei e então percebi que ele estava sozinho numa mesa para quatro pessoas.

- Me desculpe, senhor. Eu ando meio distraído mesmo.
- Tudo bem, meu filho…você passou por muita coisa ultimamente

Eu, que estava já passando por ele parei e voltei.

- Perdão?
- É, garoto. Meus olhos têm visto muita coisa por muito tempo. Eu reconheço um homem que precisa de uma cerveja quando vejo um. - e me estendeu a mão - Meu nome é Gustavo, porque você não me ajuda a acabar com essa garrafa aqui, ein?

Eu ia negar, mas ao apertar a mão estendida do velho a idéia me pareceu ótima.

- Com você disse que se chama mesmo?
- Eu não disse. O nome é Pablo.
- Pablo, né? - disse enquanto enchia meu copo - Prazer, Pablo. Sabe o que eu acho? As pessoas pensam demais. 
- E eu acho que o senhor já está aqui no bar ha algum tempo, né?
- Não, é sério. Você já parou pra pensar em quantas coisas as pessoas deixam de fazer, coisas que ela realmente querem fazer digo, só porque pensam demais nas conseqüências? Se você for parar pra ponderar toda e qualquer escolha da sua vida sempre vai achar possibilidades daquilo acabar mal e nunca vai fazer nada. Já imaginou quantos destinos seriam mudados se as pessoas fizessem o que elas realmente têm vontade de fazer?
- Não, senhor. Eu acho que as pessoas sempre fazem o que querem fazer.
- Tem certeza? Você, por exemplo, guri. Sabe o que quer fazer, no entanto está negando seu desejo. Não é verdade?

Não respondi, mas gelei com aquele comentário. Acontece que, nessa semana toda que fiquei isolado em casa eu pensei bastante nas minhas possibilidades. Confesso que o sentimento de vingança não é o mais puro ou nobre, mas era ele que fazia a vontade de começar o treinamento que Catharina havia proposto para mim. Eu queria força, queria poder para me vingar do assassino do meu pai. Não contei isso para ninguém, e estava negando este desejo até para mim mesmo. Ou pelo menos tentando. 

Terminei meu copo. Me despedi e fui caminhando de volta em direção ao mercado. Depois de dar cinco passos ouço Gustavo falar:

- Bela tatuagem no pulso, garoto.

Fingi que não ouvi. Eu não poderia saber ainda, mas tinha acabado de ter um encontro com um Biemo. Um tipo ordinário de demônio que desperta os desejos mundanos dos homens. Não costumam ser muito perigosos, apesar de poderem influenciar bastante uma mente fraca. Esse tipo de criatura consegue enxergar nossas maiores vontades e nos incentivar a seguí-las.

Até hoje não consegui decidir se isso é bom ou não. 

O ponto é que eu saí daquele bar convencido de que sim, eu me ordenaria padre. E também acabaria com a raça daquele filho da puta.


+++

No jantar contei à Catharina que tinha mudado de idéia (mas não contei o motivo). Ela se espantou, mas não contrariou a minha decisão. Ao contrário, se mostrou bem animada. Mal acabou de comer e já começou os preparativos que precisavam ser tomados. Disse que não queria me deixar sozinho, ainda mais agora, mas eu a tinha pego desprevenida ela, e ela teria algum trabalho por causa disso. O relógio estava quase marcando 23h quando ela se despediu de mim com a promessa de que no próximo dia estaria de volta antes mesmo do almoço para começarmos. 

Eu terminei de arrumar a sala e percebi que eu estava bastante cansado. Meu quarto continuava implorando por uma faxina mas eu ignorei e tombei direto na minha cama.


+++

Toc toc.
Toc toc.

Acordei ainda sonolento, mas não levantei.

Toc toc.

Insistem. Olho para o relógio, 2am. Quem estaria batendo na minha porta tão tarde? Finalmente levanto e vou me encaminhando para fora do quarto quando batem mais uma vez e eu percebo que o barulho não vem da porta, mas sim de dentro do quarto.

Ela estava na minha janela. Como a janela estava aberta, sua mão tocava na borda que ela fazia em minha parede e não no vidro. Mesmo depois de tê-la visto, ela tocou duas vezes novamente.

- Vai me convidar para entrar? - Sua voz fazia meu coração acelerar, seus olhos me engoliam. Dessa vez, os cabelos ruivos estavam presos numa trança impecavelmente feita que caía ao lado direito do seu rosto. Usava uma camiseta preta e uma saia cinza que estava quase curta demais para ela. Quase.

