quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Ver007



Ela só podia estar brincando.

Minha cabeça se pôs a tentar encontrar algum argumento para negar a afirmação que Catharina tinha acabado de fazer. Não conseguiu. Mas a idéia daquela garota ser uma vampira simplesmente não era aceitável. Catharina me examinava, confuso, tentar formular alguma frase que não saiu.

Depois de um tempo ela sorriu curiosa, a agressividade já havia passado. Ao terminar o curativo na minha mão esquerda ela me disse:

- Por que tanta surpresa?
- Acho que você não entendeu bem a minha pergunta - expliquei - o que eu quis dizer foi que essa suposta casta de demônios que você chama de Upyr tem muito em comum com os vampiros dos livros e histórias de terror.
- Não, eu entendi perfeitamente, Pablo. Acontece que “Upyr”, “wapierz”, “vampiro”…são todos nomes da mesma classe de infernais. Criaturas que são tão antigas quanto a própria criação dos mortais. Por estarem neste plano com os mortais há tanto tempo que julgo ser normal que muitos de vocês saibam, ou ao menos suspeitem, da existência deles. O que leva de novo a minha pergunta: por que a surpresa?
- Catharina, isso não faz sentido! - eu me recusava a acreditar - Quer dizer, eu a senti. Senti seu toque...
- O toque frio de cadáver, a pele branca como gesso. Olhos em fogo e mãos inexplicavelmente fortes visando única e exclusivamente a sua mão, que estava sangrando. Parece com algum vampiro dos seus livros?

Não respondi.

- Os mortais costumam saber muito pouco sobre o plano superior, Pablo. Os demônios Upyres são uma exceção. 

Ela fechou a caixa de curativos e foi guardá-la. Pus a camisa de novo e fui em direção a pequena varanda que havia no apartamento de Catharina. Ainda sentia o perfume dela em mim. Não contei para Catharina mas meu único pensamento desde que a vi indo embora era encontrar com Carolina de novo.

- Eu poderia jurar que ela não sai da sua cabeça desde a praia. - não tinha visto Catharina voltar, mas ela estava do meu lado. Trazia consigo um livro bem antigo que, não fosse seu toque delicado, se desmancharia nas mãos.
- E ler mentes também é uma habilidade dos anjos da guarda, é?
- Alguns celestes conseguem tem essa habilidade - ela disse com um sorriso triste - mas não os Fravashi. Eu trabalho com corações como o seu ha séculos Pablo, e sei os efeitos que ela pode causar neles. Sei que voce está atraído fisicamente por ela, mas esse é o menor dos problemas. - seu tom era severo - Você também está ansioso, inquieto para estar na presença dela, novamente. Pablo, ela mataria você se tivesse a chance.
- Não me senti em perigo com aquela garota, Catharina.
- Pare de chama-lá de “garota", ela é um demônio. Uma das criaturas mais baixas que já desceu até aqui. Carolina LeBion é uma serpente e eu trouxe este livro para te provar isso.

Ela abriu o livro, as páginas vinham escritas numa língua que eu nunca vi.

- “No capítulo primeiro do livro primeiro, - ela começou-  no começo de tudo. No Genesis, versículo 27 se le: ‘Yahweh criou o homem à sua imagem e semelhança, criou o homem e a mulher.’”
- Catharina, você realmente vai voltar até Adão e Eva para me explicar alguma coisa sobre Carolina?
- Fique calmo e escute, por favor. - continuou - “Algo peculiar é visto logo no capítulo segundo, versículo 18 onde se lê Yahweh dizendo para Adão: ‘Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada’. Mas é apenas no versículo de número 22 que Eva é criada: ‘Da costela que havia tomado do homem, Yahweh em toda Sua compaixão, criou uma mulher e levou-a para junto do homem’”

Ela levantou os olhos do livro. A expressão para mim era reticente. Senti como se tivessem me contado uma piada que eu não entendi. Não conseguia ver ligação nenhuma entre esses fatos e Carolina.

