segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Ver019



Agora eu mesmo estava terminando o copo d'água que Catharina tinha deixado pela metade. Pensar que Carol estava dançando em algum teatro chique de Paris mais de cem anos atrás ainda era alguma coisa difícil de conceber. Catharina continuou:

- Era visível. Carlos não conseguia esconder mesmo se quisesse. Acabei conhecendo Carolina antes de realmente conhecê-la tamanha era a freqüência que Carlos trazia seu nome para as conversas. Trabalhávamos nas manhãs tentando juntar pistas do paradeiro de Malta. Ele voltou para ver o espetáculo mais duas vezes, a falta de atenção dele durante o dia não me incomodava tanto no início, mas aí eu percebi que a distração não era Paris, mas sim Carolina.

Tive vontade se perguntar como havia se dado o primeiro encontro dos dois, mas Catharina como se soubesse da minha curiosidade disse:

- Eu vou contar sobre como eles se aproximaram logo, mas antes é preciso falar um pouco mais de Carolina. - as mãos tocaram as leves marcas que os dedos de Carol tinham feito na sua pele - A família LeBion tinha sido uma das primeiras famílias francesas à imigrar para o Brasil. Já estavam no país há alguns anos quando resolveram se mudar para o Rio de Janeiro quando Família Real Portuguesa se refugiou dos ataques de Napoleão Bonaparte e fincaram raízes na cidade. Após três gerações aqui Jean-Baptiste LeBion (que coincidentemente era pintor como seu homônimo Debret) se casou com Juliana Lopes, a única filha de uma rica família da aristocracia carioca. Dessa união nasceu Carolina. 
- Mas como ela foi do Rio para a França? - perguntei ávido por informações.

Catharina ficava realmente sem paciência quando era interrompida num assunto que julgava ser importante. Olhou para mim e a placidez dos seus olhos me dizia para ficar calado. Respirou, seguiu:

- Vou chegar lá se você permitir, Pablo. Carolina LeBion cresceu numa família bastante abastada e com forte carga cultural. A mãe, você não me deixou terminar, teve três livros publicados e acredite, isso era muita coisa para a época. Não era de se esperar que Carolina tivesse um lado artístico mais desenvolvido que a maioria também, mas seus talentos não se focavam na pintura ou na escrita - apesar de ela ter publicado um livro de poemas no último ano da escola regular - sua verdadeira paixão era o ballet. Desde os cinco anos frequentou a melhor academia de ballet da cidade e permaneceu nela até completar dezoito anos. Seu pai já havia falecido quando ela chegou à maioridade e ela contou à sua mãe que tinha desejos de continuar os estudos de dança na Europa quando terminasse a escola. O desejo já era antigo, se dependesse de Carolina ela teria feito todo o ensino médio na França. A mãe, que era muito superprotetora, rebateu seu argumento dizendo que ela poderia continuar estudando aqui no Brasil mas a verdade era que as academias e palcos brasileiros eram muito aquém dos europeus naquela época. Nem o Theatro Municipal existia ainda.

Catharina levantou da mesa e pôs as mãos nos meus ombros com uma expressão séria.

- Pablo, por favor agora preste atenção porque essa é a parte da história que eu julguei importante que você soubesse. Carolina é perigosa, e se você precisasse de mais alguma prova vou lhe dar agora. 

Eu conseguia sentir a tensão de Catharina e isso me deixou bastante desconfortável também. Deu certo, ela tinha toda a minha atenção.

- Quando fez dezoito anos já não precisava mais do aval da mãe e como dinheiro não era problema no dia depois do seu aniversário Carolina já estava num navio com destino final sendo Paris. Em 1883 era bastante incomum ver uma mulher como Carolina viajando sozinha mas tenho que admitir que ela sempre teve personalidade. Preciso lembrar que tudo que eu estou te contando até agora soube pelos comentários que Carlos me fazia então desculpe pela falta de detalhes. Carolina nunca foi afeita à vida de muito materialismo que sempre foi acostumada, teve muitos pretendentes em casamentos arranjados pela família e negou todos. Por isso, eu acho, rapidamente fez amizade e contatos com os artistas de Montmartre e não demorou muito para começar a dançar com as bailarinas francesas. 

Sentou de novo, mas o olhar sério continuava

- Naquele dia Carlos foi ao teatro e esperou ela na saída como fez das outras duas vezes também. Carlos a convidou para um café. Ela negou prontamente mas disse que adoraria uma taça de bordeaux, ou duas. Entenda, a época era outra, mas Carolina LeBion era a mesma. É normal que pense que este efeito que ela causa em você é algo que veio após sua transformação, mas a verdade é que Carolina sempre conseguiu o que queria dos homens.
- Efeito? Não sei do que você está falando.

Catharina se limitou a me encarar com o rosto em expressão e isso me deixou envergonhado, não sabia que era tão óbvio assim.

- Como disse, ela e o resto da companhia moraram em Montmartre, aquele antro de perdição. Carolina, criada numa família católica e de posses, foi se sentir à vontade no meio de casas de baixo meretrício e bares sujos. Nunca realmente entendi como o lugar atraía a maior parte das mentes artísticas da época. Enfim, Carolina levou Carlos ao seu apartamento que ficava em um sobrado na rua principal do bairro. Lá eles beberam mais do que duas taças de vinho, Carlos não usava nada que mostrasse sua filiação ao Vaticano mas as coisa foram esquentando entre eles e ele foi obrigado à falar. Ele me contou que Carolina ficou bastante interessada no seu jeito tímido e envergonhado e não precisou mais do que duas horas para os dois ficarem bem…próximos. Carlos era bem dedicado ao ofício, Pablo, ele levava à sério os valores da ordem e, como ela lhe disse lá no quarto, o celibato é um deles. Carlos pecou naquela noite.

Pensar em outro homem tocando os lábios de Carol, ou passando as mãos pelo seu corpo me causou um desconforto agudo. Tecnicamente aquilo não fazia muito sentido, afinal tinha acontecido mais de cem anos atrás, mas quem disse que nossas emoções sempre são coerentes, certo?

- Catharina, - eu disse tentando disfarçar o quanto aquela última parte da história me agredia - podemos ir direto ao ponto? Até agora não entendi ainda o motivo de você estar me contando tudo isso.
- Eu ia dizendo que Carlos foi criado e respeitava bastante os moldes da igreja então não é difícil pensar que ele nunca tivesse estado com uma mulher antes. 

Dava para ver que me contar aquilo era muito difícil para Catharina. Agora eu ia entendendo, era culpa que eu sentia ali. Ela se culpava por ter “perdido” esse tal Carlos. Sua missão era protegê-lo e ela se sentia mal por ter sido desleixada com ele. Comecei a entender o motivo da sua reação tão desmedida quando me viu com Carol.

- Carlos me disse que contou para ela. Contou, mas ela não deu importância. - Catharina estava perdida nos próprios pensamentos agora, eu poderia sair da sala e ela não perceberia - É o tipo de mulher que não respeita nem mesmo um homem casado com Deus. Carolina tirou a virgindade de Carlos e seu foco de nossa missão também. Ele não voltou para Notre Dame naquela noite, fiquei preocupada e saí pela cidade após algumas horas de seu sumiço. Pela manha eu retornei e o sumo-sacerdo disse que ele havia retornado e estava descansando. Passei pelo salão aonde os outros membros da Ordem faziam o desejum e cheguei ao quarto aonde estávamos hospedados. Carlos dormia irresponsavelmente, e eu o acordei sem nenhuma cerimônia, confesso. Naquele dia deveríamos sair cedo porque havíamos recebido uma pista confiável de outro sacerdo de que Malta estaria se abrigando num apartamento no Boulevard Saint-Michel. Tinha dúvidas sobre aonde ele havia ido, mas preferi apenas apressá-lo para sairmos logo. Qualquer dúvida poderia ser esclarecida mais tarde.

Lembro do jeito que Catharina olhava para mim agora, como se o que eu fiz tivesse sido uma falta irreparável, algo para se envergonhar. E se não tivesse sido com Carol talvez eu tivesse me envergonhado mesmo.