Respirei.

- O que você está fazendo aqui?! O que…como você descobriu onde eu moro?!
- Quantas perguntas. Calma, não precisa esconder sua mão, eu não vou te atacar. Não agora. Eu vim para te alertar, quem me disse onde você mora foi Máira. É claro que você lembra dela. Então, vamos ter essa conversa através da janela ou você vai me deixar entrar?
- Vem, entra - eu disse, não foi a decisão mais inteligente mas eu nunca consegui pensar direito perto dela - como se você precisasse da minha permissão, né?

Precisava, mas eu ainda não sabia. Ela só riu fingindo timidez, imitou aquele jeito de dama cumprimentar usando o vestido ironicamente e entrou.

- Sabe, nenhum garoto demorou tanto para me deixar entrar no quarto dele. - ela agora olhava para a bagunça do meu quarto e minha vergonha passou a me incomodar mais que o medo dela.
- Talvez eu seja mais esperto que a maioria.
- Talvez não.
- O que você quer, Carolina? - Eu tentava soar seguro e duro, mas não conseguia.
- É muito fofo você aí bancando o corajoso, sabia disso? Eu poderia passar a noite toda me divertindo com você aí todo nervoso mas vou direto ao ponto. Você não pode seguir com isso, garoto.
- Com o que?
- Essa loucura, que Catharina está te convencendo a fazer. Olha, - e foi a primeira vez na conversa que ela não estava sendo sarcástica ou irônica - eu soube do que aconteceu com seu pai uns dias atrás e eu sei que foi duro. Mas a não ser que você queira que aconteça a mesma coisa com você desista disso, garoto.
- Muito conveniente para você falar isso, upyr.

Ao me ouvir pronunciar este nome ela veio rapidamente até mim, quando notei ela já estava na minha frente. Nariz no meu nariz. Carolina agarrou a minha nuca e foi se aproximando devagar. Parou com os lábios na minha orelha esquerda e disse sussurrando:

- Se eu quisesse, voce já estaria morto agora Pablo.

E me empurrou de volta na minha cama.

- Eu vim aqui avisar você para parar com isso porque existem criaturas fortes, mais fortes que eu ou Máira que já sabem da sua existência e dos seus…dons.
- Como Lucas Malta?

Sem querer, eu a desmontei. Ela, que estava imponente se diminuiu ao ouvir o nome do assassino. Os olhos baixaram e fitaram o chão por segundos breves. Quando retornaram para mim já tinham recobrado a intenção de costume.

- Sim, como ele. O recado está dado, Pablo. Agora faça o que quiser.

 Ela estava firme, mas a sua voz não. Foi se encaminhando de volta para a minha janela e eu que não queria de jeito nenhum a ver indo embora chamei seu nome uma última vez naquela noite.

- Carolina, espera! - ela se deteve - Porque você não acabou comigo naquela noite no Arpoador?
- Bom,- ela falou depois de pensar um pouco - acho que você teve sorte.

Ela sorriu para mim antes de ir e eu desisti de limpar o meu quarto depois disso. 

Ele tinha o perfume dela.




sábado, 11 de outubro de 2014

Ver009



Como eu disse, um dos motivos pelos quais Catharina me procurou em primeiro lugar, foi a minha capacidade de sentir, quase fisicamente, sempre que há a influencia de outros seres sobre uma vida humana. Você pode chamar de intuição, se quiser. Após ter me ordenado passei a aprender com administrar melhor a perturbação e a inquietude que me dá sempre que passo por uma situação dessas, mas ainda a sinto. É como se um ruído constante de unhas sendo friccionadas contra um quadro negro estivesse em crescente no seu cérebro e você não pudesse desligar. 

A porta não se abriu, mesmo meu dedo tendo ido a campainha repetidas vezes. Resolvi descer e falar com o Danilo, o porteiro do prédio, perguntar se ele tinha visto meu pai sair. 

- Seu Luis não saiu não. Ele chegou ontem de noite de um vôo pra fora, eu acho. Olha, - e olhou para a câmera num monitor que tinha em sua mesa - o carro está até na garagem.
- Eu pensei que ele estaria em casa também. E esqueci a chave na casa de uma amiga e estou tocando mas parece que não tem ninguém em casa para abrir pra mim. - fui me encaminhando para subir as escadas de novo - Bom, obrigado Danilo. Acho que vou tentar de novo.

Então ele disse algo que caiu sobre mim como um balde de água fria.