- Compreende? - Ela me perguntou como quem incentiva uma criança a dar os primeiros passos sozinha.
- Desculpe, mas não. Quer dizer, eu já sabia como Eva havia sido criada mas…
- Mais atenção, Pablo! O que acabei de ler para você são registros que mostram a existência de alguém antes de Eva, alguém que foi cortado dos registros bíblicos. Houve uma primeira esposa de Adão que Deus fez questão de esquecer. - Suspirou e seguiu com a leitura -
“No versículo seguinte do mesmo livro é possível ver o homem dizer com satisfação e em agradecimento a Yahweh: ‘Esta, sim, é o osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada!’”
- “Esta sim”…
- Exatamente, Pablo. "A primeira”, como gosta de ser chamada, foi criada ao mesmo tempo, e da mesma substancia que Adão, o barro. Foi feita com irresistível beleza e afiado intelecto. Geniosa e lúcida acima de todas as coisas. Por não aceitar a posição que Adão sempre tendia a tomar como ser superior, ela causava brigas seculares com ele nos Jardins do Éden. De luxúria insaciável, a maior das discussões se deu quando ela se recusou a ficar por baixo de Adão durante o ato da relação. “Porque me devo deitar-me embaixo de ti? Porque devo abrir-me sob teu corpo? Porque ser dominada por ti?” dizia ela, e ao convocar o próprio Criador e contar a ele suas indignações teve apenas silencio como resposta. No outro dia, “a primeira” fugiu do paraíso chegando ao profano Mar Vermelho. 

Esperei que ela continuasse, mas Catharina não voltou a falar. Estava perdida em pensamentos, como se tivesse esquecido que estava contando aquilo para mim. Precisei tocar seu braço para acordá-la.

- Desculpe - ela me disse - este assunto trás memórias delicadas. O que eu queria que voce entendesse é que Carolina, por mais sedutora que pareça, é extremamente traiçoeira. Se tivermos sorte, vamos ficar um bom tempo sem vê-la de novo.
- O que aconteceu? - a curiosidade me corroía - Depois que ela fugiu do Paraíso, quer dizer.

Catharina suspirou.

- Adão achou que havia sido apenas mais uma discussão como as tantas que tiveram anteriormente. Demorou a perceber que sua esposa não voltaria. Ao atentar para tal fato pediu a Yahweh que a trouxesse de volta. Ele enviou três Virtudes para buscar "a primeira" no mar profano.
- Virtudes?
- Perdão, deixe-me explicar melhor. “Virtude” é o nome de outra casta de seres celestes. Têm extrema pureza e força e são responsáveis pelo curso de grandes eventos, como foi o caso. O Criador recorre as Virtudes quando a missão é realmente importante.
- Então eles são como você?
- Nossas funções são bem diferentes, - Catharina disse com humildade - os níveis de poder nem se comparam. Virtudes quase nunca se misturam com os mortais ou descem para esse plano. Eu mesma vi poucos deles na minha existência. Mas voltando, os três escolhidos para essa missão se chamavam Sanvi, Sansavi e Samangelaf e eles partiram do Éden com ordens claras: era para tentarem trazer a mulher de volta mas a maior lei universal ainda estava em vigor.
- Lei universal?
- Sim, o livre-arbítrio, Pablo. Ela poderia escolher se voltaria ou não. Ao chegar lá, mesmo os anjos ficaram encantados com tanta beleza. Insistiram para ela voltar. Sansavi chegou a tocar seus cabelos vermelhos, não há outro registro de uma Virtude tocando um mortal. Apesar dos apelos ela se manteve orgulhosa de sua decisão. “A primeira” não voltaria e forte, disse que assumiria a responsabilidade pela sua decisão.
- Eu tenho uma pergunta.
- Pode dizer.
- Porque você está evitando dizer o nome dela?
- Porque, Pablo, o castigo de Yahweh para ela foi severo. Após a volta das Virtudes, Ele pronunciou o castigo que ela levaria por negar o Paraíso. Não era mais uma mulher, se tornaria um demônio, um dos primeiros. Uma imortalidade proibida de andar sob o sol, ela estava condenada a se alimentar apenas de sangue, nunca mais seria bem-vinda em ambientes sagrados e sofreria sempre que estivesse na presença de qualquer objeto tocado pelo bem. Seu nome era Lilith.

Houve um bom tempo de silêncio entre nós. Agora sim eu via de onde os vampiros da lenda tinham realmente saído e percebia o perigo que corri horas atras, praticamente me dando de bom grado para aquela figura que me encantou tão facilmente. Foi Catharina quem voltou a falar.