- Ele estava quieto durante todo o caminho margeando o Sena até acharmos o endereço que nos foi dado. Encontramos o apartamento vazio, mas com sinais de uso recente. Talvez não fosse o melhor lugar para termos aquela conversa mas eu estava bastante apreensiva, perguntei aonde ele tinha passado a noite anterior e Carlos me contou com detalhes desnecessários o que ele e Carolina tinham feito. Acabamos brigando, nossa primeira briga em anos e ele saiu de lá de cabeça quente. Não nos entendemos mais, os encontros com Carolina se tornaram frequentes, quase diários, e ele já não fazia mais questão de esconder. Carlos tinha posto nosso objetivo de lado, dizia que saía todas as manhãs para tentar cobrir o rastro do assassino mas eu sabia que não era verdade.  Cansada daquilo, resolvi tomar uma atitude. Conheci Carolina em numa noite nos arredores de uma outra grande igreja da cidade, a basílica de Sacré Coeur. Marquei um encontro definitivo com Carlos para acertarmos os assuntos pendentes. Àquela altura ele passava mais tempo no apartamento dela do que na sede da ordem mesmo. Nosso encontro foi breve, numa mureta no alto da escadaria que dava para a basílica. Quando cheguei encontrei eles aos beijos, ela estava sentada no colo dele e duas garrafas de bordeaux jaziam vazias no chão. Carlos, mesmo um pouco embriagado, nos apresentou cordialmente. Carolina não era muito diferente do que você conhece, quer dizer as roupas e o cabelo ruivo seguiam a moda da época apesar de que ela nunca foi muito convencional. Pedi um momento com Carlos, ela levantou e desceu com as garrafas vazias. Não sem antes beijar seus lábios calorosamente. Sentei ao lado dele que estava visivelmente embaraçado com o volume que havia entre suas pernas mesmo eu não tendo dito nada. Eu queria ir direto ao ponto mas, pouco depois de Carolina descer as escadarias e voltar para a sua casa, eu e Carlos sentimos uma forte presença bem perto.

Eu ouvia à tudo aquilo mudo.

- Não durou mais que um segundo. Sentimos nitidamente alguém bem perto e um momento de silêncio apreensivo se deu. Aguardamos, mas logo a manifestação passou…ou se escondeu. - a voz voltou a embargar - Ele me disse que deveria ter sido só impressão, eu concordei e comecei a conversa que fui ter com ele desde o início. Fomos francos. Perguntei o que estava havendo, qual era o motivo de todo aquele descaso com a nossa perseguição. Carlos hesitou antes de responder mas quando disse, falou de uma vez. Me confessou que tinha descoberto uma outra vida nestas duas semanas que estivemos na França, que Carolina o fez repensar suas prioridades e que já não queria mais a responsabilidade que o ofício sagrado lhe conferia. Não era como se eu já não suspeitasse disso, mas me magoou muito ouvir as palavras saindo de sua boca. Tentei convencê-lo, dizer que Carolina estava com ele hoje, mas amanha poderia estar com algum escritor ou músico do Moulin Rouge. Eu tentei abrir os olhos dele, o trabalho de uma vida não poderia ser jogado fora por alguma irresponsabilidade libidinosa. Dei muitos motivos, ele me rebateu com um único. Disse que a amava.

Novamente, pensar em outro declamando seu amor por Carol fazia meu estômago revirar e meus punhos se fecharem.

- E contra o amor, mesmo um amor que eu julgava ilusório e precipitado, eu não tive argumentos. Carlos era muito bom detectando emoções alheias e percebeu a minha melancolia, já não havia mais motivos para brigar. Eu tinha perdido meu único amigo. Ele disse que foi bom eu ter marcado este encontro, ele também tinha algo à dizer. Seus olhos, castanhos como os seus, focaram nos meus e ele me contou que aquela seria sua última madrugada em Paris. Eu precisei sentar. Ele continuou me dizendo que contou tudo, ou quase tudo, para Carolina disse também que precisaria fugir para sair da vida de compromissos que tinha. Aparentemente ela era tão inconsequente quanto ele porque tinha aceitado. Aquilo que eles faziam em frente à basílica era uma celebração, uma espécie de casamento improvisado e particular. Me disse que seu trem sairia as 22h para Londres e depois de lá não sabia de si. Iria passar em Notre Dame de novo para reunir as roupas que tinha trazido e pretendia sair sem comunicar à nenhum outro membro, mas não queria sair sem se despedir de mim. Fizemos então nossa despedida e foi inevitável não me emocionar - Catharina agora chorava - ainda hoje eu me emociono lembrando. Perguntei como era seu plano, se ele precisaria de alguma ajuda e ele disse que não. Carolina estaria agora mesmo finalizando as malas e ele se encontraria com ela às 21h no do próximo dia na Rue de Compiègne e de lá seguiriam juntos para a estação e para o resto de suas vidas.

Catharina precisou de um momento para se recompor, limpou as lágrimas com leveza e era estranho perceber que, mesmo chorando ela ainda era muito bonita. Quando voltou a falar sua voz era mais forte, mas sua expressão não.


- Eles nunca conseguiram chegar à estação. Mais alguém tinha ouvido o plano naquela noite nos arredores da basílica de Sacré Coeur.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Ver018



Eu já sabia que Catharina estava chateada comigo. Mesmo sabendo disso não esperava uma reação tão explosiva da parte dela. Quando abriu a porta, Catharina viu Carol entre nós e a surpresa ficou evidente nos seus olhos, mas essa surpresa só durou uma fração de segundo porque pouco depois ela fez o que parecia ter sido programada para fazer. Me proteger.

Eu não consegui ver, só senti um leve empurrão de volta para a minha cama e de súbito Catharina se pôs no meio de nós. Neste ínfimo momento Carol tomou posição de ataque, seus olhos fuzilavam Catharina e suas presas estavam à mostra. Levantei para dizer à Catharina que fui eu quem tinha deixado Carol entrar, mas ela não me ouviu e me empurrou para a cama novamente.

Eu conseguia sentir a energia nas duas cada vez mais agressiva, como pólos opostos que se atraíam cada vez com mais força. Se elas realmente resolvessem brigar ali não ia sobrar muita coisa.

- O que você está fazendo aqui!? - Catharina tinha ódio na voz.
- Ah, não se faça de desentendida, Catharina. - Carol pingava ironia - Você sabe muito bem o que eu vim fazer aqui.
- Eu não vou deixar você tocar nele, upyr.
- Bom, acho que você chegou um pouco tarde então. - ela deu um sorriso sarcástico e olhou para mim de um jeito tão intenso que me fez corar apesar de eu ser moreno. Catharina, que permanecia de costas para mim disse:

- Escute com atenção, Carolina. Eu não sei como você entrou aqui mas...
- Eu chamei. Precisava falar com ela, esses - eu disse inseguro - são os restos do ritual de invocação que eu tentei fazer. 

Apontei para os restos de velas e para o desenho no assoalho. Catharina me olhava incrédula. Eu conseguia perceber, pouco a pouco, a decepção ir diminuindo aquela energia que, antes eu tinha sentido tão intensa. Ela abriu a boca mas não encontrou as palavras, Carol falou no lugar dela:

- Ele é mesmo uma gracinha, não é? É verdade que ele tentou me chamar, mas eu já estava aqui antes mesmo de ele começar a rabiscar no chão. - Catharina parecia não dar atenção para a inimiga. Agora ela encontrou palavras:

- Pablo, eu não acredito. Depois de tudo que eu te contei sobre a raça dela, depois do que eles fizeram com seu pai. Como você pôde invocar ela aqui, para dentro do seu próprio quarto?!
- Você sabe o motivo tanto quanto eu, Catharina! Pare de se enganar! E eu acho que, lá no fundo, ele deve saber também! - Carol estava impaciente agora, sua aura ia engolindo a de Catharina.
- Ele não é mais quem você pensa, demônio! - Catharina voltou a expandir, novamente eu conseguia ver aquele véu branco que ela fez para me proteger uma vez. Vi seus olhos perdendo a íris e os móveis do meu quarto começavam a tremer. Ela me deu as costas, sua atenção era toda para Carol agora.

Carolina não ficou atrás. Os olhos, aqueles olhos assassinos, tinham achado sua presa. Era intimidador ver Carol daquele jeito, ela parecia fora de si, como um animal seguindo um extinto. Matar. Carol avançou sem cerimônia, se jogou contra Catharina com toda a força. Minha Favrashi não foi capaz formar um escudo forte o bastante e e acabou sendo arremessada contra a parede.

Agora eu via as luzes dos vizinhos começarem a se acender.

As mãos delicadas de Carol apertavam o rosto de Catharina, suas unhas negras iam se fincando nas bochechas rosadas a oponente. Anjos não sangram e isso foi uma sorte, não sei o que teria acontecido com uma só gota de sangue ali. Temo que o pior

- CAROL, PARA! - Disse com uma autoridade que até mesmo me surpreendeu.

Não esperava, mas ela me atendeu. Como se voltasse a si, quase no mesmo instante da minha, fala ela parou o ataque. As coisas no quarto pararam de tremer, a atmosfera foi ficando menos densa.

- Viu? - ela disse soltando a vítima - Ele ainda é e-xa-ta-men-te quem eu estava pensando.