- Sabe, lembrei agora que seu primo passou aqui ontem bem tarde e eu também não o vi sair.
- Meu primo? - eu disse me voltando para ele.
- É...um alto, com cabelos e olhos bem escuros. Como era mesmo o nome dele? AH, Lucas! Isso mesmo, seu primo Lucas passou aqui ontem, muito simpático por sinal, mas eu estranhei a hora, já era bem tarde. Eu estava cochilando um pouco, não vamos contar isso para a dona Barbara ok? - Dona Barbara era a síndica do condomínio - Mas eu estava cochilando quando ele tocou ali nas portas de metal e acabou me acordando com um susto. Muito educado seu primo, mesmo após eu abrir a porta ele ficou de pé lá fora, só entrou quando eu falei que ele poderia subir. O tipo de coisa que a gente não vê mais hoje em dia, não é mesmo? Como ele chegou bem tarde deve ter ficado de papo com seu pai, vai ver os dois ainda estão dormindo.
- É...talvez.
- De qualquer jeito - abriu um armarinho que tinha a sua esquerda - toma aqui uma chave reserva, pelo menos você não vai ficar do lado de fora esperando.
- Ah, obrigado.

Me despedi dele com a chave na mão, mas eu já não estava com nenhuma vontade de entrar em casa. Agora eu suava, cada passo dado me rendia um pensamento novo que tentava explicar o que poderia ter acontecido na noite anterior. O mau pressentimento havia se transmutado em preocupação.

Eu nunca tive primos.

A porta do meu apartamento, que me acostumei a atravessar sem me importar muito por anos, agora era um objeto de contemplação. A examinei, pela primeira vez prestei atenção na porta. Nunca havia reparado  as três lascas que ela tem na base, ou mesmo que a maçaneta está oxidada. Ali, de pé olhando para a porta eu tive medo. Não de algo ou de alguém em específico, eu tive medo de estar certo. E, infelizmente eu estava.

Era um dia de sol mas, ao entrar no apartamento, tive a sensação de um frio cortante. Chamei pelo meu pai que não respondeu. Comecei a andar pela casa devagar, não sabia o motivo de tanta cautela somente sentia que deveria te-la. Percebi que o frio que eu estava sentindo não era de mesma intensidade em todos os pontos da casa, conforme mais eu me aproximava do interior do apartamento, maior era a sensação.

No meio do pequeno corredor que dava para os quartos ficava o banheiro. Ao tocar sua maçaneta minha mão sentiu todo o calor sugado de si. Recuei. Não sei dizer quanto tempo fiquei parado juntando cada caco de coragem que eu tinha para tomar uma iniciativa. Quando finalmente resolvi agir, percebi que aquela sensação ruim, os arranhões no quadro negro haviam parado. Talvez, no meu subconsciente, eu já soubesse.

Não foi frio o que eu senti no meu apartamento naquele dia, foi morte. Infelizmente com o passar dos anos fiquei mais habituado do que queria com seu toque gelado.

Talvez eu não consiga descrever com toda a precisão o horror que vi naquele banheiro. O chuveiro estava aberto, não sei por quanto tempo, o corpo do meu pai desfalecido embaixo da agua que caía, havia marcas bem escuras em seu pulso e pescoço. Sua pele estava enrugada e muito pálida, os olhos abertos, olhando fixamente lugar algum. Não tentei controlar as lágrimas. Corri e abracei seu corpo, tentei animá-lo. Em vão.



+++

É uma sensação estranha quando se consegue sentir toda esperança morrendo.

Depois de todos os processos legais que eu precisei passar, e ir a delegacia mais vezes em uma semana do que eu iria o resto da vida, foi aberto um inquérito investigativo sobre o assassinato do meu pai, que eu já sabia que não daria em nada. O Danilo, o porteiro, foi demitido e estava sendo investigado como cúmplice. Pobre homem.

O apartamento não era muito grande, mas seus cômodos pareciam enormes agora que eu estava sozinho em casa. Meus dias seguiam um roteiro repetitivo entre meu sofá e minha cama. Eu comia pouco, saía de casa menos ainda. Por não ter nenhum familiar próximo, não precisava me preocupar com visitas que eu não queria receber.

Mesmo assim a campainha tocou. Não estava com vontade de atender, mas vendo que a minha visita não ia desistir, resolvi levantar. Estava com um discurso preparado para afugentar quem quer que fosse na ponta da língua, mas assim que eu abri a porta dois braços me envolveram muito forte, nem tive tempo de reagir.