- Nossa conversa me fez lembrar de outro nome que é atribuído para a corja de criaturas como Carolina.
- Qual?
- Filhos de Lilith.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Ver006



A janela grita quando eu a abro com um só puxão. Os poucos metros quadrados do meu apartamento ficaram mais quentes com as lembranças que pus nas últimas páginas. Sinto a chuva que ainda cai molhar a minha pele, também estávamos molhados, eu e ela, naquela noite.

Minha cabeça bateu com força na pedra quando Carolina me derrubou. Não estava treinado para ver seus movimentos, se bem que mesmo após me ordenar, ainda tinha dificuldades de acompanha-la. Ao abrir meus olhos vi Carolina já sobre mim, uma mão no meu pescoço, outra na minha mão cortada. 

Seu toque é difícil de descrever. Frio, com certeza, mas não desconfortável. Minha mão ferida que estava latejante, pareceu se acalmar ao seu sentir a dela. Não havia mais dor. Minha pele gostava da pele dela. 

Ela me olhou, e seus olhos que antes eram profundos e escuros, estavam agora pintados em âmbar, ainda mais envolventes do que antes. Mas, sem dúvida, o que mais me chamava a atenção em seu rosto eram os dentes. Quando ela sorriu para mim ao longe achei ter visto através dos meus óculos já empenados, caninos desproporcionais quase tocando seus lábios inferiores. Agora, com ela tão perto de mim, percebi que tinha visto corretamente.

Com os olhos em mim ela me engolia, e sabia disso. Eu estava sem ação e o pior de tudo é que não me incomodava, na verdade eu estava gostando daquilo. Sentir seu perfume, seus olhos nos meus, seu corpo no meu. Eu estava excitado.

Sua mão esquerda deixou minha garganta quando ela estava convencia de que eu já não ofereceria resistência e foi encontrar a direita junto ao meu pulso. Ela o trouxe para si com tanta velocidade que não senti meu próprio braço se movendo. Num movimento preciso e delicado minha mão estava de frente ao seu rosto, os olhos dela ainda não haviam saído dos meus.

Catharina recuperou as forças a tempo de ver a cena. De onde eu estava, apenas a escutei gritando:

- CAROLINA, NAO!

Ela ouviu, mas ignorou. Sua expressão era de satisfação, como se tivesse conseguido algo que estava esperando por muito tempo. Pela primeira vez se voltou para minha mão que ainda estava aberta. Do corte, que foi profundo, ainda escorria algum sangue, No primeiro momento, ela se encantou com aquele vermelho mas, no espaço de segundos eu vi algo diferente da superioridade que seu rosto irradiava. Ela aproximou minha um pouco mais do rosto e teve certeza de algo. Me olhou como se não pudesse acreditar num fato que lhe contavam.

Ainda hoje eu consigo lembrar da sua voz nos meus ouvidos. Forte, como ela, mas envolvente e sedutora, como ela também. Na maioria das vezes que a ouvi, era cheia de confiança e certo sarcasmo, mas nao naquela vez.

Carolina estava incrédula com algo que via em mim.

- Você…mas não pode ser…Como foi que você…?

As perguntas pareciam mais para si mesma do que para mim. Soltou minha mão ainda perplexa e saiu de cima de mim. Dei um longo suspiro e percebi que não estava respirando bem todo este tempo. E difícil tirar os olhos dela, levantei rápido apesar do corpo dolorido e tentei segui-la. Ela não corria, mas suas passadas, precisas como as de uma bailarina, já davam a ela boa vantagem sobre mim.

Catharina que já tinha levantado segurou meu pulso e me impediu de seguir Carolina. Suas pernas brancas estavam decididas, seu rosto não e, ao despertar Máira, olhou uma última vez para mim perplexa. Foi como se um vento as tivesse levado. Uma batida de coração depois e já não estavam mais ali.

Um tapa me despertou. Pode fugir um pouco da imagem barroca que a maioria dos mortais tem de anjos mas sim, eles têm variações de emoção. Os dedos de Catharina marcaram meu rosto e arrancaram a imagem do rosto daquela menina dos meus pensamentos.