Catharina caiu e Carol veio em minha direção. Ajeitando os cabelos e o vestido, os olhos voltando ao preto intenso cravados em mim. Ela parou na minha frente e pôs as mãos de gelo no meu rosto.

- Você queria saber porque eu vim aqui hoje, não é? Foi por isso aqui.

Seus braços se cruzaram no meu pescoço de forma suave, mas me trouxeram para ela com urgência. Meus lábios procuraram os dela como se já conhecessem o caminho. Seu hálito era fresco e sua boca era fria, mas isso só me excitava mais. Enquanto nossas línguas se entrelaçavam eu sentia seus caninos protuberantes e ela os usava para me dar leves mordiscadas nos lábios. Minhas mãos começaram na sua cintura, bem nas marcas abertas do vestido, mas conforme o beijo esquentava um dos braços passou pela cintura trazendo ela para mais perto ainda de mim enquanto o outro ia até o seu pescoço. As dela se descruzaram e, com a esquerda, ela enroscou os dedos entre os cachos da minha nuca.

Não saberia dizer quanto tempo durou o beijo, só que não foi suficiente para mim. Eu queria mais, apesar de que, quando acabamos eu estava ofegante, como se estivesse acabado de sair de uma piscina e precisasse de ar.

- Você continua ótimo, - ela tentava não parecer impressionada, o que me deixou um pouco orgulhoso - mas da próxima vez, lembra de que não precisa ficar na ponta dos pés.

Eu percebi que realmente me apoiava nos dedões. Talvez tenha sido a vontade de estender o tempo de beijo o máximo que eu conseguisse ou talvez tenha sido o impulso do meu braço na suas costas. Dei um sorriso tímido e olhei para baixo sem jeito. Ela veio, levantou o meu rosto selou os lábios nos meus de novo.

- Eu adoro quando você fica assim envergonhado. - suspirou - Tem muita coisa que você ainda precisa saber, mas a mais importante delas é que agora que nos encontramos, eu não vou perder você de novo. O resto - ela olhou por cima do meu ombro - sua amiga ali te conta. Acho que ela ainda consegue falar.

Eu tinha esquecido completamente que Catharina estava ali. Olhei para trás e vi que ela já havia se levantado e nos olhava com franca desaprovação. Voltei para Carol que se encaminhava novamente para a janela.

- Espera, você não precisa ir agora. - pareceu mais um pedido do que eu queria.
- Eu preciso, Pablo. Digamos que eu “fugi de casa” e as pessoas que moram comigo estão procurando por mim. Se eu ficar muito tempo num mesmo lugar eles podem sentir e vir atrás de mim. A última coisa que eu quero é um monte de vampiros aqui.
- Rá! Claro que sim. - Catharina falou com desdém, mas Carol ignorou o comentário e continuou olhando para mim.
- Ok, tudo bem. Mas onde eu posso encontrar você?
- Se eu te disser você vai vir atrás de mim. Não precisa disfarçar, eu sei que vai e por isso mesmo eu não vou dizer. Quanto menos risco você correr melhor. Mas ei, não fica assim - parece que a minha decepção era visível - eu vou voltar.
- Quando?
- Ah, um pouco de mistério nunca matou ninguém.

Ela sentou de novo no meu parapeito e, de novo, cruzou as pernas daquele jeito sob o vestido. Passou as mãos pelos cabelos e disse:

- Ah, é! Talvez você queira repensar aquela questão do celibato também.

Pulou para a noite escura e abafada. Corri para a janela e não a vi mais. Meu cérebro ficou algum tempo tentando registar o que tinha acabado de acontecer e me convencer de eu realmente tinha beijado a garota que figurava meus pensamentos na última semana. Catharina interrompeu meus devaneios. Esperava uma nova onda de hostilidade ou alguma reação agressiva mas não, ela estava estranhamente calma me olhou com um misto de carinho e piedade.

- Pablo, precisamos conversar.
- É, acho que precisamos. - eu ainda estava estranhando aquela bipolaridade toda.
- Mas não aqui, não aqui. Vamos para a sala.

Minha sala estava impecavelmente arrumada já que não era usada há dias. A mesa de jantar tinha sido limpa por Catharina mesmo e foi lá que nos sentamos. Ela não falou logo. Na verdade, houve um grande momento de silêncio onde nós só nos olhávamos. 

Ela pôs as mãos nas minhas e disse:

- Pablo, têm coisas sobre Carolina que eu não te contei.
- Aparentemente sim.
- Entenda, não era minha intenção omitir estes fatos de você se fosse realmente necessário que você soubesse. Eu não esperava que nessa cidade tão grande você fosse topar logo com ela.
- E qual seria o problema se nos encontrássemos? Ok, eu entendo que ela é um demônio perigoso você já recorreu à comentários bíblicos para provar isso. Mas não é só por isso, né?
- Pablo, eu preferia que você não soubesse disso desse jeito, mas você e Carolina já têm uma história pregressa. Peço que não me interrompa, tudo bem? - assenti com a cabeça e ela continuou

- No ano de 1883 eu já havia estado na maioria das partes deste mundo algumas vezes. Na época eu acompanhava um jovem Sacerdo, como eu faço agora com você. Talvez ele fosse um pouco mais centrado e menos inconsequente que você, mas vocês eram certamente bem...parecidos. O nome dele era Carlos. Não é preciso dizer que, naquele tempo, não havia tanta velocidade nos meios de registro e comunicação como há hoje, mas é importante pontuar que as criaturas do plano inferior se valiam disso para cometer suas atrocidades mais impunemente. Houve uma grande luta num antigo bordel na região central da cidade aonde Carlos e mais três sacerdos lutaram contra 23 upyres. No fim, só ele sobreviveu, e isso conferiu-lhe a imagem  de “especialista” sempre que o assunto era este tipo de demônios.

Ela parou e inspirou de firma grave, como se fosse difícil reaver aquelas lembranças. Eu conheço a sensação.

- Ele odiava isso. Carlos era muito humilde, e não gostava de ser visto como autoridade ou referência. O sumo-sacerdo faleceu pouco depois desta luta no bordel e Carlos foi convidado para assumir o posto, à despeito da pouca idade. Ele negou, preferia ir à campo. Eu ao acompanhei por cinco anos, mas confesso que nos últimos já não me preocupava mais em aconselhá-lo. Numa noite de chuva de verão, quando retornamos ao Templo foi convocada uma reunião. Um upyr tinha feito dezessete vítimas numa formatura de colégio na Zona Norte da cidade. O responsável por esta chacina foi Lucas Malta.

O nome maldito me fez cerrar o punho que ainda estava nas mãos dela. Não entendia como era possível odiar tanto alguém sem face, uma figura que nunca tinha nem mesmo estado em minha presença. Mas minha sede de vingança era genuína e visceral, a menor menção do nome daquele ser fervia meu sangue. Como pedido, segui em silêncio.

- João, outro sacerdo da ordem que estava em perseguição ao demônio há alguns dias, não conseguiu evitar a atrocidade. Pior, ele foi ferido tentando impedir Malta. Conseguiu chegar ao Templo com muita dificuldade, mas trouxe duas informações valiosas. A primeira era que o inimigo estava ferido, ele havia conseguido tocar seu peito com uma solução de agua-benta com pedaços de alho, que é extremamente letal para eles se não for tratado com cuidado. A segunda foi de que Malta teria ido buscar este tratamento em Paris, onde havia clãs poderosos de upyres e este tipo de cuidado estava mais acessível do que no Brasil. Após dizer estas coisas, infelizmente, irmão João faleceu. 

- O conselho se fechou em reunião. Malta é perigoso e já sabíamos disso naquela época. Era importante aproveitar esta oportunidade para acabar com ele de uma vez por todas. Claro que existia a ordem parisiense e ela poderia ser contactada, mas mandar uma mensagem demoraria meses e não sabíamos se ela realmente chegaria ou mesmo se os franceses poderiam arcar com uma luta dessas agora. Cada um tem os próprios demônios para combater.

Outra pausa de Catharina. Essa maior. Ela tirou as mãos da minha e as passou pelos cabelos, senti que ela fazia força para não chorar. Respirou fundo e seguiu:

- Ficou decidido ao fim do conselho que Carlos embarcaria para Paris com a missão de matar Lucas Malta. Eu fui a favor, a mesa toda foi. Parecia mesmo a escolha sensata a ser feita. Se eu soubesse teria me posto contra mas eu não podia prever. - ela parou para respirar - Pegamos um navio para a Europa no dia seguinte, só eu e ele. Eu poderia ter me transportado para lá facilmente e no espaço de segundos estaria em Paris, mas ele não. Eu já considerava Carlos um grande amigo, por isso preferi ir com ele e fazer companhia nos meses que a viagem levou. Ele não estava nervoso, pelo contrário, estava animado por sair do Brasil pela primeira vez. Pablo, você pode me dar um copo d’agua por favor?