Catharina tinha aprendido a abraçar.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Ver008



Olho para a minha mesa agora e não posso deixar de rir. Naquele dia eu tinha prometido à Catharina que ia esquecer o que aconteceu no Arpoador e afastar os pensamentos de Carolina o máximo que eu pudesse. Neste momento, além da máquina de escrever, uma caneca com a asa lascada e uma garrafa de whisky barato, existem mais de 20 páginas. Todas escritas sobre Carolina.

Levo meus dedos até as cicatrizes que tenho no pescoço. Elas não doem mais, mas criei o habito de tocá-las sempre que a falta dela fica insuportável. Por favor entenda, escrever estes relatos não tem sido a tarefa mais fácil para mim. Pontuar todos estes fatos novamente me faz ver todos os marcos do percurso onde eu poderia ter evitado o que aconteceu e, acredite, eu daria qualquer coisa para mudar o final.

Mas eu estou divagando. Vamos voltar.

Não percebi o quanto eu estava cansado até deitar na cama improvisada que Catharina havia montado para mim. E não tome “improvisada” como algo negativo, apesar de ter sido preparada sem muito planejamento minha cama estava bastante confortável. Dormi um sono profundo, mas inquieto. Meu subconsciente não respeitou a promessa que meu consciente fiz e eu sonhei com ela naquela noite. Como disse, o sonho foi inquieto, e inquieto não quer dizer que ruim. Fiquei decepcionado ao acordar com a luz no meu rosto.

Eu não tinha muitos compromissos aos 18 anos. Não cursava faculdade e não trabalhava, apenas estudava para prestar as provas de vestibular, o que deixava meus dias bastante não regrados. Apesar de ser uma segunda-feira, acordei no dia seguinte e não tinha nenhum compromisso minimamente importante. Catharina já estava de pé quando cheguei na cozinha e me perguntei se ela realmente havia dormido. Ela estava agitada como sempre fica perto de ocasiões importantes.

- Pablo, hoje teremos um dia cheio. Melhor você tomar café da manhã depressa.
- Teremos?! Não recebi o memorando.
- Sim, em alguns momentos virão dois Ofanins aqui para recrutá-lo.
- Wow! Calma! Do que voce tá falando?
- Estou falando do início do seu treinamento. Não posso deixar algo como o que houve ontem se repetir e resolvi antecipar seu recrutamento, não serei melhor que o seu instrutor nesse momento. Hoje você vai ser recrutado e vamos dar início...
- MAS NEM FODENDO! - ao ouvir isso, ela recuou de surpresa - Olha, eu agradeço por tudo que você tem feito por mim, já te considero até minha amiga. Mas olha aqui, em nenhum momento eu concordei com isso tudo e…

A campainha tocou.

Catharina se levantou nervosa, ainda um pouco em choque pelo modo com o qual eu havia reagido. Me olhou de um jeito distante e frio e me senti mal pelo que fiz. Usava uma camiseta branca e um short azul marinho que deixava suas pernas a mostra e dava pra ver que não era o tipo de veste que ela estava acostumada. Catharina estava bastante desconfortável.

Atendeu a porta e duas figuras imponentes entraram no pequeno apartamento sem pedir licença. Um era negro e forte, usava uma camisa social e sapatos bem engraxados, na mao trazia uma pasta. O segundo tinha cabelos escuros presos num rabo de cavalo e usava uma camiseta com um símbolo que eu ainda não conhecia.

- Então Catharina…é esse o mortal?
- Sim, sim Merlon, este é Pablo Pazos. Eu tenho ordens para protege-lo até…
- Sabemos quais eram suas ordens, Fravashi. - disse o de rabo de cavalo com rispidez - E sabemos também que não precisaríamos estar aqui se você tivesse as cumprido corretamente. Agora por favor nos deixe trabalhar. Você, mortal - se virando para mim - chegue mais perto.

Não posso negar que a presença daqueles dois me intimidava. Era diferente com Catharina. Eu sempre soube que ela tinha muito mais força que eu, mas nunca me preocupei com isso. Essa situação era outra coisa. Quando ela viu que eu não me movi veio para o meu lado e me forçou a ir até eles.