- Inconsequente! Irresponsável! - Seu dedo em riste tremendo a frente do meu rosto - COMO você fez isso?! Faz ideia do perigo que você correu?! Duas, DUAS infernais e você sozinho, sem treinamento, sem armas.

Mostrei a minha faca e ela me fulminou com os olhos.

- É inacreditável a sua sorte! Você escapou duas vezes.
- Talvez meu anjo da guarda seja forte, haha - Tentei descontrair.
- Não vejo a graça, Pablo. Vamos para casa. - Fui em direção a Paula Freitas mas logo Catharina me alertou que não pegaria aquela rua essa noite - Vamos para a MINHA casa. Avise seu pai que você não vai dormir em casa hoje, precisamos cuidar disso.

“Isso” era eu. Só então tomei consciência de que estava com arranhões, sangramentos e feridas em varias partes do corpo. Fiz como ela mandou e liguei pra casa, meu pai já havia voltado da Argentina e estranhou a felicidade que eu passava no telefone ao ouvir a voz dele.

- Então você não vai dormir em casa hoje, né?
- Não, pai. Hoje vou ficar na casa de uma….amiga.
- Aaah, amiga. Sei…olha, juízo ein, filhão.
- Ok, pai. Desligando.

- Pronto - disse para Catharina - Para onde vamos?


+++

Não era grande, mas acho que nunca vi um ambiente tão organizado na vida. Não se via sujeira ou nada fora do lugar. O apartamento, todo em tons de azul, tinha dois cômodos minimalistamente bem decorados. 

Ao chegarmos, ela puxou uma cadeira da pequena mesa de centro e fez sinal para eu sentar. Segui o conselho prontamente, não queria a irritar mais. A beleza de Carolina tinha voltado aos meus pensamentos quando Catharina estalou os dedos em frente aos meus olhos.

- Vamos, tire a camisa!
- Oi?! Como assim?!
- Pablo, precisamos cuidar dos seus machucados.
- Não, pode deixar que eu cuido deles sozinho.
- Do mesmo jeito que você cuidou de Máira e Catharina? Tire. A. Camisa.

Não tive argumentos, tirei. Ela abriu a caixa de curativos branca que tinha trazido e começou a tratar os arranhões. Não queria dar a impressão de que estava ansioso demais, pensando demais, mas precisava de detalhes sobre aquela ruiva. Tentei dizer no tom mais casual possível:

- Então, Máira não estava agindo sozinha né? Que coisa!
- Sim.
- Pois é! E aquela outra menina…como foi mesmo que você chamou ela?
- Carolina. Carolina LeBion.
- Isso, Carolina…vocês se conhecem ou o que?
- Conheci Carolina no inverno de 1883, numa missão que estava cumprindo em Paris.
- 1993, voce quis dizer, né?
- Não, 1885. - Falou com impaciência.
- Bom, mas isso não é possível! Ela teria que ter…
- Cento e vinte e três anos.

Espantado levantei da cadeira. Cento e vinte e três anos?! Ela parecia ser mais nova que eu! Poderia ter parado por ali com as perguntas, mas agora minha curiosidade estava mais sensível que nunca. Catharina percebeu isso, suspirou e disse:

- Pablo, Aabas não são os únicos tipos de demônios por aí. Como eu disse, existe um sem-numero deles e, apesar de poderosos, Aabas são uma das classes que menos causam problemas grandes. O caso de Carolina é diferente. Ela é uma Upyr. Temos sorte de eles não conseguirem resistir a luz do sol, mas de agora em diante vamos precisar de cuidados redobrados durante a noite. Upyres se alimentam de sangue humano, uma mordida daqueles dentes em você e ela nao soltaria até que voce tivesse seco como um graveto.

Pensei nos lábios vermelhos dela tocando minha pele, meu pescoço e isso me deu um estranho prazer. Depois de algum tempo voltei a falar.

- Engraçado, percebeu como as características dos Upyres batem direitinho com a lenda dos vampiros?

Catharina parou com os curativos, respirou fundo e falou.