Eu estava tão atento à história que achei estranho levantar. Enquanto ia à cozinha pegar o pedido de Catharina senti o perfume de Carol em mim e abri um sorriso ao lembrar do beijo. Quando voltei, Catharina pegou o copo com força, parece que ela tinha se recomposto na minha rápida ida à cozinha, ou talvez eu não tenha sido tão rápido assim. Continuou:

- Desembarcamos na Cidade do Porto em Portugal e a diferença de clima já foi abrupta. Pernoitamos na sede da ordem de lá e no outro dia bem cedo pegamos um trem para Paris, passamos alguns dias nele. Carlos tinha pensado numa nova arma, uma espécie de besta que lançava estacas e não flechas. Pretendia concluir sua missão com ela. Ao descermos em Paris nevava, por sorte tínhamos pego roupas de inverno no Porto, e, quando pisamos na plataforma da estação de trem francesa um garoto de boina passou entregando alguns folhetos dizendo que estariam apresentando naquela noite um ballet no Théâtre de l’Odéon, Carlos sempre simpático conversou com o menino num francês bem ruim e pegou um dos folhetos, guardou no bolso. 
- Como vocês íriam fazer para encontrar Malta lá? Paris é enorme!


- Carlos tinha um plano, mas ele só poderia ser executado dois dias depois. Por favor, não interrompa. A sede da ordem de Paris fica até hoje na tradicional Notre-Dame. Lá nos apresentamos ao sumo-sacerdo que nos recebeu muito bem e disse que realmente não poderia arcar com uma luta contra upyres agora, eles estavam tendo ataques frequentes de aabas e incubus no Quartier Latin e toda a equipe estava alocada lá. Conhecemos nossos aposentos, mas Carlos não quis ficar lá muito tempo, queria conhecer a cidade. Como eu precisava comunicar ao plano superior nossa posição combinamos que retornaríamos à meia-noite para Notre-Dame e só então nos prepararíamos. Eu subi, e quando nos encontramos de novo, Carlos me disse que tinha ido ao l’Odéon e estava encantado com o espetáculo. Ele tinha visto a montagem de um espetáculo que havia estreado uma década antes chamado “Coppélia”. Ficou tão impressionado que esperou na porta do teatro para cumprimentar toda a companhia na saída. Lembro da euforia na sua voz ao me contar que a protagonista do espetáculo, a bailarina que mais o encantou, era do Rio de Janeiro e tinha chegado lá alguns anos antes só. Seu nome era Carolina LeBion.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Ver017



Precisei parar um pouco para lavar o rosto, faz uma noite bem abafada hoje. Deixei meus óculos na mesa e fui até o banheiro apertado. Tenho evitado sair em fotografias ou mesmo me olhar no espelho, durmo pouco e como menos ainda. As olheiras estão cada dia mais fundas.

Ao abrir o armário procurando uma toalha limpa eu encontrei uma calcinha que ela deve ter esquecido aqui, preta e transparente. O toque da renda nos meus dedos e no meu rosto fez meu sangue subir.

Carol foi quem achou este apartamento. Preferi não saber como ela teve certeza de que não havia ninguém morando aqui, quando ela disse que sabia de um lugar onde poderíamos nos ver, eu só concordei. Era perfeito, como eu já disse, a Lapa é uma confusão de emoções e sentimentos constante e isso torna muito difícil encontrar uma presença específica aqui. 

Retorno à velha mesa de madeira compensada e olho ao meu redor. Não é só a lingerie no armário, cada canto deste apartamento tem memórias dela. É quase engraçado pensar que passei esses últimos anos caçando demônios e agora não consigo me livrar dos meus. Na verdade, talvez eu não queira.


Essa sensação de falta tem sido uma companheira ingrata desde aquele dia e ela não melhora com o tempo. Novamente levo a mão às cicatrizes arredondadas que ela deixou no lado direito do meu pescoço.

Naquela noite a sensação de perda também me acompanhava, correndo pela Presidente Vargas atrás de um jeito para chegar em casa. Quase arranhei a marca de comunicação que Catharina havia deixado no meu pulso, mas não houve resposta. 

Um taxi surgiu solitário na noite e eu parei no meio da rua para obrigá-lo a parar. O motorista me viu machucado e sujo, mas sua surpresa ficou só no semblante. Eu disse:

- Está livre?
- Estava voltando pra casa já...para onde você vai?
- Copacabana, rua Paula Freitas.
- Bom...é um pouco fora do meu caminho, mas você parece que precisa de um descanso mesmo. Te levo lá.

Entrei no taxi e a corrida de aproximadamente 20 minutos foi feita toda em silêncio para o meu alívio. Não estava com vontade de responder nenhuma pergunta curiosa naquela noite. 

De novo esfreguei meu pulso com o polegar e, de novo, Catharina não me respondeu. Eu estava disposto a contar da visita de Carol e sabia que isso deixaria ela revoltada, mas eu precisaria de Catharina pra me ajudar a descobrir porque Carol tinha sumido.

Entrei em casa e logo tirei a batina que, devo confessar, me incomodava também e fui tomar um banho. Parecia que já havia passado muito tempo desde a luta com o berne na Glória, os ferimentos não incomodavam mais. Também não sentia os socos que levei cerca de uma hora antes, minha cabeça estava em outro lugar.

Carolina era uma incógnita. Um mistério do qual eu não sabia muita coisa, e as indagações eram muitas. Com tantas dúvidas, o mais racional seria eu deixar de pensar nela. Entretanto o que acontecia era exatamente o oposto: a lembrança dela, que ainda hoje eu tinha vívida nos olhos, me fascinava. Eu precisava de mais um encontro com ela, precisava saber mais sobre ela.

Minha fixação, confesso, parecia sem sentido, e eu já reconhecia isso na época mas não me importava. 

Existe uma característica sobre mim que eu deixei passar quando me apresentei, é sobre a minha memória. Não é que ela seja acima da média ou nada disso, mas eu tenho a capacidade de registrar todos os mínimos detalhes de uma situação pela qual eu tenha passado. Se, por exemplo, me perguntarem a data de início da Revolução Francesa, algo que eu vi nos anos de colégio repetidas vezes, não saberia dizer mas carrego comigo nitidamente coisas como qual era a flor na lapela do paletó que meu pai usava na festa de ano novo de 1997. 

Era um cravo.

Alguns diriam que é a chamada "memória fotográfica", eu diria só que eu guardo bem detalhes. E uma das imagens que eu tenho recentes na memória me deu uma idéia. Enquanto Victor nos orientava pelos corredores subterrâneos da Candelária passamos por uma câmara mais escura e estreita que as outras. 

- Está é a biblioteca de invocação. Aqui guardamos os livros, manuscritos e materiais que vocês precisariam caso fossem invocar algum infernal.

Ao centro da sala havia uma mesa preta, ornamentada com quinas vivas e pernas que terminavam em garras. Nela estava exposto um papiro que relatava com imagens bem didáticas um ritual de invocação goético. O exemplo mostrava a invocação de um demônio de primeira ordem chamado Belial, mas eu me perguntei se ele não poderia ser usado para invocar algum tipo de demônio menor. Uma upyr, talvez.

Tinha o papiro em minhas mãos a menos de vinte e quatro horas atrás. Minha habilidade mnemônica não teve muita dificuldade para me gerar uma fotografia mental do ritual, que para minha sorte era feito com objetos bem simples. Eu precisaria de um giz, seis velas, um espelho, uma folha de papel e recitar algumas palavras numa certa ordem.

Abri espaço no centro do meu quarto empurrando a cama até ela bater na parede que tinha a única janela do cômodo. Com o giz desenhei um círculo com mais ou menos um metro de diâmetro e dentro dele um segundo círculo menor. Marquei um ponto no centro do dos dois círculos e fiz dele também ponto médio de uma estrela de cinco pontas. Entre as pontas da estrela desenhei símbolos que eu não reconhecia, mas estavam no documento que eu havia visto. Peguei as velas e pus uma em cada ponta da estrela, a última ficava no ponto médio do desenho. Todo o círculo foi desenhado num lugar que, ao ser refletido no espelho de corpo inteiro da minha parede, a estrela ficasse invertida. Acendi todas as velas e escrevi "Carolina LeBion" num pedaço de papel qualquer. Entrei no círculo.

Antes de começar eu pensei em contactar Catharina uma terceira vez caso algo desse errado. Mas o ritual deveria ser feito em número ímpar e eu duvidava que ela fosse aprovar algo assim.

