segunda-feira, 3 de junho de 2013

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Percebo que vai começar a chover, esvazio meu copo, pago a conta e me despeço do Fábio, garçom do boteco que frequento desde que me mudei pra Lapa, no Rio de Janeiro. Com um leve aceno de mão e ele responde:

- Boa noite seu padre.

Ele sabe que eu renunciei ao titulo e a qualquer ligação com a igreja bem antes de vir morar aqui, mas acho que velhos hábitos são difíceis de largar. 

O curto caminho do bar até o meu apartamento me rende uma visão confusa e interessante que resume o bairro onde vivo. Graças ao meu ofício eu pude conhecer um certo número de cidades, mas aqui, nesse bairro do Rio de Janeiro é aonde se encontra a maior diversidade de sentimentos do mundo.

Existe um bebado desiludo, uma jovem que está indo pra noite pela primeira vez, um mendigo delirante, um policial com raiva, uma meretriz que anseia por algo a mais, outra que anseia por um cliente a mais, um casal fazendo amor, um artista se embriagando e muito mais. Tudo isso convivendo num caos ordenado que quase diariamente acontece aqui. Fui treinado para reconhecer emoções, e mesmo tendo largado a batina meses atrás é inevitável não perceber toda essa variedade de sentimentos aqui, é algo que já está programado em mim. 

Desde que ela foi embora as coisas tem sido monótonas, escolhi morar na Lapa pela falsa sensação de atividade constante daqui.

Passando ali logo abaixo dos Arcos, eu sinto uma presença que me incomoda. Com certeza é um deles, mas eu sigo meu caminho torcendo para que ele não tenha me notado, não quero confusão essa noite, nem em qualquer noite. Cuidar deles já não é problema meu.

Entro no meu apartamento. Modesto e pequeno. Todas as vezes que eu fecho esta porta e percebo que ela nao vai tocar mais aqui de madrugada pedindo pra entrar sinto como se uma daquelas estacas que eu costumava usar estivesse martelada contra o meu peito. Nunca vou me perdoar pelo que eu fiz naquele dia.

Lembro das últimas palavras dela pra mim e nao consigo evitar as lágrimas:
"Pensava que o amor era proibido para a criaturas como eu. Obrigado por ter se esforçado para me mostrar o contrário."

Quando consegui me recompor atentei pra velha Olivetti Lettera 25 que comprei na feira do Lavradio alguns meses atras e me pus a escrever. Quando a vi numa barraca de uma senhora que parecia que ia vender até a alma se eu pedisse, pensei que seria uma aquisição inútil, mas ela me ensinou que nada é sem motivo. Tudo que cruza nosso caminho tem uma função e acho que contar pro mundo a nossa história é a função dessas teclas.

Lavo o rosto antes de começar a redigir qualquer coisa, a lembrança do que tivemos faz minhas mãos tremerem e minha boca sussurrar seu nome:
- Carol…

Preciso alertar que eu não sou nenhum herói e que esta história não vai ter um final feliz. Se voce quiser continuar lendo  estas páginas que o que eu escrevo deve saber também que nao vai achar aqui nada comparado com o que voce já leu. Conheço coisas desse mundo e do outro que voce provavelmente nunca ouviu falar, ou se ouviu, não se deu o trabalho de acreditar. Não quero de modo algum estragar a sua crença ou acabar com a sua fé. Vou apenas relatar aqui tudo que eu vi durante esses anos que eu usei uma cruz e um terço como armas. Inclusive meu caso de amor com a melhor das criaturas de qualquer um dos dois mundos.


Acredito que seja importante me apresentar.

Meu nome é Pablo Pazos, e eu era um sacerdote ordenado nas artes do exorcismo e nas práticas contra maus espíritos. Tenho 25 anos enquanto escrevo esta história e sou ordenado desde os 18. Entrar pro celibato nunca foi uma coisa que eu quis fazer, eu tinha outros planos pra vida até Catharina aparecer e me guiar por isso tudo. Catharina foi o primeiro e melhor anjo que eu já conheci. 

Não digo "anjo" no sentido poético ou metafórico. Não, Catharina era de fato um anjo, ser celeste, enviado do céu ou como voce preferir chamar. Acontece que aqui na Terra, nesse momento existe um sem-número de espíritos sem luz vivendo diariamente no meio de nós, há toda uma classificação e hierarquia desses espíritos, mas que nao vem ao caso agora. Voce provavelmente os chama de "demônios". Não aquele tipo romanceado com chifres e rabos, sim existem certas peculiaridades e até anomalias no corpo em alguns casos, mas se há algo que é pode ser listado como característica comum de qualquer demônio é: o objetivo de se saciar. 

Demônios são criaturas ambiciosas, egoístas, inconformadas e extremamente poderosas. Fazem de tudo para poder se sentirem satisfeitos, de atrocidades até (pasme), coisas boas. Conheço bons caras maus por aí. 

O mundo é todo balanceado e, se num lado da balança temos os caídos, no outro temos anjos. "Anjo", na verdade é apenas uma pequena parcela dos espíritos de luz que "protegem a humanidade" (atenção para as aspas), existem muitos outros, mas o conhecimento popular generalizou serafins, querubins, arcanjos e outros nessa classe. Anjos tem por missão acabar com os demônios e toda a sua influencia aqui neste mundo. São agentes neutralizadores, eles querem deixar o mundo seguir seu curso sem qualquer influencia sobrenatural. Anjos foram popularmente conhecidos como criaturas bondosas e extremamente altruístas porém, a realidade é diferente. Como os demônios, anjos podem ter o carater dúbio e serem extremamente arrogantes, preconceituosos e elitistas.

Mas esse não era o caso de Catharina. Tive contato com muitos anjos desde que me ordenei, de diferentes ordens e patentes e hoje em dia evito contato com qualquer um deles, principalmente depois do que aconteceu. Catharina é único dos celestes que eu gosto de receber visitas até hoje.

Quando nos conhecemos, em 2007 eu me sentia diferente da maioria das pessoas que eu conhecia, só não pensava muito sobre isso. Todo mundo tem peculiaridades, afinal de contas. 

Eu não sabia, mas as minhas eram bem mais importantes que as da maioria.

Conheci Catharina pela primeira vez numa boate, ela veio até mim e disse:

- Finalmente voce chegou, estava te esperando.
- Nossa, nunca conheci uma garota tão direta assim.

Catharina tem os cabelos loiros, a pele bem branca e um rosto extremamente bonito. Esses de beleza clássica, sabe? Era de fato o que voce poderia chamar de um anjo. Eu fiz a piada, mas ela tinha um fundo de verdade, eu não estava acostumado a ter garotas desse calibre se atirando pra mim desse jeito. Ela apenas sorriu e respondeu:

- Vamos para um lugar mais reservado para conversarmos melhor.

Aquela conversa iria definir todo o resto da minha vida e talvez do meu pós-vida também.