- Lenda? Não Pablo. Carolina É uma vampira.

sábado, 13 de setembro de 2014

Ver005



Ainda desnorteado pelo bilhete de Máira me peguei pensando como tudo havia mudado de um dia para o outro. Aquela criatura tinha o meu pai que, desde a morte da minha mãe, era minha única família. Num ímpeto, ainda absorto em meus pensamentos, levantei e fui em direção a porta.

Tinha esquecido completamente que Catharina estava ali comigo até ela se por na minha frente e dizer coisas que eu não registrei. Me lembro de ter forçado passagem mas ela era extremamente forte.

- Catharina, o que você está fazendo?! Vamos agora atrás dela!
- Atrás dela, Pablo? Atrás dela AONDE? Não sabemos aonde ela está agora. Temos que ser pacientes. Vamos nos encontrar com ela, mas o que está me preocupa agora é aquele "Estamos".
- "Estamos"? Do que você ta falando? Catarina, a gente precis..
- Nós precisamos é manter a calma porque ela não está sozinha, não vê? "Estamos com seu pai". Máira é bem poderosa e já seria problema para nós dois. Ela está acompanhada e não sabemos de quem ou quantos. Entendo sua ansiedade Pablo, mas minha missão é proteger você. Não vou deixar você fazer nada precipitado.

Pela primeira vez desde que nos conhecemos Catharina me deu uma ordem explicita. Pensando agora, todas as  poucas vezes nas quais ela fez isso tinha razão. Desabei em uma cadeira da mesa da cozinha ainda tentando um chão que já não encontrava. Catharina me deu um copo d’agua, quando eu claramente precisava de algo mais forte, e saiu para se informar e buscar instruções de como deveríamos agir. Disse que voltaria antes das seis horas.

Já passava das duas quando eu finalmente tive animo para levantar da cadeira onde estive sentado. Caminhei em direção ao meu quarto mas antes entrei no quarto do meu pai sem perceber, quando dei por mim já estava ali, mexendo no armário dele onde achei o que estava procurando. Uma caixa de sapatos antiga aonde sabia que ele guardava antigas recordações de quando eu era criança. Em meio a boletins antigos, alguns desenhos, uma carta de dia dos pais com garranchos semi-alfabéticos eu encontrei uma fotografia. 

Na foto estava eu, com uns oito anos sorrindo com tudo que eu podia sentado nos ombros do meu pai. Uma bandeirinha na mao e uma camisa do Vasco maior que eu no corpo. Foi a primeira vez que meu pai me levou num jogo. Ao olhar para aquela foto eu consegui o foco que eu precisava para sair um pouco daquele desespero atônito e me organizar para fazer alguma coisa. Fui para o meu quarto com a fotografia na mão e liguei meu computador. Aquela coisa deveria ter um ponto fraco e se tivesse, eu ia encontrar.

                                                                           
 +++
O relógio marcava cinco horas quando acabei de me arrumar. Eu tinha um plano que tinha me deixado confiante, ainda que, analisando friamente hoje em dia eu consiga analisar inúmeros erros primários. Conferi se tinha pego tudo que eu precisava: crucifixo, terço e a maior faca que eu encontrei na cozinha, escrevi um bilhete para Catharina me desculpando por não esperá-la e saí.

Saí sem saber que seria naquela noite que eu a veria pela primeira vez.

Depois de alguns quarteirões uma chuva semelhante a está que está caindo hoje passou a acompanhar meus passos mas eu não me importei, passava o plano em loop na minha cabeça. Cheguei à praia pela segunda vez naquele dia. Dessa vez a atmosfera estava bem diferente, nuvens pesadas escureciam o céu e jorravam toda água que podiam. Um vento insano corria com pressa na direção contrária à minha, como se fugisse e no meu caminho até o Arpoador eu não vi ninguém. O sol não se pôs esse dia, ele se escondeu.

Ao chegar no lugar marcado eu já sentia minha confiança mais frágil, mas procurava não ligar e me convencer de que, sim, ainda poderia conseguir salvar o meu pai.

- AABA! - gritei com todo ar que pude reunir - ESTOU AQUI! SOZINHO! COMO VOCÊ PEDIU!

Nada aconteceu.

- ESTOU AQUI! APAREÇA SUA FILHA DA PUTA!

Achei que não teria resposta de novo quando, pouco antes de abrir a boca para gritar novamente eu sinto uma presença forte do outro lado da pedra. Ouço um riso debochado.