Estava quente, ainda mais ali dentro rodeado pelas velas se consumindo. Me posicionei de frente para o espelho e fui passando o papel com o nome dela em cada vela e, por fim, deixei que queimasse todo na vela central sempre dizendo as palavras que não aparentavam fazer sentido. Quando já não havia papel eu fechei os olhos e por minutos continuei recitando aquele poema infernal na esperança de que, ao abri-los, ela estaria ali no círculo comigo.

Invocar um demônio é um ritual delicado e bastante perigoso, com o conhecimento que tenho hoje nunca teria me arriscado fazendo algo deste tipo sozinho e sem orientação. Olhei ao redor e vi que havia falhado. Ela não estava no círculo. Apaguei as velas com certa violência e sentei de volta no círculo de giz que agora parecia ridículo. Me olhava no espelho decepcionado.

Clap! Clap!
Ouvi palmas e foi como se eu tivesse dormindo e despertasse.

- Seu enoquiano é horrível, hahaha. - Carol estava novamente no parapeito da minha janela me olhando e rindo do meu estado derrotado. Neste dia usava os cabelos ruivos soltos com um vestido azul marinho que tinha dois cortes na cintura deixando aparecer bastante da sua barriga. Tentava não imaginar minhas mãos naquela cintura e falhava.

- Então o ritual deu certo! Estranho, achava que era pra você aparecer aqui no círculo.
- Nao seja metido, claro que não deu certo. Eu já estava aqui desde que você começou a montar tudo isso, só deixei você continuar porque bom, era engraçado. Aquela vela ali não é para estar no meio da estrela, à propósito. Mas achei fofo você querer me invocar. Ridículo, mas fofo.
- Eu não queria te chamar só pra ver você! - menti.
- Claro que não. - Carol disse irônica - Porque você ia me chamar só pra me ter aqui...no seu quarto...sozinhos, não é mesmo? Posso entrar?

Concordei com a cabeça.

- Não, você precisa dizer.
- Você realmente gosta das coisas bem certinhas, né? Vem, pode entrar. 
- Se eu gostasse das coisas certinhas teria usado a porta da frente, não a janela, Pablo. - ela disse enquanto ficava de pé na minha cama - Então, o que você quer de mim?

Eu nunca consegui entender quando exatamente Carol estava sendo sensual ou falando sério porque tudo nela fazia meu sangue subir, mesmo quando ela não tinha a intenção. Poderia ter pensado em mil respostas para aquela pergunta, mas disse:

- Encontrei sua amiga Máira antes de vir para casa, sabia? Ela me disse que você tinha sumido. Porque você fugiu?

Como disse, a noite era quente e eu comecei a tentativa de ritual pouco depois de sair do banho, não me incomodei em botar uma camisa. Sou franzino, mas Carolina não tirava os olhos do meu peitoral e isso me deixou um pouco sem jeito. Do alto da cama ela falou:

- Antes de responder você pode colocar uma camisa? Não consigo me concentrar com você assim, mas não fique muito convencido, é o seu ombro ali que está me...incomodando.

Meu ombro ainda não havia curado completamente, no encontro com Máira ele abriu de novo e agora estava cicatrizando. Fiz como ela pediu sem disfarçar que aquilo tinha me deixado realizado. Ela continuou:

- Sim, eu estou repensando algumas coisas da minha vida agora e prefiro estar sozinha nesse momento. Como ela está?
- Insuportável, como sempre. Achava que eu tinha sumido com você quando você veio da ultima vez.
- Hahaha, como se você pudesse.
- Eu me ordenei, sabia? - falei provocante, ela respondeu com um olhar de desdém - Ok, não me ordenei. Mas já fui a primeira reunião e estou decidido.
- Bom, isso é uma pena.
- É?
- Para você, claro. Você sabia que, mesmo no seu clubinho especial, o celibato é obrigatório, certo? Que pena para você. - ela sentou na minha cama e cruzou as pernas lentamente sob o vestido. Fiquei vermelho, de vergonha e de vontade. Carol sempre soube me deixar sem jeito.

Sabia que era arriscado mas isso não me impediu, me sentei ao seu lado. Respirar era mais complicado agora.

- Tudo bem, se você queria algum tempo sozinha para fazer...o que quer que você fosse fazer, porque você veio aqui mesmo antes de eu começar o ritual?
- Não, não! Eu perguntei o que você queria com essa tentativa engraçada de me invocar primeiro.
- Mas eu já disse.
- Sério que você rabiscou o chão do seu quarto com giz e acendeu velas só para me fazer uma pergunta? É tudo que você quer saber de mim?
- Na verdade não, eu tenho mais.
- Eu sei que tem.
- O que? Você lê mentes também?
- Não, mas é que você sempre foi muito óbvio para mim mesmo.

Ela olhou para mim com os olhos muito escuros e me prendeu neles de um jeito que, se eu não usasse toda a minha força de vontade teria agarrado ela ali mesmo.

- Máira disse outra coisa também.
- O que ela falou?
- Ela disse que, bom, desde a noite que nos conhecemos no Arpoador você está diferente. Que tem pensado em mim...

Carol levantou alarmada e eu demorei um pouco para perceber que não foi por causa do que eu disse, ela provavelmente não ouviu. Visivelmente nervosa ela disse:

- Pablo, tem mais alguém aqui?
- Não, estamos sozinhos.
- Pablo, tem mais alguém aqui! - dessa vez não era uma pergunta.

Eu levantei também e, antes de estar totalmente de pé Catharina já tinha aberto a porta.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Ver016



Ao ouvir a menção do assassino do meu pai senti um ódio desmedido e um medo disfarçado também. A possibilidade de ver seu rosto numa fotografia me fez correr até a mesa onde Vinicius estava somente para me decepcionar e ver que não haja nada ali.

- Essa foi uma tentativa frustrada - disse Victor tomando a fotografia nas mãos - de quando capturamos Malta algumas décadas atrás. Já havia a suspeita, mas essa fotografia nos deu certeza de que ele é um upyr.
- Upyr? - perguntou Vinicius.
- É o nome técnico do que conhecemos como vampiro. - eu disse de modo distraído. Depois do meu comentário houve um silêncio inesperado. Todos olhavam para mim.

- Exatamente. - Victor estava visivelmente perplexo - Demônios dependentes de sangue, filhos de Lilith, sedutores e traiçoeiros. Upyr não saem em fotografias, nem têm reflexos. Mais um castigo de Deus por serem tão vaidosos. Um dos tipos mais perigosos de infernais e eu torço muito que vocês nunca precisem enfrentar um desses. Mas parece que isso não é novidade para todo mundo, não é...Pablo?
- Uhn...não, não! Quer dizer, Catharina me explicou um pouco sobre eles, mas sobre outros demônios também. Quer dizer, nada que eles não saibam também - apontei os outros três aprendizes.
- Bom, na verdade - Gabriela falou por todos - sua “anja da guarda” pareceu se importar muito mais com você que o meu comigo.

Os outros assentiram, e isso me lembrou do modo glacial com o qual Catharina tinha me tratado pouco mais de uma hora atrás. Meu pulso esquerdo ainda tinha a marca que ela deixou para nos comunicarmos ia passar dedo nela mas uma pergunta me deteve:

- É verdade que você e ela se atrasaram porque um deles encontrou vocês? - A voz de Júlio era presunçosa e me incomodava. Antes que eu pudesse responder, entretanto, Victor disse:

- Eles já sabem de vocês e é importante que estejam cientes do perigo que correm. Pablo tinha a ajuda de Catharina e teve sorte por isso. Não resolvam bancar heróis ou tentar ser mais do que são. Aquela menina, Bruna, que deveria estar aqui com vocês foi atacada por um pratur, segundo as informações que o Fravashi dela trouxe, ficou catatônica. Ainda tememos pela família dela, mas não há muito o que fazer. Se Pablo passou por uma experiência de luta com um demônio isso não é algo a ser condecorado, mas sim uma imprudência que eu realmente espero que não se repita nesse grupo.

Conseguíamos ouvir o barulho das tubulações de ar condicionado e nada mais.

-Vamos continuar?



+++


Já era quase uma da madrugada quando acabou o dia de apresentações. Sabia que padre Pedro morava ali no subsolo da Candelária, ele já tinha se recolhido, mas Victor parecia disposto a terminar sua função de guia sem muita pressa. 

- Por fim, agora retornamos ao Grande Salão, concluindo nossa rota por todos os aposentos do templo. - olhou para o relógio que, como eu, usava no pulso direito - Deveríamos ter acabado antes de meia-noite mas...em decorrência de atrasos declaro somente agora acabada a etapa de introdução de seu treinamento. Na sala à direita há comes e bebes para se alimentarem antes da volta pra casa. Por favor sirvam-se. Nos vemos novamente em breve.