- Pablo, estes são Gathen e Merlon. Como eu disse, são Ofanins que vão cuidar do seu recrutamento.
- Não sei como ainda querem seu recrutamento, garoto. - Gathen foi com os olhos de mim para Catharina - Sua amiga ali realmente acredita em você, ela passou bastante tempo convencendo o Conselho de que você valia a pena.
- Vamos logo com isso - suspirou Merlon que parecia distante e entediado - Precisamos de alguns dados de você imediatamente.
- Esperem um pouco - finalmente consegui falar - Antes de vocês chegarem eu estava exatamente falando para Catharina que não.
- Não? - eles disseram juntos.
- Exatamente. Desculpa, mas esses últimos dias tem sido uma verdadeira loucura pra mim e eu só quero esquecer de tudo isso, - o que não era exatamente verdade, tinha uma coisa que eu não queria (e nem iria) esquecer - não vou fazer treinamento nenhum.

Gathen pareceu se inflamar de ódio. Durante os anos seguintes eu e ele teríamos muitos desentendimentos, até mesmo uma luta. Este Ofanim é uma das criaturas mais desprezíveis que eu já conheci.

- Como voce ousa dizer isso, terreno?! Yahweh em toda sua bondade está aqui te dando uma oportunidade para se aproximar de nós, criaturas superiores e você está virando as costas! Você não pode fazer isso!
- Na verdade, ele pode sim - Catharina intercedeu por mim - eles tem algo que não temos, Gathen.
- Eles? Catharina, você tem passado muito tempo neste plano. Essas criaturas não tem nada que nós não tenhamos, eles são…
- Sim, eles tem. - disse Merlon que agora me olhava diretamente - Ele está fazendo uso do livre-arbítrio. Não há nada que possamos fazer. Vamos, Gathen, não temos mais função aqui.

Continuou olhando para mim como se não acreditasse na minha atitude por alguns segundos, mas logo saiu. Nenhum dos dois se despediu. Imediatamente depois que eles foram a tensão no ar se desfez. De novo éramos só eu e Catharina, a quem eu tinha acertado em considerar uma amiga. 

- Você é inacreditável. - ela me disse - Acabou de enfrentar dois Ofanins como se eles não fossem nada digno de registro.
- Bom, eles não poderiam ser muito diferentes de você.
- Pablo, eles são celestes de primeira ordem. São responsáveis por manter a autoridade divina e símbolos da humildade. Há quem diga que os Ofanins são a balança do mundo. Eu nem sei te precisar o quão poderosos eles são.
- Humildade? Por favor, você viu como aquele babaca nos tratou?
- Nem sempre nós entendemos as atitudes de seres superiores.
- Eu não acredito em castas, Catharina. Eu acredito em caráter, e você não deveria prestar contas para aquele cara, Ofanim ou não.

Um silêncio inesperado tomou conta da cozinha.

- O que você vai fazer agora? - Ela me perguntou meio sem jeito depois de um tempo.
- Bom, vou pra casa. Você cuidou muito bem de mim, meus ferimentos já quase não aparecem mais. Quero ver o meu pai, pensar que pudesse ter acontecido alguma coisa com ele me deixou muito perturbado. Ele é minha única família.
- Entendo.
- Você vai continuar por aqui? Quer dizer…eu ainda vou te ver? - perguntei temendo uma despedida.
- Bom, minha missão ainda não terminou. Ainda estou encarregada de proteger você até que se ordene. Vou precisar consultar ordens para saber o que vou fazer em seguida mas enquanto isso.. - tomou meu pulso, o mesmo que Carolina havia tocado na noite anterior, e passou o dedo por ele. Pouco a pouco, como uma tatuagem, foi se formando um desenho peculiar, um homem de perfil, com uma argola na mão esquerda envolto por duas grandes asas. - este é o símbolo dos Fravashi, vai ficar com você até minha missão acabar. Não se preocupe em esconder o pulso, só você pode vê-lo. Sempre que quiser entrar em contato comigo é só passar o dedo por ele.
- Obrigado! Sabe, não queria perder contato com voce. - disse um pouco constrangido, mas logo me despedi para evitar um momento embaraçoso -  Agora preciso ir, meu pai já deve estar preocupado.

Num impulso, sem muito pensar eu a abracei. Depois eu soube que Catharina nunca havia ganho um abraço. Fui para casa e só no meio do caminho percebi que havia deixado minhas chaves no apartamento de Catharina mas resolvi não voltar, poderia pegá-las depois. Meu foco era chegar em casa. Meu porteiro abriu o portão quando pedi e, ao subir para o meu apartamento toquei na porta.

Uma vez.
Duas.
Na terceira vez tentei a campainha.

Quando pilotos retornam de um voo, ganham dois dias de folga ao volta. Meu pai deveria estar e estar e, infelizmente estava em casa.

Mas ele não atendeu a porta.