- HAHHAHA, você está adiantado queridinho. Mas tudo vem. O sol já foi embora, mesmo. Você é uma gracinha ansioso para morrer. - e eu a vi, pouco a pouco saindo das sombras que a pedra fazia.
- Onde está o meu pai?!
- Seu pai?! Você realmente acreditou nisso, nanico? Eu não estou com seu pai, seu idiota! Sabia que você era ingênuo o bastante para acreditar na minha mentira. Todos vocês são.
- Mas...então.. - sentia um estranho alívio que rapidamente foi se transformando em horror, na sensação de ter me precipitado.
- Entenda uma coisa, eu não precisava do seu pai. Nunca precisei. Eu poderia entrar na sua casa, torturar você dormindo. Te prender e fazer o que quisesse com você. 
- Porque?...
- Cala a boca e me escuta! Eu poderia fazer tudo isso, mas não queria me divertir sozinha, precisava te tirar de casa pra isso. E você veio como um cachorrinho quando eu chamei.

Comecei a recuar. Um passo, dois. Dei as costas para ela e, quando ia dar o terceiro, ela já estava na minha frente. Seu soco foi forte, só entendi o que tinha acontecido quando bati minha cabeça no chão. Nesse momento me dei conta de que ela não estava sozinha. Não, ali escondia nas sombras da noite havia um outro vulto mas antes deu pensar muito nisso um forte chute me atingiu na barriga.

- Eu falei que você ia pagar pelo que fez, nanico! Ninguém me fere como você e tem um final feliz. Carolina, vem cá! Estou quase acabando com ele!

Carolina. Era ela a figura que via ali, imóvel. Apesar de não conseguir vê-la com clareza e estar sofrendo com os fortes golpes da Aaba, Carolina chamava minha atenção só pela sua presença. Minha esperança começava a falhar quando vi uma luz branca me envolvendo. Os chutes pararam.

- Máira, pare com isso. Agora.
- Ah, Catharina me poupe! Você acha mesmo que pode fazer alguma coisa?! Você não pode me machucar, sabe disso. Você é fraca e não vai poder esconder vocês dois sob esse escudo por muito tempo. 

Catharina se virou pra trás e me olhou no chão com piedade. 

- Vou agüentar o tempo que precisar. Eu contatei a ordem, Aaba. Eles estão vindo.
- Porque você se importa tanto com esse humano, afinal?
- Ele é um sacerdo, Máira. Tem poder para te estraçalhar, só não sabe disso ainda.

Eu pude ver que a notícia deixou a demônia perplexa. Consegui reunir forças para levantar e apontar o crucifixo para Máira por trás de Catharina. Ela riu com desdém, mas depois notou a faca na minha mão e fechou o rosto. Ela sabia o que eu ia fazer. 

Abri a palma da não direita e nela fiz um fundo corte do dedo indicador ate o pulso deixando-a ver toda cena. Não, eu não tinha perdido a razão, só estava apostando no único ponto fraco dela que eu pude encontrar. Acontece que Aabas podem ser cruéis e poderosos mas, por algum motivo, estas criaturas tem uma automática repulsa ao sangue humano.

Catharina estava de costas e por um momento não entendeu o que tinha acontecido. Máira jazia encolhida no chão quando Catharina se voltou pra mim e viu o dedo vermelho que eu tinha levado à boca após sentir que o perigo havia passado. Ela recolheu seu escudo com uma expressão entre o alívio e o orgulho mas essa expressão não durou muito tempo. Rapidamente vi horror em seu rosto novamente e, frações de segundo depois disso um vulto vermelho passou por mim numa velocidade impensável. 

Catharina foi ao chão.

Eu me virei e a vi. A vi pela primeira vez fora das sombras. A pele doentiamente branca contrastava com o cabelo ruivo, não o ruivo banal que se encontra nas cabeças de algumas garotas hoje em dia. O ruivo dela era como fogo, pulsava. Os lábios eram tão vermelhos quanto o cabelo. Vestia um básico vestido preto mas que caía no seu corpo como se tivesse sido desenhado para ela. Seu olhos eram intensos. Escuros demais, profundo demais. Bonitos demais.