O banquete era mais vasto do que eu imaginei. Parecia que o Vaticano estava realmente empenhado em investir na Ordem. Eu estava faminto, desde que saí de casa não botava nada no estômago, aquela janta tardia foi muito bem-vinda. 

Depois de satisfeitos nos despedimos e cada um tomou um rumo diferente. Antes de arrumar minha maleta, enchi meu frasco de água-benta na fonte que tinham feito na lateral direita do Grande Salão, acho que o encontro com o berne me traumatizou um pouco porque depois disso eu nunca mais pus o frasco na maleta, sempre o levo comigo.

Para mim, que morava em Copacabana, a melhor alternativa para voltar seria o metrô novamente, mas naquela hora ele já não estava mais aberto. Andei pela Presidente Vargas até chegar no ponto de ônibus aonde passavam os coletivos para Copacabana. Não cheguei ao meu destino.

Ao passar por uma das ruas apertadas e escuras que cruza a avenida fui surpreendido por um forte cruzado no queixo. Busquei equilíbrio num poste e olhei para o meu agressor que não reconheci. Ele era mais forte que eu, bem mais forte, tinha cabelos cacheados também, mas raspava as laterais. O nariz dilatado o deixava tão feio quanto um dos demônios que eu enfrentei, mas ele era claramente humano. Enquanto tentava entender o que estava acontecendo o bruta montes avançou para cima de mim novamente. Uma voz conhecida o deteve:

- Pare, meu bem! Ele ainda tem que ter os dentes na boca pra nos responder, lembra?

Ele parou à seu comando e eu vi, saindo da rua mal iluminada, alguém que achava ter saído de vez da minha vida.

- Já conhece meu amigo, nanico? Esse foi o jeito dele de dizer "oi", e acho que ele vai continuar falando "oi" pra você se eu não tiver as respostas certinhas do que eu perguntar. - ela se dirigiu ao seu escravo quando disse - Aqui está muito iluminado. Vai arrasta ele pra cá.

Retornou pra rua de onde tinha saído e a figura que aparentava não ter cérebro fez o que ela mandava. O rato de academia me imprensou na parede botando o antebraço no meu pescoço. Mesmo naquela posição era difícil não olhar para o decote generoso que Máira vestia de propósito, o resto da blusa modelava seu corpo e o short branco também evidenciava bem suas formas. Tenho certeza de que ela não precisou de cinco minutos de conversa para seduzir esse coitado num bar qualquer. Ele não parecia ser do tipo que pensa muito mesmo sem o domínio dela.

- Então, vamos fazer um joguinho, ok? Eu te faço uma pergunta e você me responde. É simples. Se eu não gostar da sua resposta - botou a mão no ombro do comparsa - ...como é o seu nome mesmo, querido? Ah, não importa. Ele vai te bater. Ok? Ótimo. Onde está a Carolina?!

Era muito desconfortável falar com aquele idiota pressionando a minha traquéia. Mas ao ouvir o nome dela eu não me importava com isso.

- O que? Como assim, cade ela?!
- Vai bancar o difícil, né? Ótimo, eu prefiro assim mesmo.

Foram dois socos na barriga. Caí, ele me levantou novamente.

- Faça um favor pra mim? Veja se ele tem alguma coisa pendurada no pescoço. -  Ela falava nos ouvidos dele de modo sedutor. As mãos encontraram o mesmo crucifixo que tinha me salvado no nosso primeiro encontro - Ótimo, agora porque você não arranca isso daí, ein? Por mim?

A fina corrente dourada que sustentava a cruz se partiu com facilidade ao puxão nada gentil do meu "novo amigo". E outra vez ele me prendeu à parece com o antebraço esquerdo na minha garganta. Eu era mais baixo que ele, então precisava ficar na ponta dos pés para não deixar coisa toda ainda pior. Mas meu pensamento estava, de novo, na Carol. Ela sumiu?

- Máira, do que você está falando?! - minha voz era um sussurro rouco.
- Você devia ver como está ridículo nessa posição. Combina com você. - zombou.
- Eu to falando sério! Me fala o que houve!

Máira deixou a ironia de lado e se enfureceu.

- FALAR SÉRIO?! MINHA MELHOR AMIGA SUMIU HÁ DIAS E A ÚLTIMA COISA QUE EU SEI É QUE ELA FOI PARA SUA CASA! - ela não economizou no volume, depois caiu um pouco em si e voltou ao normal - Sabe, nanico, você acabou de ganhar mais alguns socos.

Mais uma vez seu escravo atendeu, meu ombro machucado abriu de novo. Era a segunda surra que eu tomava em menos de 24 horas, mas eu aguentei. Precisava saber o que esta acontecendo. Apesar de forte o controlado era desleixado, deixando várias brechas vulneráveis para eu atacar. O sangue já caía pelo meu braço.

- Vamos tentar de novo. Aonde. Está. Carolina?
- Eu não sei, caralho! Depois que ela foi lá pra casa não a vi mais. E como você sabe que ela me visitou?
- Ah docinho, tem um motivo pelo qual eu ainda não mandei ele socar essa sua cara. Carolina parece gostar de você. Por algum motivo que a lógica não explica, desde ela te viu não pára de pensar em você. Não que ela fale isso, mas conheço bem a minha amiga pra perceber isso sem precisar de uma palavra. Agora vamos jogar aberto aqui, ela gosta de você, mas eu não. Então, coisa fofa, é melhor você me dizer logo o que aconteceu com ela, ou acho que a Carol vai gostar menos de você com o rosto desfigurado.
- Eu não sei aonde ela está ou o que aconteceu com ela, Máira. Mas desde aquela visita que eu não paro de pensar nela, também.
- Ah, que gracinha, você gosta dela, é? FODA-SE! Cansei das suas mentiras. - olhou para a estátua de bíceps que estava entre nós - Pode acabar com isso, querido. Esse babaca é inútil pra nós, ele não vai dizer nada.

Eu era mais fraco mas era mais rápido. Ao perceber o que ele ia fazer, deixei por um momento que seu antebraço me equilibrasse no ar e, com as pernas livres dei um chute forte nas suas bolas. Meus polegares, concomitante, foram nos olhos do infeliz e isso fez com que ele me soltasse. Pigarreei um pouco antes de voltar a falar com o tom de voz normal, tirei o frasco de agua-benta do meu bolso e, como Catharina me ensinou, espirrei em Máira na forma de uma cruz.

O contato fez ela gritar e marcou sua pele como ácido.

- Muito bem, agora me escuta. EU tenho umas perguntas: quando foi a última vez que você viu a Carol? Porque ela foi me visitar? E porque você acha que fui eu quem deu sumiço nela? - Tinha aproveitado o momento de fraqueza dela e jogado Máira no chão e agora estava com o resto do meu frasco apontado para o seu rosto.
- Ela discutiu com o mestre dela muitas vezes desde que te viu. Não sei os detalhes, ela não quis se abrir comigo. Me disse que foi te visitar para te proteger do que poderia vir, sabe, você tem sorte dela ser tão cuidadosa contigo, nanico. Eu já vi Carolina destroçar alguns caras que ela seduziu só por prazer. Preciso mesmo responder a última pergunta?
- Você acha que eu teria feito algo contra ela?
- Não que você pudesse, né? Mas eu sei bem o que eles ensinam pra vocês lá naquele pequeno clubinho. Por mim, você não via Carolina nunca mais.

Recolhi meu frasco e a ajudei a se levantar.

- Não gosto de você, e você não gosta de mim.
- É, isso ficou bem claro.
- Mas temos um objetivo em comum agora. Eu também quero muito saber o que houve com a Carol.
- Claro que voce quer, ela realmente fisgou voce né?
- ...
- Você é patético, garoto. Ela nunca vai olhar pra você.

Dei as costas para ela e saí da rua, de volta para a avenida principal. Dei um empurrão no idiota com cêrebro de azeitona antes de ir, quando estava chegando na rua ouvi Máira falar:

- E vê se tira essa batina, fica horrível em você.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ver015



A igreja da Candelária tem uma história. No início do século XVII um casal de espanhóis estava vindo para o Brasil com o sonho de fazer a vida. A embarcação onde estavam foi atingida por uma impiedosa tempestade e todos os tripulantes da nau temeram por suas vidas. O casal então, devoto de Nossa Senhora, prometeu que caso passassem ilesos, construiriam no Novo Mundo uma catedral em seu nome. Depois de cinco dias de tempestade, a embarcação aportou no cais do Rio de Janeiro e em seu casco bastante avariado ainda podia-se ler o nome com o qual fora batizada: Candelária.