Por um momento eu esqueci de todos os golpes que havia levado, todas as preocupações também tinham ido. Minha única preocupação era continuar olhando para aquela figura. Não estava hipnotizado como foi com Máira. Estava entregue à ela, o que é bem diferente.

Eu disse que Catharina era extremamente bonita, Máira era incrivelmente sedutora. Mas essa garota fazia as outras duas parecerem os rostos comuns que vemos todos os dias andando com pressa pela Presidente Vargas.

Ela sorriu para mim e eu pude ver seus dentes. A próxima coisa que me dei conta era ela estar em cima de mim com as mãos ávidas buscando a minha mão cortada.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ver004



Como disse, não consegui dormir aquela noite. Olhei para meu relógio, o mesmo que eu uso até hoje e me surpreendi quando vi que já eram quase seis da manhã. Tanta coisa tinha acontecido na última noite que parecia que já fazia uma semana que eu tinha conhecido Catharina somente algumas horas atrás.

Fui tomar um banho tentando não pensar nisso, mas a agua passando pelos arranhões no meu peito insistiam em me fazer lembrar. Ao sair do banho lembrei do meu pai, estranho ele não ter chegado em casa ainda. Ele não atendeu, então liguei pra companhia e me disseram que ele teve que fazer um voo urgente pra Argentina naquela noite, mas não demoraria a voltar. Eu sei que pilotos tem uma vida um tanto quanto desregrada, mas eu odiava quando meu pai sumia assim, desde pequeno. Mas dessa vez isso não me incomodou tanto, tinha muitas outras coisas pra me preocupar nesse momento. 

O dia estava nublado e ventava bem forte, o que não é comum no Rio de Janeiro, mas nada de comum estava acontecendo ultimamente eu não liguei e fui dar um passeio na praia quando terminei o banho.

Não preciso descrever a praia de Copacabana pra quem mora no Rio e, se você nunca esteve lá, todas as fotos dizem a verdade. O mar azul acaricia gentilmente as finas areias brancas da praia que, mesmo num dia nublado estão quentes. Existem conchas aonde acontece o encontro do mar com a areia que eu sempre gostava de colecionar quando era garoto. A praia sempre foi meu lugar de paz.

Eu nunca tive muitos amigos, tenho problemas para confiar nas pessoas, coisa que só piorou com o tempo. Não que eu seja recluso e introspectivo, com certeza poderia ligar para algumas pessoas mas, como sempre, eu preferia lidar com essas coisas sozinho. Não consegui. Alguns minutos após de sentar à sombra do Posto 3 e ligar o shuffle do meu telefone sinto uma mão no meu ombro. Quente, leve e delicada. O simples toque de Catharina tranquilizava e, mesmo com esse meu jeito sempre desconfiado fiquei feliz de ter visto ela ali sorrindo pra mim. Uma âncora de sanidade no meio deste furacão todo.

- Então você é real mesmo.
- É claro que sou. - e sorriu pra mim com ternura - Eu sei que joguei tudo em cima de você muito rápido e também sumi repentinamente quando vi que você estava em segurança, mas eu precisara reportar o quanto antes que tinha te encontrado.
- Reportar?
- É. Agora eu já posso explicar tudo com mais calma. Pablo, você é um ser muito especial. Nós, do plano superior, somos divididos em categorias, cada celeste tem a sua função. Eu sou uma Fravashi, minha missão é encontrar, dar segurança e olhar por você até que tenha concluído seu treinamento. É como se eu fosse…
- É como se voce fosse meu anjo da guarda.
- Acho que este é um dos termos da minha casta aqui no plano físico. Sim, pense em mim como seu anjo da guarda. Vamos ter bastante contato daqui pra frente e tenho certeza de que vamos nos dar bem.

Ainda era difícil de acreditar, mas depois da visita que tive na noite anterior resolvi escutar o que Catharina tinha a dizer sem julgar nada. Eu não estava mais assustado, seu toque e sua voz me acalmavam e ajudavam a deixar tudo mais claro na minha cabeça.

- Voce disse “treinamento”?