Alguns anos depois os espanhóis cumprem sua promessa e levantam, no coração do Centro da cidade, uma de suas igrejas mais bonitas e emblemáticas. Com seu estilo neoclássico, igreja é maioritariamente branca com duas grandes torres nas extremidades e tem muitas janelas em cada uma de suas câmaras superiores. Se houvesse um modo de ver a Candelária de cima se perceberia que ela tem o formato de uma cruz.

Essa é a parte pública da construção da igreja. Mas existe também uma parte que fica restrita ao sacerdócio. A mulher do casal, quando se aproximava a inauguração, começou a passar mal em seus sonhos. Seu marido dedicado acordava rigorosamente todas as noites com seus gritos e tentava acalmá-la para que voltasse a dormir, mas cada vez a missão parecia mais difícil. As noites iam as tornando mais longas e os dias mais curtos para ela, que após alguns meses neste estado, definhava visivelmente. A enfermidade não permitiu que ela comparecesse à inauguração.

Apesar de religioso, o casal buscou ajuda primeiro na medicina mas a resposta era simplesmente a mesma, a mulher estava bem fisiologicamente. Claro que a medicina era bastante limitada naquela época, mas mesmo hoje a resposta não teria sido outra. 

Um domingo, após a missa que freqüentava semanalmente, o marido espanhol se abriu com o padre que a essa altura já gozava de sua confiança. O padre em questão se chamava Felipe, foi o primeiro padre da Candelária e idealizador da ordem que eu participei por tantos anos.

Segundo registros, padre Felipe ainda era relativamente novo, mas havia estudado por um bom tempo em Roma, onde acabou por ter muito contato com escrituras seculares e restritas. Lá tomou gosto pelo estudo de proteção contra demônios. Ao examinar a mulher,  suspeitou que ela não sofria de doença alguma, mas estava sob ação de uma criatura que conhecemos como íncubo. Íncubos não têm o poder de encarnar na vítima como outros demônios, portanto um exorcismo seria inútil neste caso. Felipe sabia que o íncubo é um espírito que seduz as mulheres durante o sono e toda noite se alimenta deles até que a vítima não sonhe mais, então esperou até que ela adormecesse e então começou um ritual que prendeu o espírito num frasco marcado com o selo de Salomão.

Após este evento a senhora ficou bem e o padre conversou com o casal, propondo uma reforma secreta na Candelária, seria construída uma base subterrânea aonde ele se dedicaria a estudar e resolver casos como o ocorrido. Assim nascia a Ordem dos Sacerdos do Rio de Janeiro e o salão por onde agora eu passava, também todo decorado em pedra, havia sido o primeiro a ser construído sob a catedral.

"Grande Salão" era como chamávamos, passei por quinze pares de bancos até chegar ao altar ao fundo. Não havia quadros ou janelas, mas o ambiente era climatizado e limpo dando uma impressão rústica e moderna ao mesmo tempo. Ali, de frente para o altar me esperavam quatro pessoas. Catharina e padre Pedro seguiam ao meu lado.

- Muito bem, estamos todos juntos finalmente, - disse o padre Pedro - Victor, este era o garoto que teve...um leve acidente de percurso, se incomodaria em repetir para ele?

Um homem magro e alto, de olhar severo e cabelos em forma de cuia me olhou com reprovação e depois disse para o senhor:

- Claro, padre. Sem problemas.
- Muito bem, acho melhor então eu reportar o que houve mais cedo. Pablo agora está em boas mãos. - Catharina disse isso para Pedro e foi se retirando.
- Espera, você vai embora?
- Não faz diferença, faz? Consegui te trazer aqui a salvo apesar dos seus esforços suicidas. Agora você deve se dedicar ao treinamento.
- Porque você está agindo assim, Catharina? Quer dizer, desde que eu acordei você mal falou comigo.
- Pablo, eu preciso ir. - se virou para o velho padre - Pedro, até breve.

E saiu.
Aquilo me incomodou e deixou um clima pesado no Grande Salão. O único som que se ouvia eram os passos de Catharina que, ao chegar à porta hesitou e olhou para trás rapidamente antes de fechá-la às suas costas. Senti a mão de padre Pedro no meu ombro:

- É o dever dela, rapaz. Não se preocupe com isso, vocês vão se ver novamente. Agora por favor, ouça o que Victor tem a dizer.

Victor começou a fala com a impaciência de quem já contou a mesma história algumas vezes, as outras três pessoas eram dois garotos e uma garota e já tinham ouvido o que ele tinha a dizer, por isso ele falava para mim.

- Você foi trazido a este salão porque o plano superior acreditou que você pode auxiliar no controle dos ataques de demônios aqui no plano mortal. Sacerdos são recrutados por seres celestiais, sua recrutadora acaba de sair, e com a saída dela o Vaticano se propõe a investir na sua carreira de sacerdócio se comprometendo a cobrir todos os seus gastos financeiros enquanto você servir a esta ordem. É de suma importância dizer que, uma vez que as criaturas saibam que você está atrás delas, irão atrás de você também. O perigo será iminente e constante. Servir, entretanto, é uma grande honra. Você aceita a responsabilidade de levar a luz consigo e dedicar a vida a combater todo e qualquer espírito das trevas?

Não é nada que eu já não tivesse ouvido mas falado assim, daquele modo formal e empostado, parecia ter o peso de duas toneladas. Meu sentimento de vingança parecia pequeno perto deste discurso mas confesso que foi apenas por ele que eu decidi fazer o que fiz.

- Sim.
- Então, Pablo Pazos, eu autorizo você a participar do treinamento da Ordem dos Sacerdos do Rio de Janeiro. De agora em diante todos os demônios são seus inimigos e qualquer negligência para com eles não será tolerada. - obviamente meu primeiro pensamento foi para Carolina e eu quase ri, mas apenas concordei com a cabeça - Acho que estão todos prontos para começar, Paulo.
- Primeiro vamos às apresentações, - olhando para mim, seguiu - Pablo, estes são Júlio, Gabriela e…perdão eu esqueci seu nome filho.
- Vinicius, Vinicius Ferreira senhor. - disse o terceiro garoto com corte militar e grandes olheiras. 
- Isso, desculpe, é a idade. Estes, Pablo, são seus companheiros de treinamento. Pessoal, - agora para os outros - este é Pablo.

Minha primeira impressão dos três não foi muito boa, devo dizer. A menina, Gabriela, me parecia um pouco fora de órbita e deslumbrada com tudo que estava vendo. Vinicius, soava como o tipo de pessoa que precisa de atenção, o que me incomodava. E Júlio era efusivo e falante demais. Depois de alguns minutos de conversa descobri que o homem que havia me introduzido formalmente, Victor, era um especialista em exorcismo e seria um de nossos tutores.

Fomos conduzidos e apresentados a todos os aposentos do “templo”. A última sala, chamada “Sala de Consultas” tinha registros, imagens e referencias dos infernais mais perigosos que poderíamos encontrar. Enquanto Victor nos mostrava um livro com mais de cem anos de história, Vinicius atentou para um bolo de fotografias jogadas em cima um dos retratos estava em branco e chamou sua atenção.

- Parece que esqueceram de chamar o modelo para esta foto. - brincou.
- Não diga bobagens, - respondeu Victor rispidamente - este retrato, ou a falta dele, pertence a um demônio que vocês terão sorte se não encontrarem.
- Quem? - Gabriela perguntou.
- Um upyr chamado Lucas Malta.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Ver014



A sensação de desmaio convencional (sei porque já passei pela experiência algumas vezes) é como um apagar de luzes. Subtamente seu corpo desliga e toda e qualquer faculdade do seu cérebro é suspensa. Um mar negro te envolve e tudo que você é capaz de fazer é esperar o momento de acordar. Meu desmaio aquele dia se assimilou mais a uma alucinação. As unhas do berne abriram sulcos profundos em meu peito e o contato direto delas com meu sangue fazia exponenciar o efeito substância que aquelas garras infernais tinham e mesmo o meu desmaio não era tranquilo. Até hoje tenho duas das três cicatrizes.

Mesmo fora de mim eu ainda tinha alguma consciência e o que essa consciência me mostrava era ela. A visão de Carol dessa vez era mais forte, eu estava totalmente imerso nela. Num cenário escarlate ela vinha em minha direção, cabelos, olhos, lábios e vestido também vermelhos. Os detalhes no quarto eram todos desbotados e em preto e branco. Eu não me mexia, não sei se estava preso ou paralisado, mas nao conseguia me mover porque, se pudesse, me jogaria em cima dela ali mesmo. Carolina sempre soube usar vermelho, as outras cores também, mas com vermelho ela acendia, e me acendia também.

Carol veio devagar, eu sentia meu corpo tendo espasmos mas meus olhos eram dela. Ao chegar bem perto de mim ela parou e pôs a mão esquerda na minha testa. Seu toque parecia leve, mas a mão acima dos meus olhos pressionava forte, como se quisesse entrar ali. Ironicamente, era ela quem povoada cada fragmento de pensamento que eu tinha há dias. Na época me parecia insensato, mesmo inacreditável, que ela tivesse tanta influência assim sobre mim. Só havíamos nos visto duas vezes e eu ainda não sabia de tudo.

Enquanto ela me prendia dentro daqueles olhos de âmbar as mãos desceram da minha fronte para o meu peito desnudo, onde estavam os machucados. Eu tive medo, vi como ela me olhou no nosso encontro na pedra do Arpoador. Carolina desconhecia controle ou razão quando via sangue. Enquanto ela passava as maos nos arranhões meu corpo voltou a ter espasmos, dessa vez mais fortes. Por algum motivo meu sangue não chamou a atenção dela dessa vez, ao contrário ela deu pouca atenção para ele e apenas seguiu cada um dos três cortes que eu tinha de ponta a ponta com os dedos. Em seguida, Carol tomou meu rosto com as mãos gentilmente. Sentia todos os seus dez dedos frios, inclusive os polegares no meu queixo. Veio aproximando o rosto do meu, meu corpo agora tremia muito, mas a minha visão era fixa. Os lábios, aqueles lábios vermelhos e carnudos parecendo ter sido desenhados na sua pele muito branca cada vez mais próximos.

Carolina me beijou.

O beijo foi intenso, e eu não esperava menos que isso. Os lábios dela cobriam os meus e sua língua envolvia e era envolvida pela minha num movimento caótico e ordenado ao mesmo tempo. Fomos crescendo. O quarto parecia esmaecer e o vermelho intenso escurecia e desbotava. Eu agora ouvia sons, não tinha percebido que tudo tinha estado mudo até aquele momento. O que eu ouvia não era alto, parecia um sussurro. O beijo continuava, queria usar minhas mãos para passear pelo corpo dela, mas elas não respondiam.

O ambiente atras dela escureceu totalmente, éramos eu, ela e a escuridão nos envolvendo. Carolina ainda era visível e parecia querer me sugar para dentro dela, o beijo havia mudado e agora sua boca puxava meus lábios. Cada vez mais forte, as vozes aumentavam também. Agora eu distinguia palavras, mas não conseguia entendê-las.

Carol me sugou, como se quisesse tirar minha essência e depois sumiu. Ouvi em alto e bom som uma voz que não poderia ser de Carolina dizer:

- Domini est salus, Domini est salus, Christus est salus, Salus tua, Domine, sit semper nobiscum! 

Me ergui assustado e abri os olhos e só então percebi que havia passado todo esse tempo deitado e de olhos fechados. O suor molhava meus cabelos e minha calça, estava sem camisa.

Olhei e não reconheci o ambiente. Cade a Carol? Onde eu estava?

- Bem-vindo, garoto. Achei que voce não fosse deixar eu terminar. - disse um senhor que aparentava ter 70 anos, falou com uma voz surpreendentemente firme e grave que não condizia com seu aspecto frágil. Ele era negro, suas vestes também. Usava uma batina clássica e tinha uma cruz de madeira pendurada.

- A Couraça de São Patrício é uma oração bastante poderosa. - ele olhava pra mim com olhos cansados, mas o resto da sua expressão ignorava as rugas e teimava em ser jovial - Mas só consegui te trazer de volta no final, voce estava se apegando forte ao sonho.
- Sonho? Desculpe senhor…vamos com calma, eu ainda estou um pouco lento. Quem é voce?
- Este é o padre Pedro Alvarez, Pablo. Voce devia ter mais respeito. - disse uma voz conhecida atras de mim. Olhei para trás e encontrei Catharina que me olhava com uma estranha hostilidade.
- Deixe disso, Catharina. O garoto acabou de ser purificado, é de espantar que ele não esteja explodindo de dor de cabeça.
- Purificado, como assim? Catharina…onde nós estamos?

A câmara tinha forma de um trapézio, e a cama onde eu estava sentado ficava no centro do cômodo  levemente deslocada em direção à base menor. As paredes eram todas revestidas de pedra mas elas quase não éram vistas porque um papel de parede feito de prateleiras de livros as cobria. No primeiro momento pensei estar numa biblioteca mas ao inclinar na minha cama vi uma pequena mesa redonda aonde tinha uma placa de metal e nela estava grafado numa tipografia antiga:

APOSENTOS DO SUMO SACERDO

Parecia que aquele senhor era realmente importante. A base da cama onde eu estava deitado era paralela a base maior do trapézio que era o quarto e diretamente à minha frete havia uma porta bastante ornamentada que estava fechada não me permitindo olhar além disso.

- Nós estamos no meu humilde quarto, Pablo. - disse o padre - Deixe que eu te explique o que aconteceu durante o seu...sono. Com certeza é louvável você ter lutado com um berne sem qualquer treinamento sozinho e ainda estar aqui falando comigo. Lembro de uma vez, quando eu estava recém-ordenado, que encontrei dois bernes sob a estação de trem de Bonsucesso. Tive sorte. Naquele dia eu tive ferimentos semelhantes aos seus, - levantou a manga e me mostrou o antebraço direito com quatro cicatrizes escuras que iam do pulso quase ao cotovelo - meu frasco de água benta estava cheio ainda por isso pude limpar os ferimentos antes dos delírios começarem. 
- Delírios?
- O berne se satisfaz com sua dor e sofrimento. - agora Catharina falava sua voz ainda tinha o tom severo - Quando ele causa ferimentos físicos com as unhas ou os dentes passa para quem foi ferido uma substância que causa uma dor que chega ao ponto do delírio, neste ponto a vítima passa sonhar com o que ela tiver de mais precioso. A vítima fica presa num delírio que não quer acordar enquanto o demônio pode se satisfazer do seu corpo que definha por dias.
- Você continua impecável, Catharina. - disse o padre.
- Vocês já se conheciam? 
- Eu estou no ramo há muitos anos, filho. É difícil achar um Favrashi que ainda não tenha cruzado comigo. Mais difícil é encontrar um melhor que Catharina, você tem sorte de ela ser seu anjo da guarda. 

Olhei para Catharina que por um momento enrubesceu, mas logo tomou a expressão seria que não cominava com ela novamente. Olhei de novo para o senhor sentado ao meu lado. Ele era aquele tipo de pessoa que você confia sem perceber, era fácil acreditar no que ele falava. Padre Pedro teria feito grande carreira política se quisesse.

- Mas... - tentei levantar mas desisti e voltei a me sentar na cama - a ultima cosia que eu me lembro foi de estarmos na Candelaria.
- Sim, vocês chegaram e eu abri as portas.
- Tudo bem, mas onde estamos agora? 
- Você ainda está na Candelária, meu filho. Só que alguns metros abaixo da nave principal.
- Estamos...no subsolo?
- Digamos que era preciso achar um lugar discreto para fazer o que fazemos aqui. Mas você acostuma, logo não vai mais nem perceber. Quer ajuda com isso de se levantar?

Ele me ajudou, Catharina também. Minhas pernas ainda estavam fracas e demoraram um pouco a se acostumarem com meu peso. Apoiava nas pesas e prateleiras até começar a dar os primeiros passos. Sem querer acabei derrubando um livro da estante do padre. O livro caiu aberto e Pedro correu a fecha-lo, ele foi rápido mas eu consegui ler o título:

- "O Rei de Amarelo". Que livro é esse?
- Certos livros não são para ser lidos, garoto. Que tal eu te apresentar aos outros? Tenho certeza de que estão ansiosos para conhecer o garoto que se atrasou porque estava mandando um berne para o inferno. - ele brincou.
- Todos já chegaram? - perguntou Catharina.

Os olhos cansados do Padre Pedro ficaram tristes. 

- Todos menos uma. Ouve um outro ataque além do de vocês, parece que eles estão realmente  empenhados em acabar com essa geração. Não foi um berne, pelo que eu soube um pratur atacou uma de nossos sacerdos. Bruna não vai chegar. 

O momentânea silêncio que se deu depois disso foi breve e quebrado pelo próprio padre. Ele me olhou e disse que talvez fosse melhor eu botar uma camisa camisa. Procuramos, mas não havia nenhuma no aposento e a minha já estava reduzida a trapos. Padre Pedro achou alguma coisa em seu armário.

- Ah, acho que isso aqui deve caber em você. Que tal? Pronto, ficou ótimo! Agora vamos!

Ele abriu a porta e eu fui em direção ao salão principal da ordem usando uma batina.