- Disse. É, talvez você não goste muito dessa parte. Antes, deixe-me te explicar como é o panorama atual do seu plano. Após a Queda como que para se vingar de Yahweh e de sua criação mais querida, vocês, Lúcifer começou a infestar a Terra com seus mais diferentes tipos de demônios. O início dos tempos foi difícil para a humanidade pois não tínhamos permissão nem mesmo para descer até aqui. Então, os Arcanjos se reuniram e concordaram com uma proposta de Baraquiel, chefe da guarda angelical, que seria o envio de todos Fravashi ao plano físico para proteger os seres humanos. Deus percebeu que isso não feriria o livre-arbítrio e permitiu. Desde então estamos aqui, mas mesmo assim o poder do outro lado também é muito forte e frequentemente os da minha casta sozinhos não dão conta de todo o mau que os caídos podem causar. As guerras mundiais da sua sociedade, os desastres naturais, ou mesmo os pequenos crimes de bairro são ações deles e são ocasiões aonde e e os meus iguais falhamos. Por isso, frequentemente precisamos recorrer à nossos irmãos mais novos, na humanidade existem seres brilhantes, como você Pablo. - Ela viu que eu iria esboçar algum comentário e continuou - Por favor, deixe-me terminar, Pablo. Existem alguns dentre os mortais que vêm a este mundo com notável habilidade, psíquica e física, para identificar e parar tais atos vis cometidos pelo outro lado. Chamamos estes de “sacerdos”. Você é um deles.

- Catharina, eu acho que você pegou o cara errado. Quer dizer, “habilidade psíquica e física”? Eu não sou capaz de vencer uma queda de braço nem com aquele cara vendendo mate ali. Ainda não te contei, mas ontem mesmo aquela garota que você me mostrou ontem em Botafogo, Máira entrou na minha casa a noite e eu não pude fazer nada contra ela. Não posso ser o cara que voce pro…
- A AABA ENTROU NA SUA CASA ONTEM?!
- Foi, pouco depois que cheguei fui dormir um pouco. Acordei inquieto no meio da noite e lá estava ela, na minha cozinha.

Catharina estava visivelmente perturbada.

- Como foi que você sobreviveu ao ataque dela?! Conheci pouquíssimos humanos que encontraram Máira mais de uma vez! E você nem ao menos se iniciou! Não deveria ter te deixado sozinho.
- Catharina calma. Não sei, acho que eu dei sorte. Isso aqui - mostrei meu crucifixo -, ela não reparou que eu estava usando e, ao tocar nele gritou muito e foi obrigada a ir embora.
- Esses….esses arranhões..
- Sim, foi ela que fez, mas está tudo bem. Não me machuquei.
- Ok, precisamos começar logo o seu treinamento. Vamos para a sua casa. Agora.

Sua voz era doce, mas eu sabia que era uma ordem de comando. E eu não a questionei, levantamos e seguimos a rua que daria no meu apartamento. Não tinha reparado que a nossa conversa tinha durado tanto, já era quase hora do almoço quando avistamos o meu prédio e, desta vez Catharina fez questão de subir comigo. Ao abrir a porta senti de novo aquela sensação de mal-estar, mas estar com Catharina do lado deixava a coisa mais suportável. Ela disse:

- Voce também sente, não sente?
- Sim. O que isso quer dizer?
- Se concentre. Feche os olhos e perceba.

Obedeci e por algum motivo pude ter certeza de que alguém tinha estado na minha casa em minha ausência. Não havia nada fora do lugar, nenhuma pista que indicasse isso, mas era tão claro pra mim quanto os olhos de Catharina. E tive também uma intuição de que havia algo na cozinha.

- Entraram aqui. Tem algo na cozinha que devíamos ver.

A cozinha também estava exatamente como eu deixei, exceto por uma maçã mordida no chão. As bordas da maçã, aonde a boca tinha estado começavam a ficar escuras. Ela tinha estado ali ha algum tempo. Foi Catharina que percebeu o bilhete em cima da mesa. Leu, e ficou com os olhos petrificados por alguns segundos antes de, mecanicamente, passar o papel para as minhas mãos. Numa caligrafia displicente estava  escrito:

"Eu avisei que voce ia se arrepender, nanico! Estamos com o seu pai. As 19h de hoje esteja na pedra do Arpoador, ou eu vou gravar os gritos dele para você ouvir. Venha sozinho."

E, no fim da página, havia uma marca de batom como assinatura.